domingo, 3 de julho de 2022

"Fundação Casa ou a morte": especialista critica política para jovens em situação de rua em SP

 


Integrante do Fórum dos Direitos da Criança e do Adolescente afirma que falta vontade política para garantia de direitos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
 
O cenário pandêmico e o aumento da fome e do desemprego tornaram a situação ainda mais grave e mais visível, mas o problema não é de hoje - Jorge Araújo / Fotos Públicas

Crianças e adolescentes que vivem em situação de rua na cidade de São Paulo, por conta da ausência de políticas públicas efetivas, estão jogadas à própria sorte. O cenário pandêmico e o aumento da fome e do desemprego tornaram a situação ainda mais grave e mais visível, mas o problema não é de hoje. Essa é a avaliação da gerente de projetos da Fundação Projeto Travessia, Tânia Maria Lima Silva, integrante do Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Para ela, estes jovens têm, em geral, somente duas alternativas: a internação na Fundação Casa ou a morte. A Fundação é responsável por executar medidas socioeducativas de privação de liberdade (internação) e semiliberdade para adolescentes no estado de São Paulo.

Segundo Tânia, meninos e meninas que se encontram em situação de rua, assim como suas famílias, não conseguem ter acesso às políticas públicas e aos direitos que deveriam ser garantidos, como saúde, assistência, educação e habitação. Isso ocorre, na opinião dela, também por conta da burocracia que rege estes processos. 

Nos últimos anos o número de pessoas que vivem em situação de rua aumentou consideravelmente em todas as regiões do Brasil. Só em São Paulo, segundo informações divulgadas pela prefeitura no início deste ano, o número havia crescido 31% desde 2019, totalizando mais de 31 mil pessoas. Mas entidades e pessoas que trabalham junto a essa população, como o Padre Julio Lancellotti, afirmam que a contagem está defasada e o número é bem maior.

São poucas as pesquisas que se debruçam sobre esta parcela da população. E menos ainda se sabe sobre as crianças e os adolescentes que vivem em situação de rua pelo país. E sem dados detalhados fica difícil pensar para quem as políticas devem ser destinadas. 

Em maio de 2020 foi lançado o relatório final do projeto Conhecer para Cuidar, organizado pela Associação Beneficente O Pequeno Nazareno e pelo Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Ciespi/PUC-Rio). 

Segundo dados divulgados na pesquisa, que ouviu cerca de 600 jovens a partir dos 7 anos de idade, 88% das meninas e meninos nessa situação já sofreram algum tipo de violência no ambiente das ruas e metade destes apontaram os agentes de segurança pública como os principais autores da violência. Cerca de 85% dos jovens entrevistados se autodeclararam pretos e pardos. 

Por definição do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) a criança e o adolescente em situação de rua é todo “sujeito em desenvolvimento com direitos violados, que utilizam logradouros públicos como espaço de moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente, em situação de vulnerabilidade e/ou risco pessoal e social pelo rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários”. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Tânia Maria Lima Silva enfatiza que é necessário criar políticas públicas que estejam de portas abertas para acolher e cuidar dos jovens em situação de rua. Ela defende que é necessário, ainda, ter vontade política para fazer valer os direitos das populações marginalizadas. 

“Eu acho que a gente precisa que os governantes tomem consciência e realmente se dediquem a ter políticas públicas para toda e qualquer população. E aí estamos falando especificamente de crianças e adolescentes em situação de rua e na rua.”. 

Neste sentido, está sendo debatido na Câmara de Vereadores de São Paulo o Projeto de Lei 253/2021, que visa garantir a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes em situação de rua no município de São Paulo, tendo uma perspectiva de proteção integral desses jovens em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

A iniciativa, que partiu da Pastoral do Menor, possui apoio de diversas entidades, dentre elas o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente. 

Segundo o ECA, que completará 32 anos no próximo dia 13 de julho, “a efetivação dos direitos referentes à vida e à convivência familiar e comunitária” de crianças e jovens deve ser “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público”. 

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Qual é o cenário que estamos vivendo hoje em relação aos jovens em situação de rua? A que, além do cenário pandêmico que vivemos, a gente pode atribuir esse agravamento dessa situação?

Tânia Maria Lima Silva: Eu trabalho com educação social na rua, dentro de uma organização chamada Fundação Projeto Travessia, que lida diretamente há 27 anos com essa demanda: crianças e adolescentes em situação de rua aqui na região central de São Paulo. 

O que a gente percebe é que, infelizmente, a pandemia deu visibilidade a uma temática que já existia. Antes da pandemia a gente tinha crianças e adolescentes, meninos e meninas que estavam em situação de rua, que estavam passando por todas as necessidades que a gente hoje tem visto neste cenário de São Paulo. E quando você percebe isso dá um desespero. Porque quando a gente fala sobre a questão do direito, da defesa, da promoção de crianças e adolescentes, a gente olha para crianças e adolescentes em um ambiente fechado. Em situação de rua você não consegue vislumbrar as necessidades que essas meninas e esses meninos precisam. Então, para trabalhar com essa demanda precisa de um arcabouço de estratégias para fazer com que o jovem se vincule, que acredite no profissional que tá ali na ponta dizendo pra ele que é possível. 

A gente trabalha numa perspectiva de trabalhar desejos e sonhos que essas meninas e esses meninos não têm. Eles só têm duas saídas: a Fundação Casa ou a morte. A política de atendimento que a gente tem hoje na cidade de São Paulo, infelizmente, é a questão do ato infracional ou senão a morte, o genocídio dessas crianças e desses adolescentes. E isso é muito cruel. 

E quando a gente fala sobre a pandemia, ela veio num rebote que a gente tá lidando, não que a gente não lidava com isso antes, mas a fome veio muito gritante, porque hoje nós estamos tendo casos de famílias com crianças em situação de rua. Porque perderam seus empregos, porque perderam o seu norte dentro da sua família, não tem casa. Então o que a gente percebe é que nós, enquanto trabalhadores, vamos ter que ter muita resistência e muita resiliência para poder enfrentar. O cenário aqui na região central está muito difícil. A gente não sabe se estamos no Brasil colonial ou se estamos lendo o livro Capitães de Areia, de tão tenso e intenso que está a Praça da Sé. 

A Secretaria de Assistência está fazendo um Censo sobre crianças e adolescentes em situação de rua e na rua na cidade de São Paulo. O vereador Eduardo Suplicy trouxe a informação que foram diagnosticadas pelo Censo 664 crianças e adolescentes em situação de rua e na rua na cidade de São Paulo. Eu posso dizer pra você que, infelizmente, essa não é uma exclusividade da região central. 

Os nossos centros periféricos também estão acometidos de fome, violência, negligências, tanto do poder público quanto do Estado, enfim, acometidas por um arcabouço de violação de direitos. Os meninos e meninas acabam tendo um parâmetro onde tem renda, onde gira o capital. Que, na maioria das vezes, não é regra, mas o trabalho infantil acomete como uma porta de entrada para que estes meninos e meninas permaneçam em sitruação de rua.

Às vezes a gente fica muito com holofotes para a região central porque é onde o capital gira, mas é também na Avenida Paulista, Vila Mariana, Ana Rosa, Pinheiros, Jardins, Rua Augusta. Então a gente tem estes centros onde as pessoas acabam tendo seu happy hour, onde tem o capitalismo selvagem com lojas, restaurantes, e os meninos acabam vindo neste fluxo de trabalho infantil e, infelizmente alguns acabam ficando e permanecendo em situação de rua. 

E isso a gente tá falando em um cenário da cidade de São Paulo, mas é muito visível que essa realidade se intensificou em todos os estados, em todas as regiões do país. 

No Brasil. E eu diria até mundo também. Porque a situação das famílias que a gente atende, que a gente lida no dia a dia, quando a gente vai falar sobre qualquer inserção para o direito, a gente percebe que essas famílias, na maioria das vezes, elas não são e não estão inseridas dentro desse sistema dito por "garantia de direito". Então muitas vezes a gente tem que ensinar essas famílias o direito e a via de acesso que ela tem que fazer para ter esse direito, como diz o Estatuto da Criança e do Adolescente, como diz a Constituição Federal para que ela realmente faça jus a este direito que ela tem. 

Então muitas vezes a gente precisa acompanhar essas famílias até um CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], a um CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], a um posto de saúde. E a gente não pode esquecer que essas famílias também – e os meninos e meninas – eles também não têm essa porta de entrada de chegar e ser atendidos. A gente sabe que existe uma burocracia imposta.

Existe uma tendência, que a gente não olha para o sujeito que está na nossa frente quando a gente fala sobre garantia de direitos. Então a gente entra numa rotina, numa lógica, de burocratizar os serviços. E muitas vezes essas famílias são violentadas severamente, infelizmente, pelas instituições que dizem que ali estão para fazer a sua defesa, ou a sua promoção ou a sua garantia de direitos. É bem complexo mesmo. 

No último dia 22 de junho, o PL 253/21 de autoria de seis vereadores da cidade de São Paulo, dentre eles a vereadora Juliana Cardoso (PT-SP), foi objeto de audiência pública na Câmara Municipal de Vereadores. O Projeto tem como objetivo garantir a efetivação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes em situação de rua no município de São Paulo, tendo uma perspectiva de proteção integral desses jovens em consonância com o ECA. Então com base nisso queria te perguntar sobre essas políticas públicas de proteção a essa juventude que tá na margem de todos os âmbitos sociais, seja moradia, trabalho, estudo, cultura, saúde. O que a gente tem hoje que possa minimamente garantir os direitos desses jovens brasileiros?

Eu vou ser um pouco radical e vou dizer pra você que a gente não tem nada. E aí quando eu digo que não temos nada não é no sentido de não ter a política. A gente tem essa política, mas não adentra essa demanda que a gente atende. Então a gente tem a saúde, a gente tem a assistência, a gente tem a educação, a gente tem a habitação, a gente tem todas as políticas postas, porém, elas não chegam para estes meninos, para estas meninas e nem para as suas famílias, infelizmente. 

O Projeto de Lei 253/21 trata de ter um olhar específico para essa demanda. Você tem que olhar para essa demanda. A política tem que estar aberta para que esses meninos e meninas adentrem dentro de uma questão relacionada à sua saúde, relacionada à assistência social, que dê subsídio à essa família no território onde este menino mora. Que a gente faça um trabalho que consiga entender a complexidade que é você se vincular, você ganhar confiança, você trabalhar este adolescente, você trabalhar a família. Você é mediadora dentro de um processo que não será em dois, três dias ou em um mês que este menino vai estar retornando para a sua família.

A gente tem que ter a responsabilidade de entender a complexidade que é. A gente não pode pegar esse menino e simplesmente levar para casa. Porque a gente não sabe qual o ciclo de violação de direito que ele está sofrendo na sua casa. A gente não sabe qual o risco que esse menino e essa menina tá sofrendo dentro da sua casa. Então esse Projeto de Lei vem dizer que precisamos ter três serviços que deem abertura para que esses meninos comecem a conhecer e ter acesso aos direitos sem ser burocráticos. Que ele consiga ter a sua medida socioeducativa cumprida. 

O menino que tá em situação de rua e na rua ele tem o timing dele. Então na hora que ele vem para solicitar alguma ajuda a gente tem que estar pronto para fazer essa ajuda. A gente não pode deixar que aliciadores e exploradores façam disso o papel da sua política. A gente tem que dizer "Estado, é sua função, é sua responsabilidade. Você tem que dar conta".

Eu acredito muito que o PL vem numa perspectiva de a gente expandir esse projeto para toda a cidade de São Paulo, independente da gente ter ou não crianças e adolescentes em situação de rua. Tem que ter serviço porta aberta para estes meninos entrarem em toda a cidade de São Paulo. Porque a gente tá falando de meninos e meninas que têm muitas carências e anseios, e eles não vão falar da sua vida em um primeiro momento.

A gente tem que parar de ser burocrata. Não adianta eu ir pra rua com uma prancheta para perguntar nome, idade e se quer algum encaminhamento. Eu tenho que ser lúdico, eu tenho que ser criativo, eu tenho que ser dinâmico na minha abordagem, eu tenho que ser assertivo. Porque eu preciso que esse menino e essa menina confiem, pra a gente criar laços, vínculos, para que a gente possa trabalhar juntos. 

Quando o menino e a menina percebem que o trabalhador tem essa diferença, eles vêm. E aí é maravilhoso porque você vê aqueles meninos sorrindo, com esperança, com desejos, com sonhos maravilhosos. Porém, eles não conseguem acreditar que é possível para eles e na primeira recaída, na primeira frustração que eles têm, eles acabam sendo cooptados pelo tráfico, pelos adultos que são aliciadores e que estão usando deles como um meio para fazer pequenos furtos, para entrar em outras questões relacionadas ao tráfico.

Enfim, então acho que é nisso que a gente fala quando a gente defende o PL. Ele tem uma complexidade e a gente pensou muito nessa elaboração técnica no papel. Mas na prática é isso: porta aberta para esses meninos e meninas que estão em situação de rua e na rua. Seja na abordagem, seja nos centros de convivências, seja no acolhimento. Não necessariamente ele vai passar pelos três, mas se ele passar por um, vai ser função dos trabalhadores vincular este menino e a gente poder trabalhar junto com ele, a sua família, o seu território, articular a rede, pensar estratégias, pensar mil e uma coisas que a gente sabe que é possível. 

A gente não pode ficar muito nessa lógica que criança e adolescente em situação de rua e na rua o meio é colocar numa Kombi e levar embora. Não é essa a lógica da política. 

O que seria preciso ser feito para que a gente possa enfrentar essa situação e avançar no sentido de construir outras possibilidades para esses jovens? Possibilidades de vida digna, de oportunidades, de sair dessa situação de rua e ter a chance de exercer seus plenos direitos enquanto cidadãos brasileiros que têm os direitos garantidos no ECA e na Constituição? 

Vontade política. Responderia para você assim, curto e grosso: vontade política. Que a gente pare de fazer uma grande propaganda no meio político. A gente precisa que os governantes tomem consciência e realmente se dediquem a ter políticas públicas para toda e qualquer população. E aí especificamente estamos falando de crianças e adolescentes em situação de rua e na rua. Que a gente não fique muito nessa construção de pensar, de pensar, de boicotar, de pensar.

A instituição em que eu trabalho está há 27 anos, mas eu falo como histórico meu enquanto profissional: há nove anos a gente espera e deseja que seja feita uma política digna. Não é um "puxadinho" que a gente tá falando, estamos falando de política digna. Condições desses meninos se sentirem acolhidos dentro de um ambiente maravilhoso. Onde eles tenham a dignidade de sentar em uma mesa e comer. Que não seja um marmitex. E aí eu não tô falando do marmitex como comida, mas enquanto condição de colocar comida no seu prato. Que eles consigam vislumbrar que isso é possível. 

Porque quando a gente fala desses meninos e dessas meninas, vocês têm que entender que a gente tá falando de uma ressocialização de um ciclo vicioso, no qual ele já se encontra, que é muito difícil de você romper. E é com muito trabalho. E não é um trabalho de dois, três quatro, cinco, seis meses. É um trabalho contínuo. E a gente deve bater sempre na pedrinha. Ficar batendo, batendo até que uma hora ela vai trincar. E a gente tem que alcançar isso e trincar. Porque eles estão muito armados, no sentido da sua armadura de vida, de angústias, de violação, de medos, de surras, de porrada, de rejeição.

E é natural quando a gente vê os meninos em situação de rua, principalmente as pessoas que não entendem a complexidade, que acham que é todo mundo bandido. Mas não são. São meninos e meninas como são as minhas filhas, como são as suas filhas, seus filhos, seus netos, seus sobrinhos. São crianças, são adolescentes e precisam vivenciar essa fase. Infelizmente eles não estão vivendo.

E quem somos nós, enquanto sociedade, que temos a nossa condição de estar nas nossas casas, nos nossos cobertores, tomando as nossas sopas, os nossos vinhos, para dizer que eles são culpados de não ter isso?

A reflexão que eu deixo aqui é essa: sociedade em geral, olhem para as crianças e adolescentes em situação de rua como se fossem os filhos de vocês. Imaginem a situação dos seus filhos na situação que eles vivem. Pensem.

Edição: Felipe Mendes

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