
A coordenadora geral do Sinase (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Lívia Vidal, afirma que o projeto de lei que amplia o tempo de internação para adolescentes que cometem atos infracionais é uma afronta ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).
O projeto aprovado nessa semana pela CCJ (Comissão de Comissão e Justiça) do Senado, de autoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), prevê um aumento de três para cinco anos no tempo de internação para adolescentes. Em casos com violência, grave ameaça ou equiparados a crimes hediondos, o total pode chegar a dez anos. O texto ainda deve passar pela Câmara dos Deputados.
Para a coordenadora do Sinase, a proposta põe em risco os avanços na legislação que protege crianças e adolescentes no país. "Temos um cenário arriscado", diz a pedagoga e mestre em educação. "Será que esse tempo resulta em redução de violência e de situações de insegurança pública?", questiona.
Internação e maioridade penal
A ampliação reverbera os discursos que defendem a redução da maioria penal no país, diz Vidal. Segundo ela, parlamentares que entoam falas com esse teor se baseiam na sensação de que um ato não está sendo punido de forma "contundente e necessária".
É uma afronta ao ECA, porque estamos falando da aprovação de um projeto de lei como este em um país que tem uma lógica protetiva e educativa em sua legislação.
O sistema prisional mostra que a longa permanência de privação de liberdade não necessariamente resulta em interrupção da prática de ilicitude. Para jovens adolescentes, precisamos de processos educativos para que eles não se envolvam em ato infracional. Precisamos, sobretudo, de uma proposta de segurança pública que reduza o acesso às armas e a entrada de drogas em territórios conflagrados por grupos armados.
Discurso não representa o PT, diz coordenadora
Na década de 1990, a atuação do campo progressista contribuiu para o momento social de promulgação do ECA, no lugar do antigo Código de Menores. Hoje, o projeto de lei do senador Contarato, que foi delegado de polícia, se coloca ao lado dos encampados por senadores da extrema direita, como Flávio Bolsonaro (PL-RJ), que atua pela redução da maioridade penal.
Não parece que tenhamos um diálogo, um discurso que represente o partido. Tivemos a senadora Augusta Brito (PT-CE) que votou contra. Me parece que não há uma unanimidade diante de um cenário constrangedor.
Durante a apresentação da proposta, o senador do PT comparou o Brasil com outros países que teriam maior tempo de internação para adolescentes.
Será que esse tempo resulta em redução de violência e de situações de insegurança pública? Ao comparar com outros países, seria salutar olhar a forma como esses jovens saem depois de dez anos de internação. Será que eles conseguem estar reintegrados e envolvidos na sociedade, com suas famílias, de uma maneira saudável? Comparar anos de cumprimento de medida me parece raso.

Maioria dos jovens punidos é negra
Dados do Sinase apontam que 61,7% dos adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em meio fechado (internação e semiliberdade) são autodeclarados negros. Segundo Vidal, esse número chega a 80% em alguns estados. Isso demonstra, para ela, que um projeto como o proposto por Contarato impacta, sobretudo, a vida de jovens negros.
Quando olhamos para essa experiência, temos um sistema socioeducativo punindo pessoas negras. Mesmo que tenhamos uma perspectiva socioeducativa, educacional, a privação ou restrição de liberdade sempre causa danos.
A ideia que paira por trás de um projeto como esse é a de monstrualização do corpo negro periférico, de racismo estrutural, histórico. Estamos olhando para esse jovem como algoz, como um representante de toda a experiência de violência. Ao lado de quem não queremos nos sentar no ônibus nem andar na calçada, do qual desviamos quando atravessamos a rua. A sociedade vem impondo essa violência cotidiana aos corpos de jovens negros periféricos.
[O projeto propõe] olhar para esse jovem como um grande monstro. Mas, quando comparamos os dados do adolescente autor de atos infracionais que está cumprindo medida socioeducativa com os dados do adolescente que é vítima, de estupro ou de violências diversas, intra e extrafamiliar, observamos que o número de adolescentes que são vítimas é muito maior.
Tráfico e roubo como acesso a renda
Tráfico e roubo somam 58,7% do total de atos infracionais atribuídos a adolescentes em privação de liberdade no ano passado, segundo o Sinase. De acordo com Vidal, jovens que atuam no tráfico de drogas veem na atividade uma forma de obtenção de renda. Ao mesmo tempo, trata-se de exploração de mão de obra infantil.
Se pegarmos um adolescente de 15 anos que acessou o sistema socioeducativo por ato infracional análogo a tráfico de drogas, precisamos analisar o caso como um crime contra a infância. O tráfico de drogas é um dos piores tipos de trabalhos infantis, segundo resolução da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.
São atos que falam para a sociedade que essas pessoas estão buscando acessar renda. Quando juntamos isso com a baixa renda familiar desses adolescentes, estamos dizendo que vamos punir pessoas que têm a experiência do tráfico de drogas à disposição em seu contexto territorial e comunitário. Não estamos falando de um adolescente que sai de casa e não convive com aquilo.
O Sinase aponta que atos infracionais análogos a homicídios equivalem a 12,6%, estupros são 2,4% e latrocínios correspondem a 1,4%.
Não temos nem 15% dos adolescentes cumprindo medida socioeducativa por um ato considerado hediondo. No caso das meninas, quase 90% das que cometeram atos análogos a homicídio o fizeram como resposta a uma violência contínua e reiterada no seu cotidiano. Não é raro ouvir história de adolescente que cometeu homicídio porque não aguentava mais ser estuprada cotidianamente.
Risco de superlotação e violações de direitos
A coordenadora do Sinase explica que hoje quase todas as unidades socioeducativas operam com uma ferramenta do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) que monitora espaços em unidades de internação e semiliberdade para impedir superlotação. Na avaliação dela, porém, o projeto de lei ameaça a volta de um cenário de superlotação.
A superlotação gera tortura e violência entre os adolescentes porque deixa um sistema vazio de atividades educacionais. Com a superlotação, não é possível implementar atividades esportivas, educacionais e culturais. Estar em um alojamento com um número de adolescentes acima do recomendado, sem a possibilidade de se ter uma atividade ou de sair desse espaço, já é em si uma experiência de tortura.

Projeto implica gastos e novos espaços
Na avaliação de Vidal, o projeto de lei não apresenta previsões de orçamento para a construção de novas unidades. Segundo ela, não seria possível destinar o mesmo espaço para um adolescente de 15 anos e um jovem de 25. A previsão da pedagoga é de que seria necessária ao menos uma nova unidade por estado, sendo que o custo de cada uma é de aproximadamente R$ 50 milhões.
Se um adolescente de 15 anos passar dez anos cumprindo internação, ao final da medida, ele estaria com 25 anos. Como vamos ter um espaço de convivência para esses jovens que vão ultrapassar os 18 anos? Existe a prerrogativa do ECA de que são necessários espaços específicos para respeitar a compreensão física, a idade e cada etapa de desenvolvimento dos adolescentes e dos jovens.
Precisaria de um orçamento bastante vultoso, com o apoio do governo federal e dos estados, para que se construa pelo menos uma unidade por estado. Esse é um mínimo básico necessário, que já viola todos os princípios do ECA.
Um dos três princípios da medida socioeducativa é o da educação, da integração e da construção de vínculos fortalecidos com o processo educacional. Vamos pensar num jovem de 18 anos que cumpriria a internação até os 28 anos. Ele teria que fazer graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado para respeitar esse princípio educacional.
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3 comentários
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Neli Aparecida de Faria
Tem que reduzir a menoridade penal para 16 anos! O menor de 18 e maior de 16 anos tem discernimento para votar, como não tem discernimento para saber o que é certo ou não? O grande Galdino Siqueira em seus comentários ao Projeto do Código Penal, 1940, disse que o Legislador copiou do Direito Italiano a menoridade aos 18 anos, dizia ele: nossos menores sabem o que é certo e errado.
Paulo Roberto Pereira Raymundo
O PT tem perdido milhões de votos por causa das posições defendidas pela entrevistada. Já era hora de acordar para o problema da segurança pública. As falas da coordenadora reproduzem o tabu que paralisa as ações do partido em relação ao problema.
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