quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Artistas e adolescentes do socioeducativo dialogam em segunda fase de evento literário

 


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Foto: Rômulo Serpa/Ag. CNJ.
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Adolescentes de 80 unidades socioeducativas de todo o país participaram de mais uma etapa da segunda edição do Caminhos Literários no Socioeducativo, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na última semana. Foram duas tardes de programação orientada para adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa, que apresentaram sua produção artística, falaram de sua relação com a literatura e trocaram experiências com os palestrantes.

“Quando entrei aqui, não sabia que tinha interesse pelos livros e pelas formas de expressão que eles podem abrir. Se a gente procura o recurso do livro, a gente aprende até a não gostar do que está na rua”, compartilhou uma adolescente da Unidade de Internação Feminina de Cariacica (ES), que acompanhou o segundo dia de evento.

Abrindo a programação, a poeta Amanda Timóteo contou sobre a criação do Slam das Minas em Pernambuco. Os slams são uma competição de poesia falada criada nos Estados Unidos nos anos 1980 e que começaram a ser popularizar no Brasil há duas décadas. “Começamos a frequentar os círculos literários e os saraus de poesia e percebíamos o apagamento sistemático das mulheres nesses contextos”, disse. Além dos eventos, o movimento resgatou a prática de fanzines, impulsionando diversas mulheres a lançarem livros. “O Slam das Minas é uma resposta pessoal e coletiva às nossas vivências e de tantas outras mulheres periféricas”.

Camilo Maia, do coletivo Livrinho de Papel Finíssimo, do Recife, contou que o trabalho começou em 2007 com uma xerox alugada. Hoje, produzem também livros com ilustrações coloridas e em gráficas mais convencionais. Ele demonstrou um método simples de criar um fanzine, com apenas uma folha de papel, para incentivar a produção independente de poesia, quadrinhos e outros trabalhos artísticos. Após ouvir a poesia de um dos adolescentes, Camilo encorajou o jovem e os demais. “O talento você já tem. Você pode usar o fanzine como uma forma de levar sua arte. Se você desenha, se você é poeta, se escreve história. Tudo isso cabe nessas seis páginas”, ensinou Maia, finalizando as palestras do primeiro dia.

Poliglota da sua própria língua

Um jovem negro, filho de mãe solo e que cresceu em uma favela carioca é hoje um escritor indicado para o Jabuti, principal prêmio de literatura do país, e com dois livros publicados na maior editora nacional. Geovani Martins, autor de O Sol na Cabeça e Via Ápia, iniciou a programação do segundo dia conversando com adolescentes sobre literatura e a importância de saber se expressar. “A linguagem é uma forma de poder. Quando você mostra que conhece a sua língua, mostra que conhece seus direitos, conhece seu mundo”, disse em.

Segundo ele, as pessoas precisam dominar as várias línguas do mesmo idioma: “Tem uma língua da escola, tem a língua que a gente fala em casa, uma língua que a gente fala na rua. E saber qual língua usar é muito importante”. Martins avalia que sua projeção no meio literário aconteceu justamente por conseguir dominar a linguagem mais formal, ou erudita, e também oralidade das favelas em que ele viveu.

“Quem aqui queria que tivesse um centro cultural na sua quebrada? E quem queria saneamento básico? E escola com biblioteca boa?”, perguntou para os adolescentes o rapper Rafa Rafuagi, um dos principais nomes do movimento Hip Hop gaúcho e que encerrou as palestras desta etapa do evento. Ele defendeu que são necessários mais investimentos nas periferias. “Vocês estão aqui refletindo e ressignificando a vida de vocês. Daqui pra frente tem que ter outra direção a vida de vocês”, defendeu, propondo um pacto com os jovens e colocá-los para pensar como, em 10 anos, é possível “transformar as nossas periferias e as nossas quebradas em lugar com oportunidades, cultura e locais de diversão”.

“Pessoas iguais a nós”

Ao conhecerem trajetórias semelhantes às suas, jovens e adolescentes se sentiram impulsionados a buscar transformações em suas próprias vidas: “Nós estamos vendo pessoas iguais a nós vencendo na vida. Tem gente que entrou no centro socioeducativo e não sabia nem ler nem escrever. Agora já está escrevendo, trabalhando, fazendo curso. Vendo isso daqui, vendo os depoimentos das pessoas de outros estados, a gente se inspira”, conta um adolescente do Centro Socioeducativo Canindezinho, em Fortaleza, Ceará.

A partilha de produções artísticas durante o evento também revelou a expressão criativa dos adolescentes e das adolescentes. Um trecho de uma música escrita por um adolescente no Canindezinho reflete a esperança e o desejo de ser uma influência positiva para sua comunidade:

“Olhando pro céu eu faço a canção
E agradeço a Deus por me dar proteção
Eu olho pro lado e começo a pensar
Será que o meu sonho eu vou realizar?
Na minha mente tem vários refrãos
Que vêm de graça no meu coração
Quero ser referência para os meus irmãos
Pra minha favela, quero ser inspiração.”

O juiz Manuel Clístenes, da 5ª Vara da Infância e da Juventude de Fortaleza, elogiou a iniciativa do CNJ, ressaltando a importância do estímulo à leitura como meio de ampliar horizontes. “Ao oferecer estímulo à leitura, é possível aproveitar o tempo da privação da liberdade para adquirir conhecimento de vida, proporcionando uma aprendizagem significativa. O mundo literalmente se expande diante de você e a leitura possibilita que esses adolescentes percebam que o mundo é muito mais vasto do que a realidade imediata em que vivem”, disse ele ao visitar ao Centro Socioeducativo Canindezinho na última quintúa-feira (7).

Na Unidade de Internação de Brazlândia (UIBRA), no Distrito Federal, a especialista socioeducativa e pedagoga Roberta Borges narrou as diversas formas que a leitura atua como fonte transformadora na vida de adolescentes e como o 2º Caminhos Literários pode expandir a visão de mundo dos internos. “A experiência de ver outras unidades, compartilhar desse momento com outros adolescentes na mesma situação, criando, compondo, mostra que eles também podem desenvolver coisas parecidas. Eu estava no atendimento e perguntei o que eles acharam da atividade. Estavam extremamente empolgados”.

Roberta já presenciou diversos casos de transformação, a exemplo de um adolescente que, a partir da leitura cotidiana e do foco nos estudos, foi aprovado em um concurso municipal e aguarda nomeação. Em outro caso, um jovem que, além de ser o recordista de leituras entre os companheiros, desenvolveu habilidade para compor músicas, tornando-se referência na unidade com apresentações externas e internas, além de ter recebido propostas para trabalhos na área.

Interno da UIBRA, João (nome fictício), é um dos jovens que utiliza a leitura a favor da expressão. Ele compõe músicas sobre a realidade dentro da comunidade, discriminação e resistência. “Fiz uma música lembrando de coisas que eu já tinha passado e me apoiei nos livros de poesia para inspiração. Fiquei muito empolgado de ver os moleques compondo e gravando, mesmo durante a internação. Eu peguei a fala e vou fazer o meu também”.

Sobre o evento

A edição deste ano do Caminhos Literários teve início no último dia 30, com etapa aberta ao público geral e a divulgação do censo inédito sobre projetos e práticas de leitura no sistema socioeducativo. O censo e o evento são parte das atividades do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas do CNJ (DMF) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Uma terceira e última etapa acontece nesta quarta-feira (13), quando adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas darão suas contribuições para a política cultural do Brasil com a primeira Conferência Livre de Cultura no Sistema Socioeducativo. O evento parceria entre o CNJ e o Ministério da Cultura.

Texto: Isis Capistrano, Natasha Cruz e Pedro Malavolta
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias

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