31 de outubro de 2025, 18h16
Aprovado pelo Senado na última terça-feira (28/10) e encaminhado para sanção presidencial, o Projeto de Lei (PL) 226/2024, que muda regras da audiência de custódia, contém um trecho visto por criminalistas como inconstitucional e contrário aos próprios objetivos desse mecanismo. De acordo com o texto, o fato de uma pessoa já ter sido liberada em uma audiência de custódia anterior por outra infração penal é uma circunstância que “recomenda” a conversão de uma nova prisão em preventiva.

Projeto prevê que liberação em audiência de custódia anterior ‘recomenda’ preventiva em caso de nova prisão
O PL traz outras circunstâncias e critérios para decretação de prisão preventiva, mas esse item destoa dos demais. Para Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a proposta é absurda:
“A previsão de que alguma pessoa deva ter a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva por qualquer fundamento que não seja a presença de risco concreto à integridade do processo é absolutamente inconstitucional.”
Na sua visão, “o fato de uma pessoa ter anteriormente sido conduzida a uma audiência de custódia” não pode ser usado como “fundamento idôneo para autorizar uma outra prisão no futuro relativa a fato distinto”.
Segundo Melchior, “admitir uma regra como essa implicaria dar valor jurídico-processual à condução pretérita da vida da pessoa”. Isso não tem qualquer relação com o processo principal, que é justamente o que a prisão preventiva busca proteger.
Paula Moreira Indalecio, sócia do escritório Mattos Filho, explica que a audiência de custódia serve para o juiz verificar se a prisão é legal e necessária. Não é, portanto, um juízo de valor sobre a personalidade ou os antecedentes da pessoa presa em flagrante.
Para ela, “tratar o simples fato de alguém ter sido liberado em audiência de custódia anterior como elemento que ‘recomenda’ a conversão de uma nova prisão em preventiva distorce completamente a finalidade desse instituto”.
Antecedente informal
A regra aprovada, de acordo com a advogada, introduz na legislação uma espécie de “antecedente informal”. E isso viola o princípio da presunção da inocência e “compromete a individualização das decisões”.
“A liberação anterior não indica reiteração criminosa, nem risco concreto à ordem pública”, diz Paula. “Indica apenas que, naquela ocasião, a prisão não se justificava.”
Assim, usar essa circunstância como motivação para manter a pessoa presa significa “inverter a lógica constitucional da liberdade como regra e da custódia como exceção”.
“Em termos práticos, essa inovação banaliza a preventiva e enfraquece o papel garantidor da audiência de custódia no sistema de Justiça Criminal”, conclui ela.
Na opinião de Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a previsão não faz sentido. Ele ressalta que o fato de uma pessoa ter sido solta em uma audiência de custódia não significa que ela foi julgada e condenada de forma definitiva. A liberação pode ter acontecido porque o flagrante foi ilegal, porque não houve crime ou “simplesmente porque não era caso de prisão preventiva”.
O advogado explica que antecedentes criminais só podem ser usados contra alguém se houver condenação transitada em julgado. Além disso, o motivo de uma prisão preventiva precisa estar ligado ao fato investigado.
“Não faz sentido prender preventivamente alguém pura e simplesmente porque houve uma audiência de custódia anterior.”
Banalização da preventiva
Segundo Carnelós, a norma tenta transformar a prisão preventiva em algo automático nessas situações, mas isso nunca pode acontecer. “É um acinte contra as audiências de custódia.”
O defensor público do Rio de Janeiro Eduardo Newton também entende que o PL “estabelece uma espécie de prisão processual automática”. O único sentido da regra, segundo ele, é manter a prisão.
Newton considera que a modificação legal vai de encontro à decisão na qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro (ADPF 347).
Relator do projeto, o senador e ex-juiz Sergio Moro (União-PR) afirmou que a porcentagem de solturas em audiências de custódia no país é alta. Para ele, isso é fruto da falta de critérios para orientar os magistrados.
Os números, porém, contam outra história. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, desde 2015 (quando elas foram implantadas) até junho deste ano, foram feitas 1,6 milhão de audiências de custódia depois de prisões em flagrante. A liberdade provisória foi concedida em 654 mil delas (39%). Em 994 mil decisões (61%), a prisão em flagrante foi convertida em preventiva.
De acordo com Carnelós, existe uma falsa premissa de que as audiências de custódia são “o grande mal da nossa sociedade e segurança pública”. Ele avalia que, na verdade, os índices de prisão nessas audiências são altíssimos para crimes graves.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!










Nenhum comentário:
Postar um comentário