No Estado de São Paulo, 4.674 jovens de 12 a 21 anos estão em atendimento na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), segundo dados da AIO (Assessoria de Inteligência Organizacional) da instituição – antiga Febem (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor).
Enquanto cumpre medidas socioeducativas de privação de liberdade, o adolescente tem o direito de frequentar a educação formal. Cabe a ele assistir às aulas, fazer lições e passar por avaliações, assim como ocorre no sistema de ensino da rede estadual.
Mesmo nos casos de medida cautelar de internação provisória, que pode durar até 45 dias, o acesso à educação deve ser assegurado.
O interno Michael*, 18, é um dos 55 jovens que cumprem medidas socioeducativas na Fundação Casa de Pirituba, na zona norte de São Paulo, que é um dos 117 centros existentes em 47 cidades paulistas.
Ele chegou à unidade há cinco meses e estava sem estudar nos últimos anos. “Quando cheguei aqui, não sabia ler muito bem. Comecei a me esforçar e agora consigo ler muito melhor. Presto mais atenção nas matérias e, sempre que tenho dúvidas, peço ajuda dos professores”, conta.
Hoje, ele cursa a 8ª série do ensino fundamental, etapa que já havia reprovado três vezes. Além de frequentar as aulas dentro da própria instituição, o jovem relata que até superou o medo de ler em voz alta: “Tinha vergonha porque não sabia, agora até peço para a professora me deixar ler”.
Nos últimos dias, a Agência Mural esteve na escola que fica na Fundação Casa de Pirituba para entender como funciona o sistema educacional. Ouvimos três jovens que estão na entidade e que, antes da internação, moravam em bairros das periferias da capital e da Grande São Paulo. Em comum, eles contam como se adaptaram a escola da Fundação e as perspectivas para o futuro.
Direito de estudar
Para garantir esse direito, previsto pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e pelo Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo), a instituição trabalha em parceria com a Seduc (Secretaria Estadual de Educação).
“Toda a escolarização tem o aporte da Seduc e legislamos conjuntamente. Têm resoluções específicas para isso acontecer”, afirma Neuza Flores, gerente de governança escolar da Fundação Casa.
“Todos os adolescentes que entram [nos centros] necessariamente têm que ser matriculados”, complementa. A matrícula é feita de acordo com a série que o interno cursava até o momento da entrada na Fundação.
Na prática, a Seduc destina uma instituição de ensino da rede pública estadual para cada unidade da Fundação. Intitulada como escola vinculadora, ela é responsável por administrar as classes instaladas no centro, além de realizar a matrícula e emitir o certificado de conclusão do educando interno. Os professores são da própria rede também.
As classes podem ser multisseriadas (ou seja, reunir diferentes séries), mas também podem ser seriadas se houver alunos o suficiente e espaço para atender a demanda. As aulas ocorrem em salas comuns, com lousa e cadeiras universitárias, além de laboratórios de informática e audiovisual.
“A tentativa é sempre reproduzir o espaço de uma escola”
Neuza Flores, gerente de governança escolar da Fundação Casa
Embora as aulas ocorram de modo específico, por conta dos alunos estarem contidos, o ensino segue o mesmo sistema da rede estadual. Durante as aulas, um profissional da área pedagógica acompanha as atividades de professores e alunos, e também há sempre um agente de segurança próximo das salas.
“Ele pode até estar na porta em algum momento, mas não tem essa obrigatoriedade de tratativa”, frisa Neuza.
Um futuro para os educandos
A Fundação Casa de Pirituba tem a escola estadual Ermano Marchetti como instituição vinculadora. Dividida em dois prédios, a unidade tem nove salas de aulas ativas. São três multisseriadas, que atendem às séries do fundamental 2; cinco salas seriadas dos três anos do ensino médio; e uma do ciclo 1 (alfabetização).
Além das aulas habituais, os professores têm um projeto denominado “Ler e escrever” em que estimulam o aprendizado por meio da leitura. Michael foi um dos alunos que se beneficiaram com a iniciativa.
“Foi aqui que tive o interesse em ler livros. Para uma pessoa que não lia nem 20 páginas, já li livros de 100. Tinha dificuldades de escrever também e hoje já consigo”, comenta o interno.
O jovem não esconde a alegria dessa evolução. “É muito bom. Quando minha mãe me pedia para comprar algo no mercado, ela tinha que escrever, porque eu não saberia falar o nome”, lembra. “Quando comentei com ela que estou lendo e escrevendo, ela ficou até feliz”.
“Penso que estou em uma escola normal. Às vezes até esqueço que estou na Fundação, só lembro quando vamos para o intervalo”
Michael, interno na Fundação Casa de Pirituba
Victor Lorenzo*, 16, que também é interno do centro de Pirituba, sente o mesmo. “É uma sensação boa, porque a escola para mim é um lugar onde você vai para respeitar os professores, aprender e focar nos objetivos”, conta.
Há um ano e um mês na Fundação Casa, ele cursa o 2º ano do ensino médio e conta que se sentiu aliviado quando descobriu que poderia dar continuidade aos estudos lá dentro. “Foi uma paz para mim porque posso usar [os estudos] para passar o tempo. Sou muito ansioso, fico pensando bastante na minha família”.
Apesar disso, o jovem teve dificuldades para se adaptar às aulas no início. “Tinha um pouco de medo. Cheguei aqui com raiva por ter passado por essa situação, mas depois de um tempo fui pegando o ritmo da escola de novo”, lembra.
“Tive receio de ser igual ao que era lá fora e não conseguir focar nos estudos. Mas com o tempo fui me dedicando e tenho uma boa relação com os professores com quem converso bastante”, diz Victor, destacando que vê o acesso à educação dentro do centro como uma segunda oportunidade.
“Se eu não tivesse vindo parar aqui, não iria nem estar falando esse tipo de coisa. Esse lugar me ajudou a trazer minha família para perto de mim novamente”
Victor, interno na Fundação Casa de Pirituba
Para Bruno*, 19, o acesso ao ensino permitiu que ele aprendesse a gostar e a valorizar a escola. “Aqui é um lugar de oportunidades. Está sendo dada essa oportunidade no estudo, algo que vou levar para a minha vida inteira”, diz.
Ele está na Fundação Casa de Pirituba há um ano e oito meses, onde concluiu o ensino médio por meio da prova do Encceja PPL (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos para Pessoas Privadas de Liberdade).
Por ter concluído a educação básica, Bruno participa das aulas como ouvinte, condição em que não tem a obrigatoriedade de realizar as atividades para obter notas. Mesmo assim, ele encara como uma chance de seguir adquirindo conhecimentos.
“Não sabia direito o que fazer, mas quando comecei, continuei fazendo as lições do mesmo jeito para testar meus conhecimentos. Há certas coisas que não me lembro e outras que recordo a partir das aulas”, explica.
O jovem tem listado cada conquista obtida por meio da escola, como ter lido um livro pela primeira vez e o desejo de ingressar no ensino superior. “O que melhorei aqui dentro, quero melhorar mais, quero alcançar mais coisas. Não quero só terminar o ensino médio, quero concluir cursos e fazer uma faculdade”, complementa.
Sonhos em comum
O ensino na Fundação Casa tem dado aos jovens a oportunidade de sonhar e planejar o futuro, sobretudo, o educacional. Curiosamente, os três entrevistados planejam cursar uma faculdade na área de TI (Tecnologia da Informação).
Bruno, que nunca tinha tido contato com a área, diz que um dos cursos que ele fez no centro contribuiu para a escolha. “Aprendi a fazer o designer de um site. Gostei bastante e quero me aprofundar mais”, conta.
Victor tem o curso de TI como opção por acreditar que é uma área em evidência e por ser um segmento que ele já gostava. “Quando eu era pequeno, gostava bastante de computador, celular, esse tipo de coisa. Mas foi aqui que tive o interesse despertado dentro de mim”, lembra.
Já Michael, que já tinha desistido de estudar e nem pensava em fazer uma faculdade, se interessou pela tecnologia da informação por ser um universo novo para ele. “Quero ficar sempre ligado nas coisas e saber mexer no computador”, aponta.
Para ingressar em uma faculdade, os adolescentes da Fundação Casa podem participar do Enem PPL (Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade).
Como é o acesso às aulas
Neuza Flores explica que, quando o jovem chega na Fundação Casa, ele passa por avaliações diagnósticas de acordo com o PIA (Plano Individual de Atendimento), que permite avaliar o nível de escolaridade e aprendizagem, além de outras demandas do interno.
Ela diz ser comum que muitos jovens, embora estejam matriculados em séries finais do ensino fundamental ou médio, apresentem defasagem na consolidação da alfabetização. Por isso, as avaliações “têm como objetivo olhar a condição de aprendizagem para pensar as intervenções necessárias”.
Em casos específicos, em que uma pessoa, mesmo matriculada em uma série avançada, não sabe ler ou escrever, a Seduc autoriza que ela seja colocada em uma sala provisória do fundamental 1, onde poderá melhor se desenvolver para superar a defasagem diagnosticada.
“Temos poucas, mas temos. Nelas, o jovem fica com o professor em um projeto específico, porque ele não vai acompanhar o que está acontecendo na sala da série do ensino em que ele está matriculado”, aponta a gerente de governança escolar.
Sobre as salas multisseriadas, Neuza reforça que, embora possam reunir diferentes séries visando atender às demandas de cada centro, é preciso ter um viés claro para atender cada nível. “A proposta é alinhar isso com as avaliações diagnósticas”, finaliza.
*Os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios para a preservação das identidades dos entrevistados.
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