Um dos temas mais tormentosos e confusos do Direito Financeiro diz respeito às ordens judiciais transitadas em julgado determinando o pagamento de valores contra o Poder Público, conhecidas como precatórios. É um tema tormentoso pois o que deveria ser a regra, o pagamento regular de uma ordem judicial, torna-se uma exceção, jamais se sabendo ao certo quando ocorrerá. E confuso, em face da quantidade de normas que se superpõem estabelecendo exceções e criando regras ao sabor dos grupos de pressão que se formam ao longo da cadeia de créditos que surge.
De fato, o calote no pagamento desses precatórios vem de longe.
Em 1988 o assunto foi regulado na Constituição pelo art. 100, porém, o art. 33 do ADCT instituiu o 1º calote, estabelecendo que os precatórios que estivessem pendentes de pagamento naquela data, seriam pagos em 08 anos.
No ano 2000, através da EC 30, foi acrescido ao ADCT o art. 78, que estabeleceu o 2º calote, postergando o que ainda não havia sido pago por mais 10 anos, com uma pegadinha, pois foi determinada essa forma de pagamento para os precatórios “que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999”, o que projetou o pagamento de 10 parcelas anuais para todas as ações que foram propostas no século passado – seguramente muitas ainda não transitaram em julgado até hoje e se submeterão a esse prazo.
Felizmente, em 2002, através da EC 37, foi acrescido o art. 86 ao ADCT, e foram afastados do prazo de 10 anos de pagamento as requisições de pequeno valor - RPV, que deveriam passar a ser pagas sem a sistemática de precatórios, mas de forma mais simples e direta. Claro que alguns Governadores buscam aplicar dribles, reduzindo o limite para esse o uso desse mecanismo financeiro mais ágil, a fim de transferir o pagamento para a sistemática de precatórios, mais lenta, e que seguramente vai impactar os gastos de seu sucessor.
Em 2009, fruto da EC 62, que inseriu o art. 97 ao ADCT foi criada uma sistemática de pagamento de precatórios que passou a permitir uma espécie de leilão entre o devedor (o Poder Público) e o maltratado credor (jurisdicionado), que obteve em seu favor o reconhecimento judicial de um direito, que transitou em julgado após longuíssimo processo, e não consegue receber. Ou seja, o credor declara devo, não nego, mas só pago se o devedor me der um desconto - e tudo isso amparado por norma constitucional, o que me parece um completo desrespeito ao Poder Judiciário e à cidadania, expressão do princípio republicano.
A EC 62 também estabeleceu o 3º calote, concedendo 15 anos para pagamento de parte dos precatórios dos Estados, Municípios e do Distrito Federal (não foi incluída a União) através de um fundo composto por um percentual entre 1,0% e 2,0% de sua receita corrente líquida, a ser administrado pelo Tribunal de Justiça. Pelo menos metade desse montante deveria ser destinado a pagar os precatórios através da ordem de precedência, sendo o restante utilizado para a sistemática dos leilões.
Contra tal modificação foi interposta a ADI 4357, tendo por relator para o acórdão o líder da divergência Ministro Fux, que tornou a compreensão da matéria ainda mais complexa, ao invés de esclarecê-la.
Agora o senador José Serra propôs a PEC 95/2019 para adiar novamente o pagamento dos precatórios pendentes de pagamento para 2028 – 4º calote -, que já foi aprovada pelo Senado Federal e aguarda votação na Câmara.
Não espanta que muitos credores já tenham morrido ao longo dessa trajetória ou vendido seus créditos judiciais para terceiros, usualmente fundos de investidores, por preços muito abaixo de seu valor de face. Diversos bancos têm formado carteiras de precatórios, visando seu recebimento futuro. Afinal, o Estado pode até adiar o pagamento, através de sucessivos calotes, mas, por definição, não pode falir; logo, se trata de um crédito que seguramente será pago, em alguma data futura – o que determina o deságio aplicado em sua compra.
É nesse contexto jurídico constitucional tormentoso e confuso que o STF concluiu o julgamento do RE 870.947, relatado pelo Ministro Fux, afirmando que o índice de correção monetária aplicável às condenações impostas à Fazenda Pública é o IPCA-E e não a TR. Isso faz com que, considerado o período completo a diferença seja cerca de 65% maior em prol dos credores, isto é, dos jurisdicionados e contra os entes públicos.
A norma em questão é o art. 1o-F da Lei 9.494/97, assim lançado: “Nas condenações impostas à Fazenda Pública, independentemente de sua natureza e para fins de atualização monetária, remuneração do capital e compensação da mora, haverá a incidência uma única vez, até o efetivo pagamento, dos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança”.
No Tema 810 em repercussão geral, o STF interpretou a norma determinando que:
- O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina os juros moratórios aplicáveis a condenações da Fazenda Pública, é inconstitucional ao incidir sobre débitos oriundos de relação jurídico-tributária, aos quais devem ser aplicados os mesmos juros de mora pelos quais a Fazenda Pública remunera seu crédito tributário, em respeito ao princípio constitucional da isonomia (CRFB, art. 5º, caput); quanto às condenações oriundas de relação jurídica não-tributária, a fixação dos juros moratórios segundo o índice de remuneração da caderneta de poupança é constitucional, permanecendo hígido, nesta extensão, o disposto no art. 1º-F da Lei nº 9.494/97 com a redação dada pela Lei nº 11.960/09;
- O art. 1º-F da Lei nº 9.494/97, com a redação dada pela Lei nº 11.960/09, na parte em que disciplina a atualização monetária das condenações impostas à Fazenda Pública segundo a remuneração oficial da caderneta de poupança, revela-se inconstitucional ao impor restrição desproporcional ao direito de propriedade (CRFB, art. 5º, XXII), uma vez que não se qualifica como medida adequada a capturar a variação de preços da economia, sendo inidônea a promover os fins a que se destina.
Como se vê, o item 1 se refere à juros moratórios, estabelecendo-os de modo diferenciado entre dívidas tributárias e não tributárias, de modo coerente e isonômico, através da aplicação do mesmo mecanismo para os créditos e os débitos para com a Fazenda Pública.
Já o item 2 se refere à atualização monetária, afastando o índice da caderneta de poupança, pois implica em restrição inadequada ao direito de propriedade, e permitindo o uso do IPCA-E, mais adequado à reposição do valor do dinheiro. Esse ponto é que permite a revisão dos precatórios que, no período completo entre 2009 e 2019, chega a um percentual aproximado de 65% de diferença.
É curioso que tal decisão, a despeito de vastamente se referir à EC 62, não tenha se limitado a ela, o que aponta para a efetiva aplicação do Tema 810 inclusive para os precatórios da União – exceto se o STF circunscrever extra autos sua decisão aos Estados, Distrito Federal e Municípios, o que não ficou expresso, como se vê na transcrição acima efetuada.
Observe-se que isso vale até mesmo para quem já recebeu os valores, pois o índice correto, segundo determinado pelo STF, possibilita a expedição de precatórios suplementares, visando a recomposição do montante recebido, uma vez que foi rejeitada qualquer modulação em seus efeitos, conforme restou decidido em 03/10/2019.
Ou seja, os credores de precatórios ficarão bastante contentes com a finalização deste julgamento, pois os valores a receber (ou já recebidos) aumentarão substancialmente, a depender do período aplicável.
Caso permaneçam como credores originais, devem organizar uma festa; caso tenham vendido seu direito de crédito, os adquirentes ganharam na Megasena.
Falta apenas receber
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