20 de junho de 2024, 18h29

Na última semana, a Comissão Temporária para Exame de Projetos de Reforma dos Processos Administrativo e Tributário Nacional encerrou seus trabalhos e aprovou, em caráter terminativo, o Projeto de Lei nº 2.481/2022 para a reforma da Lei de Processo Administrativo (Lei nº 9.784/1999 – LPA). Dentre os dispositivos a serem inseridos na legislação, o artigo 68-E estabelece que “[a] Administração poderá negociar e firmar acordo com os interessados, salvo impedimento legal ou decorrente da natureza e das circunstâncias da relação jurídica envolvida, observados os princípios previstos no art. 2º”.

Caso aprovado pela Câmara e sancionado pela Presidência, esse será mais passo de grande importância para a consolidação do princípio da autonomia negocial pública – isto é, o reconhecimento normativo quanto à legitimidade da administração pública para celebrar negócios jurídicos com particulares para criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações em suas relações jurídicas.

Diagnósticos à luz do Direito Comparado

É verdade que tal abertura já era extraída de outros dispositivos legais — a exemplo do artigo 3º, §2º do CPC e do artigo 26 da Lindb —, mas sua veiculação pela Lei de Processo Administrativo, além de reforçar o princípio da autonomia negocial administrativa, aproxima o Brasil de outros países com experiências similares em seus ordenamentos, a exemplo da Alemanha (§§54º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo Alemão), da Espanha (artigo 86 da Lei de Procedimento Administrativo), da Itália (artigo 11 da Lei de Processo Administrativo) e de Portugal (artigo 200º, 3 do Código do Procedimento Administrativo) [1].

A experiência do Direito Comparado, a propósito, pode ser interessante para realizar diagnósticos preliminares da redação proposta para o artigo 68-E da LPA.

1) A Administração poderá negociar e firmar acordos com os interessados, salvo impedimento legal (…)

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A redação é feliz ao tratar como regra a permissibilidade para a celebração de acordos, atribuindo ao legislador a delimitação dos espaços em que é vedado o uso de negócios jurídicos pela administração. Com isso, é reconhecido no Brasil um regime de atipicidade dos negócios jurídicos administrativos – isto é, a desnecessidade de que a legislação preveja tipos específicos de acordos com regimes jurídicos próprios.

Spacca

Caminho distinto tinha sido adotado originalmente pela Itália que, na redação original do artigo 11 de sua Lei de Processo Administrativo (Lei nº 241/1990), admitia a celebração de acordos “nos casos previstos em lei” – o que conduzia à interpretação de que eram necessários permissivos legais específicos para cada atividade negocial da administração pública. A inconveniência de tal exegese fez com que o legislador tivesse que alterar o dispositivo no ano de 2005 para excluir tal trecho.

Discussão similar ocorreu na Espanha em razão de o artigo 86 da Lei de Procedimento Administrativo (Lei nº 39/2015) prever a possibilidade de a administração celebrar “acordos, pactos, convênios e contratos (…) sempre que não sejam contrários ao ordenamento jurídico (…)”. Com base na legalidade estrita, autores defendiam a necessidade de permissivo legal expresso. A posição majoritária, contudo, é no sentido de que o dispositivo prevê habilitação legal suficiente para a celebração dos negócios jurídicos, sem prejuízo de sua complementação por regimes jurídicos especiais e específicos.

2) “(…) impedimento legal ou decorrente da natureza e das circunstâncias da relação jurídica envolvida

Embora não haja menção expressa de sua inspiração no processo legislativo, o trecho parece replicar a redação do artigo 46 da Lei de Processo Administrativo do Estado do Rio de Janeiro [2], além de ser muito similar à previsão do artigo 200º, 3 do Código do Procedimento Administrativo de Portugal [3].

A despeito de consolidar o princípio da autonomia negocial administrativa, o artigo 68-E apresenta uma redação que pode fazer surgir novas controvérsias sobre os espaços de sua permissibilidade ao fazer referência a possíveis impedimentos decorrentes da natureza e das circunstâncias da relação jurídica envolvida. O risco intrínseco à redação é que a utilização de negócios jurídicos seja inviabilizada na prática com base em uma leitura inadequada e já superada do princípio da indisponibilidade do interesse público.

O artigo 68-E, nesse caso, representaria um cavalo de Tróia que, com a intenção de ampliar o reconhecimento normativo de tais figuras, acabaria por abrir brechas para controladores refratários às soluções administrativas consensuais. Seria preferível, portanto, que houvesse apenas um limite legal como exceção à regra geral, a exemplo do que foi feito no §54 do Código de Procedimento Administrativo Alemão.

Conquanto no Brasil pareça haver hoje maior consenso dogmático quanto à superação da noção clássica de indisponibilidade do interesse público com a emergência da consensualidade administrativa, a experiência do direito comparado também pode auxiliar para evitar que o risco apontado se concretize.

De fato, nos países acima indicados, as inovações legislativas foram salutares para que se passasse a admitir, com menos resistência, o uso de negócios jurídicos para conformar relações jurídicas no direito público e, em especial, no direito administrativo.

Na Alemanha, por exemplo, o §54 do Código de Procedimento Administrativo é considerado um marco para superação das ideias desenvolvidas por Otto Mayer na primeira metade do século XX sobre a inegociabilidade do poder público.

E em Portugal, a “natureza da relação” como impeditivo para celebrar negócios jurídicos é interpretada restritivamente, se limitando a poucas hipóteses, como funções de soberania e casos em que a contratualização carece de sentido lógico, como a atividades admissão e ingressos em estabelecimentos de ensino público e a avaliação de pessoas e exames.

3) “(…) observados os princípios previstos no art. 2º desta Lei

A remissão genérica aos princípios estabelecidos na Lei de Processo Administrativo, além de desnecessária, representa uma perda de oportunidade em conferir maior densidade procedimental e substantiva aos negócios jurídicos administrativos – como foi feito, ainda que timidamente, nas legislações portuguesa, espanhola e italiana (e brasileira, considerando o disposto no artigo 26 da Lindb); e, em maior grau, na legislação alemã.

A atividade consensual da administração pública possui elementos distintos do típico contencioso administrativo, a reclamar por regras e princípios próprios. Seja como for, a ausência de normas adicionais propicia um espaço mais flexível para que os processos de negociações venham a ser densificados em leis específicas e nos regulamentos dos órgãos e entidades administrativas.

Comentários finais

Independentemente da redação e do grau de densidade normativa estabelecidos nas legislações em questão, os permissivos gerais para a celebração de acordos na via administrativa foram acompanhados, no Direito Comparado, de um processo natural de adaptação progressiva das instituições para lidar com tais figuras.

O artigo 68-E da LPA, embora não seja uma grande novidade no nosso Direito Administrativo, é um importante fator para a evolução da maturidade institucional na consensualidade administrativa brasileira. Que nossas autoridades continuem a caminhar nesse sentido.

 


[1] No caso de Portugal, tal abertura também é extraída do art. 278 do Código de Contratos Públicos.

[2] Art. 46. No exercício de sua função decisória, poderá a Administração firmar acordos com os interessados, a fim de estabelecer o conteúdo discricionário do ato terminativo do processo, salvo impedimento legal ou decorrente da natureza e das circunstâncias da relação jurídica envolvida, observados os princípios previstos no art. 2o desta Lei, desde que a opção pela solução consensual, devidamente motivada, seja compatível com o interesse público.

[3] Art. 200º, 3 – Na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os órgãos da Administração Pública podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer.

  • é doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Público e graduado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), membro-fundador do Laboratório de Regulação Econômica da Uerj (Uerj Reg) e advogado no escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

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