A Lei 14.834/2024, recentemente aprovada pelo Congresso, introduziu importantes modificações na Lei de Execução Penal. Embora a imprensa tenha se ocupado especialmente das alterações relativas à saída temporária, houve importante mudança na progressão de regime, que será examinada no presente trabalho.
A mencionada lei realizou modificações no artigo 112, § 1º, da Lei de Execução Penal, com a definição da seguinte redação: “em todos os casos, o apenado somente terá direito à progressão de regime se ostentar boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento, e pelos resultados do exame criminológico, respeitadas as normas que vedam a progressão”.
O Brasil adotou o sistema progressivo quanto à execução da pena privativa de liberdade, permitindo que o condenado avance nos regimes fechado, semiaberto e aberto, de acordo com critérios objetivo (parte da pena cumprida) e subjetivo (mérito do condenado) [1], os quais estão em consonância com o princípio da individualização da pena (artigo.5º, XLVI, CF) e atendem aos requisitos do artigo 33 e seguintes do Código Penal.
A redação original do artigo 112 da Lei de Execução Penal previa a progressão de regime de acordo com dois requisitos o cumprimento de 1/6 da pena no regime anterior, mérito do condenado e parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico [2], quando necessário [3].
A Lei 10.792/2003 modificou o dispositivo acima citado, exigindo apenas o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e a demonstração do bom comportamento carcerário, por meio de documento fornecido pelo diretor do estabelecimento prisional. Excluiu-se, portanto, o exame criminológico [4].
Já a Lei 13.964/2019 sobreveio para oferecer novos patamares de cumprimento de pena, distinguindo-os por natureza do crime, grau de concorrência e reincidência, mantendo-se o requisito subjetivo de bom comportamento carcerário (artigo 112, caput e § 1º) [5].
Finalmente, a Lei 14.843/2024 manteve o critério objetivo incorporado à legislação pelo Pacote Anticrime, mas alterou o § 1º, do artigo 112 da Lei de Execução Penal, que fixou como critério para progressão de regime a ostentação de “boa conduta carcerária, comprovada pelo diretor do estabelecimento” e “resultados do exame criminológico”, impondo obrigatoriedade para a sua realização.
Carga ideológica
A despeito do exame, este tem natureza jurídica de perícia, que tem como enfoque a dinâmica do delito praticado e em seu conteúdo deve constar um diagnóstico e prognóstico criminológico [6], não vinculando o juiz, que, por meio da motivação da sua decisão, pode decidir de forma contrária [7].
Além disso, ele “contém grande carga ideológica no sentido de que, elaborado por um expert, apresenta-se como argumento de autoridade ao juiz” [8] e “seu conteúdo é elaborado segundo as categorias da criminologia clínica e suas conclusões voltadas à previsão de um comportamento futuro do sujeito não são, em absoluto, ‘científicas’” [9].
Examinando cronologicamente os dispositivos citados, observa-se que a exigência do exame criminológico perdurou até 2003, quando houve a revogação do dispositivo. A partir de uma construção jurisprudencial, entendeu-se que apesar da mudança legislativa, o juiz, com base nas peculiaridades do caso concreto, poderia motivadamente exigi-lo para fins de progressão de regime.
Esse entendimento foi retratado na Súmula Vinculante 26 do Supremo Tribunal Federal, a qual dispõe que “para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”, bem como na Súmula 439, do Superior Tribunal de Justiça, na qual se assentou que “admite-se o exame criminológico pelas peculiaridades do caso, desde que em decisão motivada”.
Obrigatoriedade do exame criminológico
Diante disso, a mudança do artigo 112, § 1º, da Lei de Execução Penal retoma a obrigatoriedade do exame criminológico para fins de progressão de regime, atraindo assim o interesse acerca da sucessão de leis penais e seu conteúdo. A presente análise é relevante ao se considerar que a doutrina aborda tão somente a normativa da execução penal como sendo de natureza mista — jurisdicional e administrativa [10] —, no entanto, não há uma discussão efetiva sobre a lei penal no tempo e o advento de dispositivo mais gravoso na esfera do cumprimento da pena.
De qualquer forma, não se pode olvidar que a própria Constituição preceitua ser irretroativa a norma penal, salvo quando beneficiar o réu (artigo 5º, inciso XL), bem como o teor da Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal, que dispõe que “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao Juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna”.
Como dito, o novo teor da Lei de Execução Penal estipula os seguintes requisitos objetivo e subjetivos para fins de progressão: i) tempo de pena cumprido, de acordo com os critérios dados pelo legislador de natureza do crime, grau de concorrência e reincidência (artigo 112, I a VII); ii) bom comportamento carcerário, mediante documento fornecido pelo diretor do estabelecimento prisional (artigo 112, § 1º, primeira parte); iii) resultados do exame criminológico (artigo 112, § 1º, segunda parte).
No tocante aos requisitos i e ii, houve a manutenção do regramento anterior, não incidindo qualquer reparo a ser feito. Por outro lado, quanto ao requisito iii, verifica-se a possibilidade de duas construções doutrinárias.
A primeira delas no sentido de que o exame criminológico foi inserido na lei apenas para reforçar a posição já consolidada dos tribunais, ou seja, assegurar o entendimento construído na Súmula Vinculante 26 do Supremo Tribunal Federal e na Súmula 439 do Superior Tribunal de Justiça.
Neste caso, o exame criminológico continuaria a ser facultativo, cabendo pontualmente em determinados casos, desde que devidamente motivado. A segunda posição representaria a obrigatoriedade do exame criminológico para todas as progressões de regime, tornando-o mais um requisito para a evolução na execução penal.
Considerando as duas possibilidades [11], a primeira vertente não resultaria em problemas de sucessão de leis, visto que apenas reafirmaria o quadro já existente e consolidado no âmbito dos Tribunais. Em contrapartida, a segunda vertente representaria lei mais grave, sujeita aos critérios da lei penal no tempo, visto que até então o exame criminológico era desnecessário, a não ser em casos pontuais, mas passando a representar mais um requisito para fins de progressão de regime.
Segundo a doutrina, “qualquer alteração legal da lei de execução que possa prejudicar o condenado ou a pessoa presa somente poderá ser aplicada aos que cometerem o delito após sua vigência” [12]. Na mesma linha, Andrei Zenkner Schmidt esclarece que tanto as normas penais quanto as normas processuais materiais estão sujeitas ao princípio da anterioridade, não podendo retroagir caso sejam mais gravosas ao condenado [13].
Nessa perspectiva, em se tratando de norma penal menos benéfica, a regra é que não deve retroagir para processos que tramitam anteriormente à vigência da novel legislação. No ponto, Norberto Avena afirma que qualquer norma posterior que seja mais gravosa, evidentemente não possui aplicação aos casos julgados e, no que se refere à lei posterior que afasta ou restringe a concessão de benefícios carcerários de apenados, em respeito ao direito adquirido (artigo 5º, XXXVI, CF), deve ser assegurada a aplicação da lei anterior [14].
No debate a respeito da Súmula Vinculante 26, os ministros do STF alertaram que existiam em 2003 80 mil presos na fila para a realização do exame criminológico, o que resultava na inviabilização das progressões de regime pela demora estatal [15], demonstrando assim ampla possibilidade de incidir maior demora na prestação jurisdicional e, por consequência, maior prejuízo ao reeducando.
Como afirma Alamiro Velludo Salvador Netto, “a vitória da perspectiva da segurança sobre o ideal de ressocialização dos condenados à legislativamente traduzida em normas que dificultam a progressão dos regimes prisionais” [16].
O Brasil conta com mais de 800 mil pessoas presas [17], subsistindo o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário. Desse modo, não parecendo lógico adicionar critérios que de forma indiscriminada e sem exame do caso concreto, dificulte a progressão de regime dos condenados.
Portanto, caso se entenda como requisito obrigatório para toda e qualquer execução penal, defende-se que o exame criminológico somente poderá ser exigido para crimes praticados após a Lei 14.843/2024 por se tratar de novatio legis in pejus, a fim de se assegurar a irretroatividade da lei penal mais gravosa ao condenado (artigo 5º, XL, CF)
________________________________
[1] DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 815.
[2] Exposição de motivos da Lei de Execução Penal. Item 34 – 34. O Projeto distingue o exame criminológico do exame da personalidade como a espécie do gênero. O primeiro parte do binômio delito-delinquente, numa interação de causa e efeito, tendo como objetivo a investigação médica, psicológica e social, como o reclamavam os pioneiros da Criminologia. O segundo consiste no inquérito sobre o agente para além do crime cometido. Constitui tarefa exigida em todo o curso do procedimento criminal e não apenas elemento característico da execução da pena ou da medida de segurança. Diferem também quanto ao método esses dois tipos de análise, sendo o exame de personalidade submetido a esquemas técnicos de maior profundidade nos campos morfológico, funcional e psíquico, como recomendam os mais prestigiados especialistas, entre eles Di Tullio (“Principi di criminologia generale e clínica”, Roma, V ed., págs. 213 e seguintes), BRASIL. Câmara dos deputados. Legislação Informatizada – LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984 – Exposição de Motivos. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1980-1987/lei-7210-11-julho-1984-356938-exposicaodemotivos-149285-pl.html. Acesso em: 17 abr. 2024.
[3] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva, com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo Juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos 1/6 (um sexto) da pena no regime anterior e seu mérito indicar a progressão. Parágrafo único. A decisão será motivada e precedida de parecer da Comissão Técnica de Classificação e do exame criminológico, quando necessário.
[4] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
[5] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos: I – 16% (dezesseis por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; II – 20% (vinte por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido sem violência à pessoa ou grave ameaça; III – 25% (vinte e cinco por cento) da pena, se o apenado for primário e o crime tiver sido cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; IV – 30% (trinta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime cometido com violência à pessoa ou grave ameaça; V – 40% (quarenta por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, se for primário; VI – 50% (cinquenta por cento) da pena, se o apenado for: a) condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário, vedado o livramento condicional; b) condenado por exercer o comando, individual ou coletivo, de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; c) condenado pela prática do crime de constituição de milícia privada; VII – 60% (sessenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado; VIII – 70% (setenta por cento) da pena, se o apenado for reincidente em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, vedado o livramento condicional.
[6] MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. 21. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 20.
[7] AVENA, Norberto. Execução penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 23.
[8] PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Curso de penologia e execução penal [recurso eletrônico]. 2. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022, p. 265.
[9] PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Curso de penologia e execução penal [recurso eletrônico]. 2. ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022, p. 265.
[10] “A execução penal, no Brasil, possui natureza jurídica mista. Concentram-se na atividade jurisdicional todos os benefícios programados para serem concedidos ao sentenciado, pelo magistrado, quando preenchidos os requisitos legais; cabe ao Judiciário fiscalizar os estabelecimentos penitenciários, acompanhar o desenvolvimento da execução, assegurando o cumprimento do disposto na Lei de Execução Penal, até chegar a proclamar a extinção da punibilidade do condenado. Por outro lado, cabe ao Poder Executivo, em níveis federal e estadual, construir e administrar os presídios, estabelecimentos destinados ao regime semiaberto, bem como as unidades de casas do albergado, pertinentes ao regime aberto.” NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. 7. ed. rev., atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2024.
[11] MADEIRA, Guilherme. Modificações da Lei de Execução Penal – Lei 14843/24. 15 abr. 2024. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3qTxNprVK2k. Acesso em: 17 abr. 2024.
[12] BRITO, Alexis Couto de. 8 ed. Execução penal. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 25.
[13] SCHMIDT, Andrei Zenkner. A crise de legalidade na execução penal. In: Crítica à execução penal: revisada, ampliada e atualizada de acordo com a Lei 10.792/03 que instituiu o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 72.
[14] AVENA, Norberto. Execução penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 104.
[15] STF. Proposta de Súmula Vinculante 30. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SUV_26__PSV_30.pdf. Acesso em: 17 abr. 2024.
[16] NETTO, Alamiro Velludo Salvador. Das alterações na execução de penas. In: Pacote anticrime: comentários à Lei nº. 13.964/2019. São Paulo: Almedina, 2020, p. 44.
[17] WORLD PRISON BRIEF. Disponível em: https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All. Acesso em: 17 abr. 2024.
Nenhum comentário:
Postar um comentário