sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DH (CIDH) encerra visita a centros socioeducativos no Brasil





Washington DC – A CIDH agradece a disponibilidade das autoridades para iniciar um diálogo construtivo com a Comissão e as valiosas informações e dados fornecidos durante a visita. Da mesma forma, a Comissão destaca as reuniões com organizações da sociedade civil que trabalham na defesa dos direitos de crianças e adolescentes e de outros atores interessados com quem se reuniu e pelas propostas concretas que fizeram para ajudar a avançar os desafios identificados. A CIDH também enfatiza a importância de se levar em consideração, de maneira séria e constante, a voz e as opiniões de crianças e adolescentes privados de liberdade e suas famílias como parte dos esforços do Estado para identificar os problemas que acometem o SINASE, e para identificar soluções.

No curso da visita, a CIDH pode observar que, de modo geral, a Lei do SINASE, No 12.594 de 2012, adota como referência os princípios da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas, especialmente os princípios da excepcionalidade e da temporalidade da punição, o princípio do melhor interesse da criança, o reconhecimento da condição do desenvolvimento do adolescente, e a consideração de que o objetivo das penas deve ter caráter socioeducativo e focar na reabilitação e na integração social dos adolescentes. A Lei do SINASE prioriza as medidas socioedicativas não privativas de liberdade, regulando uma ampla gama de medidas e proporcionando um caráter excepcional à privação de liberdade em regime fechado, que deve ser aplicada por meio de atenção individual destinada à reintegração ao meio social e familiar, e garantindo os direitos à saúde, educação e formação profissional. No entanto, na prática, como observado, a lei do SINASE enfrenta importantes desafios em sua implementação, sendo a situação mais crítica em alguns estados.

Durante a visita às unidades de internação do SINASE, os Comissárioos encontraram padrões de maus tratos e tortura, tortura e tempos de confinamento excesivos que podem chegar a 23 horaspor dia. No estado do Espírito Santo, verificou-se que as condições de internação e tratamento de adolescentes são semelhantes àquelas referentes a medidas carcerárias devido à falta de agentes socioeducativos qualificados e capacitados, juntamente com os problemas na infraestrutura dos centros. Constatou-se que existe um elevado número de funcionários de segurança e um escasso número de agentes socioeducativos para cumprir com o objetivo de reabilitaçao e integraçao social das medidas nesses centros. Durante a visita, os Comissários receberam denúncias de ameaças e agressões contra adolescentes por agentes socioeducativos, uso abusivo de algemas, confinamento em suas celas ("tranca") e a obrigação, como forma de punição, de permanecer em posições dolorosas por longos períodos de tempo ("procedimento"). Do mesmo modo, foram encontradas instalações contrárias aos fins do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, que vão desde salas precárias, que exigem trabalhos de reparação estrutural, adaptação e manutenção, até dependências educacionais e profissionais deficientes. Além disso, foram relatados problemas com a alimentação em mau estado e se observou a falta de atenção médica dentro dos centros, verificada pela presença, somente uma vez por semana, de um psiquiatra e um médico para atender os internos. Ao mesmo tempo, foram observados avanços em termos de acesso à educação para os internos, o que inclui o acesso regular às aulas, presença de professores de diversas disciplinas e nivelamento dos estudantes.

Durante a visita à Unidade Feminina de Internação (UFI), inaugurada em Outubro de 2017, observaram-se boas condições habitacionais, um espaço materno-infantil e espaço para oficinas profissionalizantes e para aulas. Essas condições observadas estão em maior concordância com os padrões aplicáveis e representam um avanço significativo quanto à situação dos outros centros visitados nesse estado. No entanto, detectou-se que, devido à falta do regime semiaberto, as internas permaneceriam na UFI desnecessariamente.

Durante a visita à CASA Cedro e à CASA Nova Aroeira, ambos no Complexo Raposo Tavares, no estado de São Paulo, os Comissários observaram a existência de estruturas físicas semelhantes às das prisões e receberam informações preocupantes sobre a existência de práticas violentas e sistemáticas  adotadas pela equipe de unidades socioeducativas, como o confinamento dos adolescentes recém-chegados em celas isoladas, onde são submetidos à violência física por vários agentes ("recepção") e a submissão por longos períodos períodos de tempo a posições dolorosas, às vezes nus ("procedimento"), entre outras agressões físicas e verbais, às vezes perpetradas por diferentes agentes ao mesmo tempo. De acordo infromações trazidas à Comissão, algumas dessas práticas seriam justificadas pelos agentes como medidas contra o descumprimento das regras disciplinares internas da instituição. Os internos também relataram que a direção seria omissa em casos de violência perpetrada contra eles e informaram a ocorrência de agressões contra os internos que denunciam esses fatos.

No Estado do Ceará, os Comissários observaram avanços a partir das determinações da Medida Cautelar MC 60-15, resultando em melhoras na infraestrutura e das condições para a oferta de serviços médicos, de higiene, alimentação e educação. A esse respeito, a Comissão observou progressos no que se refere a iniciativas flexíveis de educação para garantir o direito à educação para todos os adolescentes com o objetivo de lhes permitir retomar seus estudos. No entanto, a Comissão expressa preocupação com a incapacidade do Estado de oferecer condições de segurança e garantias para a integridade pessoal dos internos. Os Comissários também foram informados sobre a negação de visitas a adolescentes, de contato com parentes ou de frequência a aulas como sanções.

Da mesma forma, a CIDH foi informada sobre o uso ilegal e injustificado de revistas ou inspeções vexatórias, o que implica que a pessoa deva se despir, e  se aplicaria tanto aos adolescentes internos quanto aos familiares e às visitas. Nos casos dos adolescentes internos, essas revistas ocorrem diversas vezes ao dia, a cada vez que entram e saem de suas celas e outros espaços dentro do centro. Esse tipo de inspeção deve estar sujeita aos princípios da necessidade e da excepcionalidade, sendo aplicável somente nos casos em que situações de risco específicas sejam identificadas. Nesses casos, a Comissão enfatiza que todas as ações devem respeitar a privacidade e a dignidade das pessoas sujeitas a tais revistas. De acordo com as recomendações da CIDH, os controles de segurança devem priorizar os meios eletrônicos de inspeção.

Durante a visita, a Comissão também foi informada sobre a progressiva privatização da gestão dos centros socioeducativos, o que, na prática, poderia fragilizar a segurança dos internos e colocar em risco a independência das ações do sistema socioeducativo e a realização de seus objetivos.

Por outro lado, a Comissão saúda iniciativas apresentadas pelas autoridades para fomentar práticas de justiça restaurativa visando a redução de medidas de internação, com foco em medidas de semiliberdade e em medidas alternativas, como a prestação de serviços comunitários. A Comissão também aprecia iniciativas federais de criação de protocolos de atuação no âmbito dos processos judiciais e de denúncias de casos envolvendo crianças e adolescentes em contato com a lei penal.

A Comissão destaca e aprecia o papel das Defensorias Públicas estaduais na proposição de ações coletivas e individuais para proteger os direitos de crianças e adolescentes em contato com a lei penal e reitera a necessidade de intensificar a cooperação com outros órgãos e instituições públicas, como promotores estaduais e órgãos judiciais, no atendimento de  denúncias de violência, ameaça, tortura e sobre as condições das dependências do SINASE, bem como do tratamento recebido pelos internos. 

Por outro lado, as organizações da sociedade civil manifestaram sua preocupação ante os Comissários quanto à dificuldade de diálogo com os órgãos governamentais responsáveis pela implementação do SINASE; pela falta de acompanhamento das denúncias de tortura e abuso sexual por parte dos Ministérios Públicos estaduais; e pelo atraso processual perante os tribunais estaduais. A esse respeito, a Comissão recorda o dever  dos Ministérios Públicos  de investigar as denúncias de tortura e maus tratos, e o dever do Poder Judiciário, de processar criminalmente, de maneira ágil, imparcial e  efetiva os responsáveis ​​por esses atos.

A CIDH também recebeu informações preocupantes sobre vários projetos de lei que estão sendo tramitados e que afetam a justiça juvenil; a Proposta de Emenda Constitucional para a redução da maioridade penal (PEC 33/2012), o Projeto de Lei 7.197/2002, que propõe a modificação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) para que as medidas de privação de liberdade passem, em casos de crimes graves (crimes hediondos), de um máximo de 3 a 8 anos, e o Projeto de Lei 6.433, que permitiria a aplicação de choques elétricos em adolescentes internos em unidades de privação de liberdade. No que diz respeito especificamente à PEC 33/2012, os Comissários enfatizaram que, uma modificação de tais características, de maneira a tratar como adultos adolescentes de 16 anos de idade em caso de cometimento de certos crimes, é contrária aos padrões internacionais de direitos humanos e às obrigações assumidas pelo Estado brasileiro. A esse respeito, a Comissária e Relatora sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, Esmeralda Arosemena de Troitiño, lembrou que "atualmente no Brasil, crianças e adolescentes de 12 anos de idade são responsáveis ​​por seus atos quando são condenados por ações tipificadas no Código Penal sob um sistema de justiça juvenil especializado e, portanto, seus atos não permanecem impunes ou isentos de resposta, como é frequentemente discutido neste tipo de debate".

Durante o curso da visita, a delegação teve conhecimento dos graves acontecimentos que ocorreram na manhã de 13 de novembro, na cidade de Fortaleza, Ceará. De acordo com informações de conhecimento público, um grupo de pelo menos dez homens invadiu o Centro de Semiliberdade Mártir Francisca, capturando 6 adolescentes que se encontravam cumprindo uma medida de semiliberdade no centro. Quatro desses adolescentes foram posteriormente encontrados mortos nos arredores do Centro. Depois do episódio, vários adolescentes fugiram do centro com medo de que os fatos se repetissem; alguns deles foram recapturados pela Polícia Militar, e alguns teriam sido feridos pelas ações das forças de segurança. De acordo com informações que foram fornecidas à CIDH, a situação de ameaça a que são submetidos alguns dos adolescentes que estão internados no Centro de Semiliberdade é conhecida pelas autoridades e, antes da ocorrência de tais fatos, um dos adolescentes teria levado ao conhecimento de um juiz responsável pela execução da medida socioeducativa tais ameaças de um grupo criminoso. No entanto, as medidas tomadas pelas autoridades foram insuficientes para evitar a ocorrência desses eventos trágicos. A CIDH também foi informada de que a situação de insegurança e ameaças feitas por esses grupos têm levado alguns adolescentes a deixar de cumprir a medida socioeducativa de semiliberdade por  ausência de garantias de sua integridade pessoal no Centro. Os adolescentes internados nesse Centro têm entre 12 e 18 anos. A Comissão recorda que o Estado, como garantidor dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade,  tem o dever jurídico inafastável de adotar ações concretas para garantir os direitos à vida e à integridade pessoal dos internos, particularmente aquelas medidas orientadas ao bem-estar dos internos e que objetivem prevenir e controlar as possíveis situações de insegurança dentro desses centros.

Na conclusão da visita, a Comissária Arosemena de Troitiño alertou que "há anos o sistema de justiça para adolescentes no Brasil enfrenta desafios muito graves no sentido de garantir os direitos dos adolescentes privados de sua liberdade” e insistiu que o Estado do Brasil redobre urgentemente seus esforços para proteger os direitos dos adolescentes e que introduza reformas necessárias ao funcionamento dos centros socioeducativos alinhados com padrõesinternacionais. A Comissiária também complementou dizendo que o Brasil deve implementar uma mudança real de paradigma que cumpra com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado e de acordo com os princípios constitucionais de proteção integral e de prioridade absoluta de crianças e adolescentes, em especial, quanto à instalação de um modelo de justiça restaurativa que privilegie a responsabilização pedagógica, orientado à inserção social”, e concluiu afirmando que “há evidências abundantes de que o confinamento de adolescentes constitui meio ineficaz para enfrentar a violência e a insegurança, uma vez que esse tipo de medida repressiva não oferece as condições para prevenir a reincidência nas ações criminosas no futuro, especialmente quando o confinamento ocorre em condições como as observadas durante a visita".

Por outro lado, o Comissário Cavallaro expressou preocupação com o levantamento de dados que realiza o próprio SINASE  no qual "se evidencia que 56% dos adolescentes são afrodescendentes, ainda que se deva admitir que em 22% dos casos não se determinou a origem étnica, o que poderia inclusive aumentar os números oficiais de adolescentes afrodescendentes privados de liberdade no país”. O Comissário complementou dizendo que “a sobre-representação de adolescentes afrodescendentes no SINASE reflete uma situação de especial vulnerabilidade a que seria exposto esse grupo tradicionalmente excluído e discriminado. Nesse sentido, o Estado deve fortalecer políticas sociais e de garantias de direitos, assim como eliminar padrões de discriminação nas forças de segurança, no sistema de justiça e no funcionamento dos centros do SINASE".

A Comissão alerta sobre o elevado número de adolescentes privados de liberdade por delitos não violentos relacionados a drogas e sobre o uso excessivo da prisão preventiva. Nesse sentido, recorda que no Direito Internacional dos Direitos Humanos existe um reconhecimento de que adolescentes envolvidos no tráfico de drogas devem ser tratados como vítimas, ao considerando-se que sua utilização na produção e no tráfico de drogas” é uma das piores formas de trabalho infantil e, portanto, uma forma de exploração que expõe seriamente sua integridade pessoal, seu desenvolvimento integral e o gozo de seus direitos. Ademais, se deve levar em consideração que a grande maioria dos adolescentes envolvidos no microtráfico são eles mesmos usuários de drogas, e o vício é uma das estratégias para capturá-los e mantê-los como microvendedores, pagando-lhes, em parte, com drogas. Da mesma forma, a CIDH tem recomendado que o consumo e a posse de drogas sejam descriminalizados em casos de uso para consumo próprio, a partir de uma perspectiva de saúde pública, não de uma perspectiva de segurança. No que diz respeito à prisão preventiva, o Comissário Cavallaro chama o Estado a "realizar uma avaliação sobre o uso da prisão preventiva para adolescentes e adotar medidas corretivas necessárias para reduzir essa prática de acordo com a legislação aplicável e com as normas internacionais".

A Comissão rejeita energicamente todas as práticas institucionais que atentem contra a integridade pessoal e a integridade de crianças e adolescentes em contato com a lei penal, assim como aquelas que contrariam os objetivos das medidas socioeducativas. A CIDH insta ao Estado que tome medidas urgentes para erradicar tais práticas. Ademais, a CIDH recorda o Estado de sua obrigação de asssegurar a segurança dos internos frente à presença de organizações criminosas em suas dependências, garantindo o direito à vida e à integridade de todos os indivíduos sob sua custódia.

 A Comissão considera essencial que o Estado forneça meios para que os adolescentes apresentem denúncias ou reclamações sobre o tratamento recebido nos centros e que tais denúncias sejam tratadas de forma séria, ágil e eficaz, punindo adequadamente os responsáveis ​​por tais atos. As informações relativas ao número de queixas e seus resultados devem ser públicas. A Comissão recomenda ainda que o Estado tome medidas adequadas para promover a criação de mecanismos para prevenir e combater a tortura em estados que ainda não os possuem e insta que o Estado garanta uma defesa jurídica de qualidade aos adolescentes em contato com a lei penal, fortalecendo as Defensorias Públicas quanto a recursos humanos e financeiros para atuar de maneira eficiente.

A Comissão considera urgente a adoção de iniciativas que aumentem, na prática, a disponibilidade de medidas de semiliberdade e alternativas à privação de liberdade em todo o país, visando um cenário em que a prisão em regime fechado, na prática, caraterize uma medida de ultima ratio. A Comissão recomenda ainda que o Estado coordene medidas apropriadas, incluindo a adoção de diretivas e orientações destinadas a tribunais e promotores estaduais visando  reduzir o uso de medidas de internação.

Finalmente, a Comissão salienta o papel fundamental que os agentes socioeducativos têm na implementação do SINASE e insta o Estado a rever suas políticas e práticas de seleção e treinamento desses profissionais, condições de trabalho e dotações orçamentárias destinadas a essa categoria profissional.

A CIDH é um órgão principal e autônomo da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujo mandato surge a partir da Carta da OEA e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A Comissão Interamericana tem como mandato promover a observância e defesa dos direitos humanos na região e atua como órgão consultivo da OEA na temática. A CIDH é composta por sete membros independentes, que são eleitos pela Assembleia Geral da OEA a título pessoal, sem representarem seus países de origem ou de residência.

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