quarta-feira, 29 de maio de 2019

DECISÕES DA JUSTIÇA INCENTIVAM IMPUNIDADE DE MENORES INFRATORES


Superlotação em unidades socioeducativas resulta em determinações favoráveis à liberação de adolescentes envolvidos em crimes e impede que projetos de ressocialização tenham efeito
Educandário Santo Expedito, Rio de Janeiro, em 2018 Foto: Divulgação
Educandário Santo Expedito, Rio de Janeiro, em 2018 Foto: Divulgação
Central de regulação é um termo muito usado na área de saúde. Identifica a área responsável por encontrar leitos disponíveis e direcionar os doentes para dentro de um hospital. Nas próximas semanas e meses, provavelmente passará a ser largamente utilizado na área penal. Na semana passada, o Tribunal de Justiça do Rio validou o acordo que criou, dois anos atrás, a Central de Regulação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro (Degase). Para quem não está ligando o nome à pessoa, medida socioeducativa é o equivalente à prisão (cadeia, cana, tranca) para menores infratores. E por central de regulação entenda-se um mecanismo que decidirá quem cumprirá a medida — ou seja, ficará internado por até três anos, apartado do convívio social — e quem ficará na rua.
Também na semana passada, o ministro Edson Fachin, do STF, determinou que adolescentes infratores em unidades socioeducativas superlotadas sejam transferidos para outras unidades ou, na inexistência dessas, para o regime domiciliar — também conhecido como ficar em casa. A decisão atendeu a pedido da Defensoria Pública do Espírito Santo e atinge, além dos menores em unidades capixabas, os internados no Ceará, na Bahia, em Pernambuco e no Rio de Janeiro.
Nas unidades fluminenses, então, juntam-se duas situações. A do STF, que segundo a própria juíza da Infância e Juventude pode mandar para a rua 646 menores infratores já na semana que vem , e a da central de regulação, que funcionará na prática para deixar adolescentes em conflito fora dos muros das unidades socioeducativas.
Dei uma olhada no acordo de maio de 2017 — que depois foi contestado judicialmente por promotores e, agora, validado pela 14ª Câmara Cível do TJ. É criada uma fila de espera para entrada no sistema socioeducativo. O engenheiro e palestrante na área de segurança pública Roberto Motta chamou a atenção, em seu perfil no Twitter, para o que chamou de “sistema de milhagem”. É a junção de uma fórmula cabeluda:

(Σ V *50 + Σ LS*30 + Σ P*20 + Σ T*15 + Σ OP*10 + Σ O*1 + Σ A*2 + Σ R*5 + Σ I*1 + Σ I*5)
com uma tabela que estabelece a pontuação para cada categoria de crime. Homicídio? Cinquenta pontos. Estupro? Trinta pontos. Roubo? Vinte pontos. Tráfico? Só quinze pontinhos. Já fugiu do sistema? Dois pontos pela recaptura. É frequentador assíduo do sistema socioeducativo? Cinco pontos e não se fala mais nisso. Tudo somado e ponderado, sai da fórmula um ranking dos infernos, no qual o mais bem pontuado tem maior chance de garantir uma vaguinha para chamar de sua, enquanto vai ficando para trás na fila aquele que é menos delinquente.
Desse jeito, por exemplo, um adolescente que tem um homicídio e um estupro nas costas, que já fugiu de alguma unidade e é reincidente pontua bem acima de um que, coitado, só matou uma pessoa. Ou que só tem uns dois processos por tráfico e um por roubo.
Menores internados em unidade do Degase na Ilha do Governador, 2006 Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Menores internados em unidade do Degase na Ilha do Governador, 2006 Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo
Não é preciso ir muito mais longe para notar que, dependendo da superlotação do sistema e da folha de antecedentes média da fila, menores com sérios problemas infracionais serão mandados para casa, para a família cuidar. Aquela mesma que realizou até então um trabalho brilhante. E certamente serão acompanhados, com olhos de lince, pelo Estado. Aquele mesmo que fez um serviço irrepreensível mantendo os mesmos menores no reto caminho da lei.
A questão, aqui, nem é numérica. Na ponta do lápis, a polícia apreende muito mais menores do que os que estão dentro do sistema. Os números são meio desencontrados, mas em 25 de fevereiro deste ano, segundo o Degase, havia cerca de 1.800 menores no sistema, para 1.080 vagas. É cerca de metade dos 3.341 adolescentes que a polícia do Rio apreendeu apenas entre janeiro e abril deste ano.
O problema é o sinal que esse tipo de medida dá. De que quem comete atos infracionais sinistros — tráfico, roubo, estupro — pode escapar do cumprimento de uma medida socioeducativa. De que está tudo OK em delinquir um pouquinho, um roubo aqui, um furto ali… Pontuação baixa, fica lá no fim da fila, acaba em casa.
O sistema socioeducativo não é voltado para punição. Concorde-se ou não com isso, é fato que salva menores de um destino desgraçado e prolonga vidas que tendiam a ser curtas. Um exemplo é o do menor apreendido por matar o médico Jaime Gold, em maio de 2015, na Lagoa, Zona Sul do Rio. Dentro do sistema, o adolescente tirou o atraso dos estudos e arranjou umtrabalho como técnico de informática . Como ele, há outros. É a chance de a sociedade, pela mão do Estado, dar uma direção a quem está sem rumo.
Mais uma vez, confunde-se uma questão jurídica — cumprimento de medida socioeducativa — com um problema administrativo — falta de vagas. É como mandar os doentes para casa sem atendimento por falta de leitos no hospital, ou dizer às crianças que se virem estudando sozinhas em casa porque não há mais lugar nas turmas. Que se construam mais educandários, mais presídios, para que os internos não sejam tratados feito bichos, amontoados. Um maior de idade que comete um crime grave aos 40 anos tem chances razoáveis de morrer na cadeia. Um menor infrator voltará em três anos no máximo para as ruas. De que jeito? Com que tipo de futuro?
Por último, se a fila de espera for efetivamente aplicada no sistema socioeducativo, quanto tempo levará até que seja implantada no sistema penitenciário, para os maiores de idade? Afinal, são apenas no Rio de Janeiro cerca de 52 mil detentos para aproximadamente 30 mil vagas. Dá 73% de superlotação média. Que tal colocar 20 mil criminosos nas ruas?

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