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- 26/09/2024 09:02
A limitação do pagamento de precatórios de estados e municípios já é antiga. Infelizmente, vez ou outra, o Congresso Nacional acaba incorporando e aprovando projetos absolutamente inconstitucionais que ferem princípios básicos do Estado Democrático de Direito: a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica. Quando é condenado judicialmente, o Poder Público, pela Constituição Federal, tem de cumprir uma ordem de pagamento, que deve ser satisfeita, em regra, no exercício financeiro (ano) seguinte.
Acontece que, no Brasil, infelizmente, as instituições acabam sendo muito condescendentes com o inadimplemento dessas condenações, especialmente no nível estadual e municipal. Ou seja, o Judiciário condena o ente público e, depois de muito tempo, é expedido o ofício requisitório, que acaba virando precatório. E aí o estado ou a prefeitura acabam não pagando. Essa é a lógica que a maioria dos governantes tem na cabeça: simplesmente não pagar dívidas que foram constituídas por administrações anteriores, uma visão distorcida e equivocada de administração pública.
No passado, isso acontecia apenas com os entes subnacionais, já que o governo federal vinha pagando pontualmente os precatórios há pelo menos duas décadas. Mas, em 2021, o governo Bolsonaro resolveu seguir a lógica marota e dar calote nesses pagamentos, situação que foi contornada em 2023, quando o atual governo teve que desembolsar R$ 93 bilhões para livrar o país do risco de ter sua nota de crédito novamente rebaixada no mercado internacional, restabelecendo a normalidade e evitando nova debandada de investidores para outros países que oferecem níveis muito maiores de confiança e segurança jurídica.
Agora, além do regime especial que já existe desde 2009 e permite a estados e municípios parcelarem seus precatórios, se pretende também que esses prazos sejam novamente esticados — não para que o próprio governo se financie, mas apenas para se prorrogar o pagamento aos credores. O Congresso Nacional não pode, a todo momento, editar regras que beneficiem estados e municípios para além daquelas que já foram sucessivamente feitas nas últimas três décadas, protelando indefinidamente o pagamento. Isso é uma solução péssima até para o próprio devedor, porque essa dívida — como nem poderia deixar de ser, pois isso é o mínimo que se há de esperar — é reajustada pela Selic, além de juros compensatórios no caso de desapropriações. Essa dívida deveria merecer uma gestão pública mais eficiente do que a simples inadimplência.
As administrações precisam fortalecer seus instrumentos de conciliação e mediação de conflitos. Só assim irão reduzir as contas de precatórios e os encargos decorrentes de condenações judiciais
Participei da elaboração de duas emendas constitucionais, a 94/2016 e a 99/2017, que trouxeram soluções para esse problema. Chegou-se a um consenso de que as medidas que produziam efeitos positivos eram boas não apenas para os credores receberem seus créditos, mas também para os devedores poderem pagar com uma condição que lhe permitisse tirar menos recursos do tesouro e se socorrer da redução do débito, por exemplo, com os acordos com desconto.
De alguns anos para cá, houve um grande avanço em termos da gestão dos precatórios nos tribunais, especialmente a partir de 2019, com a Resolução 303 do CNJ. Isso implicou uma padronização e uniformização nos procedimentos administrativos para que os tribunais pudessem dar o mesmo tratamento a dívidas de estados e municípios, disciplinando a forma de cálculo da parcela mensal que entidades devedoras enviam aos tribunais de Justiça.
Hoje, àquelas entidades com o maior estoque de precatórios a legislação permite uma flexibilização, até porque estados com maior endividamento criaram um espaço fiscal no orçamento e vêm conseguindo atender esse compromisso, sem prejuízo de outras políticas públicas. Então, não há razão para se imaginar uma folga orçamentária para deixar de pagar os precatórios. E essa flexibilização tem prazo para encerrar, final de 2029. Até lá, estados e municípios precisam efetuar o pagamento do estoque em atraso. Não há espaço para mais flexibilizações, como inclusive já decidiu o STF ao modular os efeitos do julgamento da ADI 4.357, que reconheceu, mais uma vez, a inconstitucionalidade de emendas à Constituição Federal voltadas ao calote dos débitos judiciais. Até pela reiteração da jurisprudência do STF nesse assunto, os legisladores pró-calote deveriam ser mais criativos, pensar em soluções que não fossem, de antemão, proibidas pela Suprema Corte.
Pelo contrário, eles precisam encontrar medidas para tornar mais eficiente a gestão dos precatórios pelas administrações subnacionais, fazendo melhor uso da política de acordos. Em muitos estados e municípios, o acordo não existe ou tem uma lógica perversa, que não leva em conta o tempo de espera do credor, havendo mesmo estados que sequer admitem acordo em precatórios mais recentes. Isso faz com que o credor mais antigo seja obrigado a dar maior desconto para receber o precatório. Essa lógica é completamente absurda. Dever-se-ia exigir daquele que tem o precatório emitido há menos tempo um desconto maior do que de credores mais antigos. Essa é a lógica jurídica, prestigiando quem está há mais tempo na fila.
A compensação com tributos é outra medida que deveria ser incentivada, como fez recentemente o governo de SP, que criou uma lei permitindo pagar ou amortizar débitos tributários com precatórios do próprio estado. Essa possibilidade, inclusive para fins de privatizações, concessões e outorgas, tem sido tratada como algo que reduz a receita de governos, quando deveriam estar direcionadas justamente à redução da dívida.
Em 2021, a FGV publicou um estudo relacionando a inadimplência dos precatórios e o desemprego. Percebeu-se que quando os precatórios são pagos em dia, há uma melhora da taxa de emprego. Quando não se paga, há um avanço do desemprego. Os precatórios pagos por estados e municípios exercem influência regional sobre suas economias. Não pagar precatórios constitui um freio ao desenvolvimento dessas regiões.
Com exceção do calote de 2021/22, o governo federal vem cumprindo essas obrigações judiciais, o que representa também uma sinalização ao mercado de que tem forte compromisso com o pagamento dos títulos da dívida pública. O governo que deve títulos do Tesouro Nacional é o mesmo que deve precatórios federais. Por que se paga aqueles e estes não? Se o governo passa ao mercado a mensagem que não paga precatório, que é dívida pública, porque iria pagar a outra dívida, um título de crédito emitido pelo próprio governo? Isso tem um óbvio reflexo no mercado internacional de crédito, e deveria ser um exemplo também a ser seguido por estados e municípios.
Dizer que o avanço da dívida de precatórios no país é fruto de fraude ou conluio é uma grande bobagem. O fato é que os processos judiciais demoram muito. A administração pública deveria fazer como em outros países: reduzir a excessiva litigiosidade que só o Brasil tem, com um montante de 100 milhões de processos judiciais ativos — a banalização da judicialização de qualquer coisa.
O principal responsável por esse elevado número de demandas é o próprio poder público, que descumpre a legislação o tempo todo, e faz isso de forma proposital para se beneficiar da demora que a Justiça impõe na solução dos casos. É uma lógica perversa, porque o Poder Judiciário acaba consumindo mais recursos públicos, demandando uma enorme infraestrutura, inclusive de servidores públicos que não encontra semelhança em qualquer outra nação, mesmo entre as menos desenvolvidas. A quem essa gigantesca máquina judiciária atende? Ao próprio governo. Cerca de 70% das demandas do Brasil envolvem o poder público, o maior cliente do Poder Judiciário.
Para que o Brasil avance e ingresse no grupo de países que, de fato, respeitam os direitos individuais e conferem segurança às relações jurídicas mantidas com o poder público, cumprir decisão judicial é o mínimo. Quando é condenado, o Estado deve pagar imediatamente, e não esperar aquilo virar uma bola de neve. Quantas causas existem hoje na Justiça da ordem de R$ 500 milhões, R$ 1 bilhão, R$ 5 bilhões? Inúmeras. Isso não é conluio, não é nenhuma fraude. Isso é irresponsabilidade do gestor que não fez o acordo quando deveria fazer, não fez a conciliação que deveria ter feito, não paralisou o processo em que era evidente o direito da contraparte privada, mas simplesmente foi postergando, empurrando, recorrendo a todas as instâncias, propondo ações rescisórias e, depois, rescisória das rescisórias, onerando mais e mais o ente público. É um círculo vicioso que só faz essa despesa crescer. Isso parece óbvio, mas, infelizmente, acontece aos milhares.
Quando se compõe, faz um acordo e concilia, o valor da dívida do governo reduz drasticamente. Só os acordos em precatórios permitem aos estados e municípios uma redução de 40% dos débitos. As administrações precisam fortalecer seus instrumentos de conciliação e mediação de conflitos. Só assim irão reduzir as contas de precatórios e os encargos decorrentes de condenações judiciais. Se continuarem nesse círculo vicioso que se encontram há décadas, descumprindo direitos de servidores públicos, de credores particulares com bens desapropriados sem pagamento da indenização, desrespeitando contratos, esticando os processos por décadas para evitar satisfazer o direito violado, estaremos fadados a continuar gastando muito dinheiro para manter um Estado ineficiente e que descumpre o direito dos cidadãos e das empresas. O Congresso Nacional deveria estar muito mais preocupado com isso do que em reeditar medidas que, vergonhosamente, premiam gestores públicos pela má administração de seus precatórios e aumentam a percepção de que no Brasil o governo não respeita decisão judicial.
Marco Antonio Innocenti, sócio do escritório Innocenti Advogados Associados, é especialista em precatórios, presidente da Comissão de Estudos de Precatórios do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e ex-presidente da Comissão de Precatórios do Conselho Federal da OAB.
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