Documento aponta superlotação, uso de força desproporcional e aumento do encarceramento indígena no estado
Relatório produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), divulgado nesse sábado (1º), expõe um cenário crítico nas unidades de privação de liberdade do Mato Grosso do Sul (MS).
Nas inspeções, realizadas entre os dias 20 e 25 de outubro de 2024, foram identificadas violações graves de direitos humanos em presídios, unidades socioeducativas e clínicas de reabilitação do estado comandado pelo governador Eduardo Riedel (PP).
As visitas ocorreram na Penitenciária Estadual de Dourados (PED), Penitenciária Federal de Campo Grande (PFCG), Unidade Prisional Jair Ferreira (Máxima), Unidade Educacional de Internação (Unei) Dom Bosco e Clínica de Reabilitação Filhos de Maria. A equipe contou com o apoio da Defensoria Pública da União (DPU) e da Defensoria Pública do Estado do Mato Grosso do Sul, com apoio logístico da Polícia Federal.

O relatório aponta a superlotação extrema como um dos problemas mais críticos encontrados nas unidades estaduais, uma no interior e outra em Campo Grande, capital do estado. No Estabelecimento Penal Jair Ferreira de Carvalho (EPJFC), a capacidade é para 642 presos, mas a atual população é de 2.427 pessoas, correspondendo a um índice de ocupação de 378,16%,caracterizando, assim, uma gravíssima superlotação.
As celas foram descritas como insalubres, quentes, úmidas e sem ventilação adequada, com instalações elétricas e sanitárias precárias.
Na Penitenciária de Dourados, presos relataram racionamento de água fornecida apenas seis vezes ao dia e consumo direto de água de torneira, sem filtragem, em locais onde foram encontradas caixas d’água com animais mortos.
Além da falta de higiene, o MNPCT registrou falta de colchões e kits básicos de higiene, resultando em pessoas dormindo em pedaços de colchão. Também foram relatados casos de fome, devido à má qualidade e à quantidade insuficiente de refeições.
Violência, castigos e tortura
As equipes documentaram espancamentos com cassetetes, uso indiscriminado de sprays de pimenta e granadas de gás lacrimogêneo em ambientes fechados, além de revistas vexatórias e torturas posturais, nas quais os presos eram obrigados a se manter em posições dolorosas sobre o chão molhado. Os peritos também apontaram castigos disciplinares abusivos, prazos irregulares e falta de controle por parte dos órgãos de Justiça na Penitenciária de Dourados.
Na Penitenciária Federal de Campo Grande, o confinamento prolongado em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) foi associado a adoecimento mental e perda de peso acentuada entre os presos. Muitos permanecem isolados 24 horas por dia, sem visitas e com banho de sol limitado a 30 minutos. “Diversos custodiados relataram perda de peso significativa durante o período de reclusão, sendo que um deles informou pesar menos de 50 kg”, revela o documento.
“O sistema penitenciário federal, lamentavelmente, é tratado por alguns como uma realidade distinta dentro do caótico sistema penitenciário brasileiro. Não são as mesmas violações que presenciamos nos presídios estaduais, mas elas existem. A principal delas é sem dúvida o confinamento solitário prolongado e indefinido”, afirma Welmo Rodrigues, defensor público federal no estado do Mato Grosso do Sul.
Rodrigues aponta que um dos piores cenários é o confinamento prolongado, solitário, em celas minúsculas, de seis metros quadrados, onde o sujeito precisa fazer tudo: dormir, alimentar-se, tomar banho e beber água. Até mesmo atividades de estudo ou laborais, quando autorizadas, devem ser realizadas nesse mesmo espaço.
Para o defensor, o populismo punitivo piora bastante esse estado de coisas inconstitucional. “Enquanto os poderes Legislativo e Executivo cedem de forma ativa e irresponsável às demandas por uma execução penal mais bárbara, o poder Judiciário falha em seu papel de garantidor, sendo, no mínimo, omisso”, avalia.
Comunidade indígena e encarceramento crescente
Outro ponto destacado é o aumento significativo da população indígena encarcerada no estado, especialmente das etnias Guarani Kaiowá, Terena e Kadiweu. A Penitenciária Estadual de Dourados é apontada como a unidade com maior número de indígenas presos do país, com 229 detentos autodeclarados indígenas.
O relatório denuncia falta de intérpretes, de laudos antropológicos e de acesso à defesa adequada, além da ausência de visitas familiares e pouca presença da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) nas inspeções.
O MNPCT também realizou visita à Comunidade Indígena Guarani Kaiowá, com o objetivo de promover uma escuta qualificada sobre o processo de criminalização e encarceramento de pessoas indígenas, “especialmente no contexto da luta pela demarcação de seus territórios tradicionais e da proteção de sua cultura e de seu povo”, disse Ana Valeska Duarte, perita no MNPCT.
Segundo ela, diante desse quadro, o MNPCT recomenda ao presidente da República que sejam priorizadas as ações de demarcação das terras indígenas em favor dos povos do Mato Grosso do Sul. “Conforme o direito assegurado pela Constituição Federal de 1988, sem a aplicação da tese do Marco Temporal, em consonância com as recomendações já emitidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro.”
Além disso, o MNPCT recomenda ao Supremo Tribunal Federal (STF) a priorização do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) n.º 7.582, 7.583 e 7.586, que tratam da inconstitucionalidade da Lei n.º 14.701/2023, uma vez que as audiências de mediação realizadas até o momento não têm se mostrado eficazes para cessar os conflitos e a violência contra os povos indígenas na região de Douradina (MS).
Jovens e pessoas em tratamento também sofrem violações
No sistema socioeducativo, o MNPCT constatou que a Unei Dom Bosco funciona com estrutura prisional inadequada, deficiência de equipe técnica e restrição de visitas familiares por falta de transporte. Cerca de 44% dos adolescentes fazem uso de medicamentos psicotrópicos, o que, segundo o relatório, indica silenciamento forçado do sofrimento psicológico.
A unidade contraria ainda a capacidade máxima definida pela Resolução n.º 46/96 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que regulamenta que as unidades socioeducativas devem atender até 40 adolescentes, no local foram encontrados 63 adolescentes internados.
Na Clínica de Reabilitação Filhos de Maria, os peritos identificaram internações involuntárias, hipermedicação, agressões físicas e psicológicas, trabalho sem remuneração e indícios de exploração de mão de obra análoga à escravidão. A clínica foi fechada após inspeção do MNPCT.
Situação alarmante e medidas urgentes
Dados do estudo O Funil de Investimento da Segurança Pública e Sistema Prisional em 2024, publicados nesta semana pela Plataforma Justa, mostraram que dos R$ 22,9 bilhões do orçamento total do estado em 2024, a maior porcentagem dos recursos analisados foi destinada para as polícias, com R$ 1,7 bilhão. Para o sistema prisional foram destinados R$ 486 milhões. A pesquisa não verificou quaisquer programas ou ações de governo voltados exclusivamente para a população egressa do sistema prisional, não sendo possível realizar a análise de proporcionalidade com outros gastos.
O defensor público Welmo Rodrigues endossa esse cenário demonstrado no estudo e cita uma pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) referente a investimentos no sistema prisional no ano de 2020. “O levantamento constatou que um preso federal custa R$ 35.215,60, valor este 16 vezes maior que a média nacional dos sistemas penitenciários estaduais. Então, sim, faltam recursos”, resume.
Diante das constatações, o MNPCT enviou um relatório preliminar à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), solicitando medidas urgentes para conter as violações. O documento também foi encaminhado às autoridades federais e estaduais, com recomendações específicas para cada instituição.
Segundo os peritos, o cenário nas unidades do Mato Grosso do Sul configura tratamento cruel, desumano e degradante, exigindo ação imediata do Estado brasileiro para garantir o mínimo de dignidade às pessoas privadas de liberdade.
O governo do Mato Grosso do Sul e o Ministério da Justiça e Segurança Pública foram questionados sobre as violações apontadas no relatório, bem como quais serão as medidas tomadas para reverter o quadro retratado no documento. Até o fechamento da reportagem, não houve retorno. O espaço segue aberto.


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