28 de julho de 2024, 7h07
Com o advento da Lei nº 14.843/2024, que deu nova redação ao §1º do artigo 112 da LEP, o exame criminológico passou a ser obrigatório para a progressão de regime prisional. Somente em uma situação excepcional tal perícia pode ser dispensada pelo juiz.
A obrigatoriedade dessa perícia para a concessão de benefícios executórios passou a ser contestada por alguns operadores do Direito, sob o argumento de que essa exigência probatória disposta no §1º do artigo 112 da LEP tem natureza mista e, por isso, é irretroativa, por ser menos benéfica ao condenado, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição e do artigo 2º do Código Penal.
Realmente, algumas normas do Direito Processual Penal podem afetar os direitos fundamentais do indivíduo, não podendo, portanto, ser classificadas como exclusivamente de natureza processual, mas mistas ou processuais penais materiais. Exemplo clássico de uma norma mista é a que fixa a iniciativa da ação penal privada.
Essa regra, por tratar do início do processo, da legitimidade de parte, é processual penal. Todavia, refere-se também a um conteúdo material, de regular a pretensão punitiva, porque, se não exercido o direito de queixa no prazo decadencial, ocorre a extinção da punibilidade do autor da infração penal. Ocorre o mesmo quando a lei passa a exigir a representação do ofendido como condição de procedibilidade (ação penal pública condicionada). Sem essa manifestação da vítima, a persecução penal não pode ser instaurada. Nessa hipótese, a lei nova que for mais benigna ao acusado deve retroagir.
Guilherme de Souza Nucci bem define as normas processuais penais materiais:
“São aquelas que, apesar de estarem no contexto do processo penal, regendo atos praticados pelas partes durante a investigação policial ou durante o trâmite processual, têm forte conteúdo de direito penal. E referido conteúdo é extraído da sua inter-relação com as normas de direito material, isto é, são normalmente institutos mistos, previstos no Código de Processo Penal, mas também no Código Penal, tal como ocorre com a perempção, o perdão, a renúncia, a decadência, entre outros. Isto porque havendo perempção, perdão, renúncia ou decadência, nos exemplos dados, ato contínuo, o juiz julga extinta a punibilidade do investigado ou acusado” (cf. Curso de Direito Processual Penal. 20ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2023, p. 172).
Sobre esse tema, também releva a doutrina de Mirabete:
“Não se pode negar, porém, que existem normas mistas, ou seja, que abrigam naturezas diversas, de caráter penal e de caráter processual. São normas penais as que versam sobre o crime, a pena, a medida de segurança, os efeitos da condenação e, de modo geral, o jus puniendi (por exemplo, extinção da punibilidade). São normas processuais, as que regulam o processo desde o seu início até o final da execução ou extinção da punibilidade. Ora, se um preceito legal, embora processual, abriga uma regra de direito material, aplica-se a ela os princípios que regem a lei penal, de ultratividade e retroatividade da lei penal mais benigna. Assim, embora as regras sobre ação penal e representação sejam leis processuais, como a falta de iniciativa da parte na ação privada e na ação pública dependente de representação pode acarretar a decadência, que é matéria penal ligada ao jus puniendi, não pode ser aplicada a lei nova que impede a extinção da punibilidade, por ser mais severa. Os fatos anteriores à lei nova, que agora prevê a apuração mediante ação penal pública incondicionada, só podem ser apurados mediante queixa ou representação, como dispunha a lei anterior, diante da ultratividade da lei mais benigna. Esse princípio não se aplica à requisição do Ministro da Justiça já que a ausência desta não causa a extinção da punibilidade.
É evidente, também, que uma nova lei processual penal pode acarretar maiores gravames para o autor do delito se, por exemplo, restringe o direito à liberdade provisória, exclui um recurso, aumenta as hipóteses de prisão preventiva, diminui os meios de defesa etc. Mesmo assim, aplica-se o princípio de efeito imediato previsto no artigo 2º do CPP, que não contraria, como já visto, as normas constitucionais. Nada impede, porém, que a lei nova ressalve a aplicação dessas regras aos processos pendentes ou aqueles que ainda não foram iniciados embora o crime tenha ocorrido na vigência da lei anterior. É o que ocorre na legislação de outros países” (cf. Processo Penal, 10ª ed., São Paulo, Editora Atlas, 2000, p. 67, grifos do articulista).
Classificação, objetivo e procedimento do exame
Cuidando-se de normas exclusivamente de natureza processual, como advertido por Mirabete, nada impede que sejam mais severas e sejam aplicadas imediatamente, desde que, naturalmente, não contrariem os direitos fundamentais do acusado ou condenado.
Nesse contexto, a realização do exame criminológico para a aferição do mérito do condenado, e assim sua ressocialização, para a obtenção do benefício executório, não pode ser classificada como sendo uma norma processual de conteúdo misto.
A individualização realizada pelo juiz não se limita a analisar a conduta carcerária do preso e o atendimento do requisito temporal. No processo individualizador, o juiz deve investigar o tipo criminológico do condenado, podendo solicitar a ajuda de peritos para auxiliá-lo na valoração do caráter e da personalidade do preso. Como preleciona Álvaro Mayrink da Costa, “a investigação criminológica tem por escopo conhecer o grau de desadaptação social, a periculosidade, as possibilidades de reinserção (…)” (cf. Exame Criminológico, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 1993, p.55).
Os artigos 8º e 112 da LEP e o artigo 33 do Código Penal são expressões do princípio da individualização da pena, permitindo a progressão do regime prisional, somente se o mérito do condenado autorizar e desde que cumprido o requisito objetivo (lapso temporal).
Assim, as penas privativas de liberdade são executadas em forma progressiva (artigo 112 da Lei nº 7.210/84), segundo o mérito do condenado (artigo 33, §2º, do CP), observados os critérios legais de transferência do regime mais rigoroso (fechado) ao menos rigoroso (aberto).
A progressão de regime deve atender o imperativo da condenação de reinserção social. Durante a execução penal, o condenado é submetido a um tratamento penitenciário, no qual é necessário observar a sua resposta, a sua adaptação ao regime prisional. Desse modo, a progressão somente se dá quando o preso demonstra aptidão para se adequar ao regime mais suave. O seu comportamento e a sua reação ao tratamento ressocializador (orientação adequada, instrução, trabalho e outros ensinamentos) irão determinar o seu mérito no decorrer da execução.
Ora, o exame criminológico é uma perícia destinada à análise do atendimento do requisito subjetivo para fins de progressão de regime prisional. Realizada por uma equipe multidisciplinar, busca uma avaliação do condenado em diversas áreas, dentre as quais a social, a psicológica e a psiquiátrica.
Devem ser avaliadas no exame criminológico, segundo a lição do médico psiquiatra forense Hewdy Lobo: “a realidade carcerária do indivíduo preso; a sua saúde física; a presença de distúrbios psíquicos ou transtorno mental; a personalidade, a autocrítica, principalmente traços de psicopatia e grau de risco de violência; funcionamento psicológico e neuropsicológico; as suas condições sociais, como condições socioeconômicas, vínculos afetivos; entre outros aspectos fundamentais para se conhecer os fatores que podem influenciar em possível conduta criminosa” (cf. https://lobo.jusbrasil.com.br/artigos/532767774/o-que-e-exame-criminologico).
E, no dizer de Breno Montanari Ramos, médico, psiquiatra e então membro do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo, sobre o exame criminológico:
“A demanda se identifica com o termo parecer compreendido como o instrumento portador da interpretação profissional auferida a partir do movimento metodológico decorrente do estudo social, psicológico e psiquiátrico. Estes, baseados em entrevistas, abordagens, acompanhamento, obtenção de dados através de documentos, informações dos vários setores da unidade e visitas domiciliares no intuito de se ampliar ao máximo o conhecimento da situação do preso pela equipe profissional.
(…)
O exame criminológico compõe-se de informações jurídico- penais (histórico da infração cometida pelo recuperando), exame clínico (saúde individual), neurológico, psicológico, psiquiátrico e o exame social (relato sobre a família, pai, mãe, irmãos, quantos filhos, etc.). A conclusão deve abranger todas as avaliações realizadas, associando-as com relatórios das várias diretorias da unidade para fornecer ao Juiz dados que permitam uma ampla visão do reeducando na obtenção dos benefícios pleiteados” (Cf. Construção do Exame Criminológico, in Revista de Criminologia e Ciências Penitenciária, nº 1, agosto de 2011).
Aplicação e previsão
A realização do exame criminológico, como ato de natureza processual, não tem relação com o delito. Consequentemente, a regra do §1º do artigo 112 da LEP deve ser aplicada imediatamente, podendo ser exigido mesmo aos agentes que cometeram crimes antes da vigência da nova legislação, segundo os parâmetros do artigo 2º do Código de Processo Penal.
Na lição de E. Magalhães Noronha, o “fundamento da aplicação imediata da lei processual é que se presume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos interesses da Justiça, salvaguardar melhor o direito das partes, garantir defesa mais ampla ao réu” (Cf. Curso de direito processual penal, 18ª ed., atualizado por Adalberto José Q.T. de Camargo Aranha, São Paulo, Ed. Saraiva, 1987, p. 13).
E como preleciona Hélio Tornaghi, ao tratar da aplicação da lei processual no tempo, “Nenhum ato do processo poderá ser praticado a não ser na forma de lei que lhe seja anterior, mas nada impede que ela seja posterior à infração penal. Não há, neste caso, retroatividade da lei processual, mas aplicação imediata. Retroatividade haveria se a lei processual nova modificasse ou invalidasse atos processuais praticados antes de sua entrada em vigor. E é o próprio dispositivo legal que ressalva: ‘sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’” (Cf. Instituição de Processo Penal, vol. 1, 1ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1959, p. 168).
Consigne-se, também, que sequer se trata de uma prova que não existia anteriormente para fins de concessão de progressão de regime ou livramento condicional. A previsão do exame criminológico remonta da vigência da Lei nº 7.210 de 1984 e, apesar das alterações legislativas sobre o tema, o artigo 8º da LEP sempre previu expressamente sua realização com vistas à individualização da execução (grifo do articulista):
“Art. 8º. O condenado ao cumprimento de pena privativa de liberdade, em regime fechado, será submetido a exame criminológico para a obtenção dos elementos necessários a uma adequada classificação e com vistas à individualização da execução.
Parágrafo único. Ao exame de que trata este artigo poderá ser submetido o condenado ao cumprimento da pena privativa de liberdade em regime semiaberto.”
Da mesma forma, a jurisprudência tem admitido a realização do exame criminológico, desde que a decisão que o determinasse fosse motivada. Nesse sentido, a Súmula nº 439 do Superior Tribunal de Justiça:
“Admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.
Confira-se no Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de realização do exame criminológico para fins de constatação do atendimento do requisito subjetivo para a concessão de benefícios executórios: Rcl 35.299 AgR, relator(a): (Rcl 63.371 AgR, relator: Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 27/11/2023, Processo Eletrônico DJe-s/n, divulgação: 7/12/2023, publicação 11/12/2023; (HC 177.430, relator(a): Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 18/10/2023, Processo Eletrônico DJe-s/n, divulgação 20/10/2023, publicação: 23/10/2023; Cármen Lúcia, relator para acórdão: Gilmar Mendes, 2ª Turma, julgado em 23/8/2019, processo eletrônico DJe-248, divulgação: 11/11/2019, publicação: 12/11/2019).
Individualidade da pena e o exame criminológico
A sujeição do preso a essa perícia não afeta diretamente os direitos fundamentais do condenado, que efetivamente deve se sujeitar ao tratamento ressocializador no cumprimento da pena, sendo imprescindível avaliar-se o seu sucesso, atendendo-se a regra constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI, CF). E se sua conclusão for desfavorável, então o exame criminológico terá atendido seus objetivos de evitar a concessão de um benefício a quem não apresenta condições pessoais para ser colocado em um regime menos rigoroso de cumprimento de pena.
Frise-se que a apreciação do mérito do condenado tem como objetivo, também, evitar a transferência para o regime mais brando ou a concessão do livramento condicional daqueles que não estão preparados para a vida social, em atenção à segurança social. Como bem ensina Enrico Ferri, “a pena individualmente aplicada não pode ter senão uma destas duas finalidades – o tornar inócuo o delinquente incorrigível e incurável ou reeducar para a vida social o delinquente emendável e curável – disso resulta que a execução da sentença adquire, na realidade prática, o maior grau de eficácia defensiva e, portanto, de utilidade social” (cf. Princípios de Direito Criminal, 2ª ed., Ed. Bookseller, 1998, p. 341).
Por isso, o mérito do condenado não pode ser avaliado, tão-somente, com um atestado de bom comportamento carcerário de um diretor de estabelecimento penitenciário. Como é evidente, esta informação é muito restrita, simplória até, gerada por um critério administrativo desconhecido ao juiz (assim como ao Ministério Público) e por um profissional normalmente não afeto às questões relacionadas com o processo ressocializador do condenado.
Preciso é o ensinamento de Mirabete sobre esse aspecto da progressão:
“Não basta o bom comportamento carcerário para preencher o requisito subjetivo indispensável à progressão. Bom comportamento não se confunde com aptidão ou adaptação do condenado e muito menos serve como índice fiel de sua readaptação social” (cf. Execução Penal, São Paulo, 1987, Ed. Atlas, p. 294).
Como destaca Vilson Farias:
“Pensar em individualidade da pena equivale a pensar em exame criminológico”. Prossegue, “o exame criminológico será capaz de apresentar um quadro delineador da personalidade do acusado, o qual será de imensa valia quer para o julgador, quer para o tribunal, quer para as autoridades encarregadas da execução da pena. Finalmente, deve ainda conter o exame criminológico recomendações apresentando sugestões capazes de gerar um programa de ação psicossocial que possa garantir a defesa da sociedade pela proteção do delinquente, sem esquecer de determinar a probabilidade de reincidência ou de ressocialização do indivíduo, para desse modo se conseguir uma ação educativa e preventiva do Direito Penal” (cf. O exame criminológico na aplicação da pena, Revista Brasileira de Ciências Criminais nº15, p. 269-298).
Essa é, também, a conclusão de Guilherme de Souza Nucci sobre o tema:
“Realizar um programa individualizador no começo do cumprimento da pena (art. 6º, LEP) e um exame criminológico (art. 8º, LEP), sem haver solução de continuidade, quando for indispensável para obtenção do resultado concreto do programa fixado para o preso, seria inútil. Para que o juiz não se limite a requisitos puramente objetivos (um sexto do cumprimento da pena + atestado de boa conduta carcerária), contra os quais não há insurgência viável, privilegiando o aspecto subjetivo que a individualização – judicial ou executória – sempre exigiu, deve seguir sua convicção, determinando a elaboração de laudo criminológico, quando sentir necessário, fundamentando, é certo, sua decisão, bem como pode cobrar da Comissão Técnica de Classificação um parecer específico, quando lhe for conveniente” (cf. Primeiras Considerações sobre a Lei nº 10.792/03, artigo no endereço eletrônico “cpc.adv.br.doutrina/processual penal”).
Conclusão
A elaboração do exame criminológico para fins de progressão deve ser compreendida no âmbito do princípio constitucional da individualização da pena. Realizar um processo individualizador da pena sem pesquisar satisfatoriamente a resposta do preso ao tratamento penitenciário é negar-se a própria existência dessa individualização e o sistema adotado no Brasil, isto é, o de obtenção de benefícios com base no merecimento do executado. Aliás, nos termos da Exposição de Motivos da LEP, o mérito é “o critério que comanda a execução progressiva” (item 29).
Como se vê, a Lei nº 14.843/2024, ao reformular a redação do § 1º do artigo 112 da Lei 7.210/84, não alterou os efeitos penais de qualquer benefício executório, não criou requisito objetivo/material para progressão de regime e nem agravou ou abrandou seus requisitos objetivos materiais, assim não interferindo na individualização da reprimenda e, consequentemente, não se caracterizando como norma de natureza penal.
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