Cerca de três mil adolescentes já fizeram os cursos oferecidos pelo Senac em Ribeirão Preto e muitos estão no mercado de trabalho
O semblante de alegria, quase infantil, parece não ter relação com os três pedidos a serem preparados pelo jovem Lucas* em uma pequena cozinha de um restaurante que funciona em uma casa na Vila Tibério. Há três meses trabalhando no local, ele já faz parte das tarefas sozinho, sem ajuda do cozinheiro-chefe. Essa autonomia foi conquistada a partir de uma escolha que Lucas fez há cerca de dois anos, quando fez um curso livre ligado ao trabalho na cozinha.
Hoje, com 19 anos, Lucas mora com a avó materna em um apartamento no Jardim João Rossi, na zona sul da cidade. “Meu objetivo é fazer o curso de gastronomia e abrir meu próprio restaurante, mas eu sei que até lá o caminho é longo”, diz o ajudante de cozinha enquanto se prepara para caminhar 15 minutos e pegar dois ônibus do trabalho até a casa da avó. “Já me acostumei”, ele diz. O trabalho começa às 7 horas da manhã e vai até às 4 horas da tarde, de segunda a sexta-feira e em sábados alternados.
A rotina de ajudar no preparo da comida, que tem como principais clientes empresas da região da Vila Tibério e Sumarezinho, parece bem melhor para Lucas do que a que ele viveu tempos atrás. Entre os 16 e 17 anos, o ajudante de cozinha cumpriu medida socioeducativa na Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (CASA) de Ribeirão Preto, sem muitas perspectivas para o futuro, depois de ser pego pela polícia vendendo drogas pela terceira vez em alguns meses.
“Foi um período bem complicado, eu não desejo isso pra ninguém. Mas um dia lá dentro vieram me perguntar se eu queria participar de um curso que ensinava a fazer lanche. No começo eu achei que era perda de tempo, mas não tinha nada melhor pra fazer”, conta sorrindo sobre as aulas de gastronomia oferecidas pelo Senac na Fundação CASA. Também foi uma forma de focar em coisas diferentes das que o levaram até ali.
Desde 2015, as duas instituições mantêm um projeto para mostrar que há novos horizontes para meninos que muitas vezes não têm o que enxergar. “Docinhos para Festa”, “Preparo de Pizzas” e “Preparo de Lanches e Sucos” são alguns dos cursos ministrados por docentes do Senac de Ribeirão Preto, que se deslocam até a Fundação CASA duas vezes por semana.
“Utilizamos uma cozinha pedagógica equipada com todos os utensílios e maquinários necessários. Levamos para lá insumos e alguns utensílios específicos para cada curso e executamos tudo na cozinha pedagógica. Mesmo com o controle de segurança necessário, usamos os mesmos materiais que utilizamos fora dos centros”, explica o professor de gastronomia e sommelier Pedro de Guide (na foto ao lado).
Gabriel Bratfich Penteado (foto abaixo), coordenador do Senac Ribeirão Preto, explica como a grade de cursos é pensada. “São selecionados de acordo com as demandas de cada casa e o perfil dos meninos. A maioria dos títulos são de formação inicial para que o aluno consiga experimentar um pouco de diferentes áreas. Básico em PowerPoint, atendimento ao cliente, preparo de pizza, habilidades profissionais, empreendendo um pequeno negócio, atendimento e os direitos do consumidor, customização de camisetas e história em quadrinhos são algumas das opções de curso.”
A maioria dos cursos tem uma carga horária de 50 horas cada, sendo concluídos entre dois e três meses de aula. “Os alunos já recebem o certificado na última aula se atingirem 75% de presença”, afirma Gabriel. A escolha da grade de cursos oferecida segue o Plano Individual de Atendimento (PIA), desenvolvido em conjunto pelos adolescentes e uma equipe multiprofissional dos centros em que cumprem medidas socioeducativas, como um plano de metas das aulas. A participação nos cursos é voluntária.
MILHARES DE CERTIFICADOS
Em junho, um grupo de 102 adolescentes que cumprem medida socioeducativa na Fundação CASA de Rio Pardo e Ribeirão Preto concluiu os cursos deste trimestre. Eles fazem parte do segundo ciclo de formações profissionais para jovens internados neste ano, realizado entre abril e junho.
Para celebrar a certificação, os jovens participaram de cerimônias de formatura, no auditório do Senac, semelhantes às de turmas regulares. Com a presença dos pais da maioria dos formandos, a única diferença era o aviso expresso de que era proibido tirar fotos. "Os rapazes precisam aproveitar cada momento e o conhecimento adquirido, buscando uma nova direção para as próprias vidas após a desinternação", afirmou o diretor do CASA Rio Pardo, Paulo Marcelo Fernandes, durante a cerimônia.
"Os jovens se dedicaram muito nos cursos neste ciclo", disse o coordenador pedagógico da Fundação CASA, Eliano dos Anjos. "Torço para que deem continuidade na formação em outros cursos e, com isso, possam até empreender com os conhecimentos adquiridos."
O professor Pedro enxerga sucesso no projeto. "A experiência é muito gratificante, foi um desafio novo para mim, há quase dez anos. Foi pelo projeto da Fundação CASA que eu comecei a trabalhar no Senac. Eu acho muito legal essa troca. Eu aprendo muito com os alunos também e percebo que muitos se apaixonam pela área de alimentos e bebidas. Conforme eles vão avançando nas técnicas, aprimorando as preparações, eles vão ficando mais animados. Isso é muito positivo para os funcionários, para os alunos, para o professor e para a instituição como um todo.”
Segundo o docente, muitos ex-internos o procuram para saber mais sobre a área depois que terminam de cumprir as medidas socioeducativas. “Não é fácil garantir que todos procurem trabalho na área ou cursos do Senac após a desinternação, mas temos muitos casos positivos de alunos que se empenharam, gostaram e melhoraram a vida deles e de suas famílias e estão na área hoje”.
Lucas diz que, assim que saiu da Fundação, pediu ajuda para a avó. “Eu comecei a cozinhar em casa mesmo e minha avó soube dessa vaga de trabalho através de uma amiga dela. Eu fiz um teste e fui contratado. Foi uma festa”, diz.
Segundo o Senac, cerca de três mil alunos se formaram em Ribeirão Preto, e 33 mil alunos foram certificados em todo o estado desde o início da parceria. "O objetivo aqui é ensinar habilidades práticas e também abrir portas para novas oportunidades e perspectivas. Ver os jovens se dedicarem, se capacitarem e conquistarem seus certificados é um testemunho poderoso do impacto positivo que essas ações podem ter no futuro de cada um deles, uma vez que esses certificados podem ser diferenciais no momento de buscar colocação profissional", acredita a presidente da Fundação Casa, Claudia Carletto (foto ao lado).
Apesar disso, não há um número de alunos que seguiram os caminhos gastronômicos. A socióloga e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Ana Paula Galdeano, explica que “além da educação, saúde, cultura, esporte, lazer e assistência social também precisam estar presentes na vida desse jovem para uma ressocialização completa”.
Na pesquisa “Tráfico de Drogas entre as Piores Formas de Trabalho Infantil”, Ana Paula aponta que é preciso ter cuidado para que os adolescentes não sejam inseridos em formas perversas e mal remuneradas de trabalho. Ela descobriu que muitos ex-internos se encontram em trabalhos informais com condições precárias. “Essa situação, muitas vezes, vai levar o jovem de volta ao tráfico de drogas novamente, que nada mais é do que apenas mais um trabalho exploratório na trajetória desses meninos e meninas”, conclui.
FUNDAÇÃO CASA EM NÚMEROS
Os três centros socioeducativos do Complexo Ribeirão Preto – Cândido Portinari, Ribeirão Preto e Rio Pardo – oferecem juntos 286 vagas, a maioria destinada à medida socioeducativa de internação, com prazo máximo de três anos de privação de liberdade. Atualmente, 223 adolescentes cumprem medida socioeducativa no local. Em todo o Estado de São Paulo, 4.991 jovens permanecem nos 113 centros socioeducativos espalhados em 45 municípios paulistas. Segundo o Ministério Público de São Paulo, metade desses internos cumprem medidas por envolvimento com tráfico de drogas.
*nome fictício
Foto: Divulgação / Fundação Casa
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