Advogado apresenta efeitos da entrega de unidades prisionais a empresas de gestão
O sistema prisional do Amazonas foi mais uma vez palco de um massacre de parte de seus detentos, repetindo situação ocorrida dois anos antes. No centro da questão está a Umanizzare, empresa privada responsável pela gestão e seis unidades no estado, entre elas o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), local onde ocorreram as mortes em 2017.
Para Guilherme Pontes, advogado da Justiça Global e pesquisador no programa sobre Violência Institucional e Segurança Pública da entidade, a privatização de unidades penitenciárias atende apenas aos interesses das empresas que passam a gerir as unidades. Melhorias na gestão? "Nenhuma", afirma o especialista. O valor repassado às empresas, além disso, costuma ser maior que a média das prisões "públicas".
Confira abaixo.
Brasil de Fato: Há dados confiáveis sobre o número de presídios privatizados no Brasil?
Guilherme Pontes: Em relação às parcerias público-privadas, o levantamento que eu conheço é da Pastoral Carcerária nacional. Salvo engano, de 2014. Um dado, portanto, possivelmente desatualizado, que apontava a existência de 30 unidades prisionais de regime de PPP [Parceria Público Privada] ou cogestão. Em Santa Catarina, no Espírito Santo,em Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas e Amazonas.
Da parte do Estado, não há nenhum levantamento?
Essa é uma questão que atravessa todo o debate da questão carcerária: a insuficiência ou ausência de dados. Em 2017, nós fizemos uma audiência na Corte Interamericana [de Direitos Humanos] em que foram tratados quatro casos de unidades de privação de liberdade, todos os quatro sendo objeto de medidas provisórias da Corte. O que chamou a atenção foi a inconsistência dos dados apresentados pelo Estado brasileiro à Corte. Enviaram um relatório com um conjunto de dados contraditórios entre si, do ponto de vista da população prisional e até mesmo do número de unidades prisionais existentes no país.
Quais são os efeitos da privatização?
O que a gente pode afirmar, de forma geral, são pelo menos três consequências diretas desse processo de privatização: a precarização dos trabalhadores, a falta de transparência em relação à população prisional e à administração penitenciária, e o aumento de gastos do Estado no repasse de verbas para as empresas administradoras.
Os custos caem?
Na verdade, o que a gente observa é que o repasse para unidades privatizadas é maior. Em Minas Gerais, o contrato firmado entre o Estado e a empresa administradora garante o preenchimento de 90% das vagas das unidades até o término dos 27 anos de duração do contrato. E se não foram preenchidas, o Estado faz o repasse mesmo assim.
A média, em Minas, era de R$ 1.800 mensais por preso nas penitenciárias públicas e, em Ribeirão das Neves, se acordou o valor de R$ 2.700 mensais.
Mas a qualidade do tratamento dado diretamente aos aprisionados não melhora? A situação no Amazonas está em evidência, ela não é uma exceção?
De forma nenhuma. O relatório do Ministério Público do Amazonas revela que a Umanizzare, que é a empresa gestora, recebe R$ 4.700 por preso. Muito acima da média nacional. Nesse presídio, em 2017, foram 56 presos mortos em janeiro. Mais recentemente, mais 55 presos foram assassinados. Mesmo depois do massacre de 2017, o governo do Amazonas prorrogou os contratos em 2018.
Na normalidade do funcionamento da unidade, havia racionamento de água, não tinha oferta de trabalho, não tinha colchões suficientes, faltava medicação, os kits de higiene eram de má qualidade e não havia regularidade em sua entrega. Faltavam horário e espaço adequados para visita íntima e religiosa. Um cenário muito semelhante ao que se vê nos presídios do país, inclusive nos geridos diretamente pelo Estado.
A empresa utilizou parte do dinheiro recebido do Estado, em 2014, para fazer significativas doações para a campanha de candidatos ao governo do estado e à Assembleia Legislativa do Amazonas. Quais são os interesses que a Umanizzare tem em determinados mandatos e projetos pautados por esses parlamentares?
Outro caso emblemático é Pedrinhas [no Maranhão]. Entre 2013 e 2014, foram regustrada mais de 60 mortes. [A penitenciária] Ficou conhecida internacionalmente pelas suas condições degradantes e também tem a maior parte de seus serviços privatizados. O que se vê é que não há nenhuma melhora por conta da privatização.
Para além da gestão dos presídios, em termos de política criminal, o que a privatização gera?
A privatização, na nossa opinião, não tem nada de positivo para o conjunto da sociedade. É uma medida que beneficia apenas empresários interessados em lucrar com a privação de liberdade. Privatizar o sistema prisional significa buscar mais vagas. Buscar mais vagas é buscar mais presos.
É muito temerário se entender que é intensificando o sistema prisional que vai se resolver o estado de coisas inconstitucional identificado pelo STF [Supremo Tribunal Federal] nas prisões brasileiras. Isso contraria o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Comissão Interamericana, da ONU, que são unânimes em apontar que o Brasil deve reduzir sua população prisional e reverter a tendência de superencarceramento. Não é possível construir vagas que acompanhem o ritmo de expansão do encarceramento.
O caminho para efetivamente superar esse estado de coisas é fazer uma redução drástica da população prisional, diminuir os índices de aprisionamento provisório. Adotar uma política que reverta esse crescimento exponencial. Não há como se falar em humanização de presídios quando o déficit é de 300 mil vagas.
Na nossa compreensão, a privatização não está de acordo com as normas. Seja em relação aos tratados internacionais, e são tratados com caráter vinculante para o Brasil, seja do ponto de vista constitucional: a custódia de pessoas privadas de liberdade é dever do Estado e não deveria ser terceirizada.
Edição: Vivian Fernandes
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