Autora de quatro livros, ex-doméstica visita unidade feminina de reeducação na Mooca e fala sobre autoconfiança para meninas de 13 a 21 anos

Jéssica Freitas/iG São Paulo - 02.12.16
"Eles podem roubar tudo da gente, menos o nosso conhecimento", diz Cláudia Canto às internas da Fundação Casa
O trânsito não estava muito tranquilo por volta das 14h na região do Alto da Mooca, na zona leste da capital paulista, na última sexta-feira (2). Por conta disso, foi um pouco difícil para a reportagem do iG chegar à Unidade Feminina de Internação Chiquinha Gonzaga, da Fundação Casa, no horário combinado. Chegando lá, porém, tanto a situação do trânsito quanto tudo o que era externo aos muros da fundação deixaram de ter importância. Afinal, esses são os limites geográficos aos que as meninas internas são submetidas e nada além daquilo teria importância durante as horas que se seguiram na nossa visita.
No entanto, não foi só a reportagem do iG que entrou de visita pelos pesados portões daquela unidade da Fundação Casa, no mesmo dia. Além de nós, uma ex-empregada doméstica, nascida e criada na Cidade Tiradentes, periferia da capital paulista, foi recebida com sorrisos pela administração da unidade. Cláudia Canto, que já escreveu quatro livros e os publicou não só no Brasil, era a convidada de honra, responsável por ministrar uma palestra para as meninas.
Com seu vestido preto de "apenas R$ 3 no brechó", como ela diz, a escritora que se adjetiva como "rara, rica e milionária" conversou com as meninas sobre autoconfiança e perseverança. "Eles podem roubar tudo da gente, menos o nosso conhecimento", disse ela, para os cerca de 50 rostos que a admiravam na primeira palestra do dia. Ao todo, foram dois encontros naquela sexta, para que todas as cerca de 100 internas pudessem conhecer a escritora.
Cláudia é formada em jornalismo e trabalhou como empregada doméstica em Portugal. No entanto, ela garante às meninas internas que sua história se assemelha às delas. "Eu perdi a minha liberdade em Portugal, mal tinha folgas, vivia na casa, tive que voltar para o Brasil sem a autorização da minha patroa", lembra. As meninas, que começaram a palestra cabisbaixas, já levantavam o olhar e fitavam a palestrante.
Para a reportagem do iG, que estava no canto da sala com um celular na mão gravando a palestra, as jovens lançavam olhares curiosos – tanto para o rosto desconhecido, quanto para o aparelho eletrônico. Não pudemos saber quais foram os crimes cometidos pelas meninas para que elas estivessem confinadas naquele lugar, mas foi saber a história delas que as internas se transformaram naquilo que eram, antes de qualquer coisa: meninas que tinham entre 13 e 21 anos de idade.
Com camisetas brancas e vestindo calças cor de rosa e lilás, as garotas se diferenciavam, principalmente, pela esperança no olhar e pela postura. Algumas já cansadas do lugar e da situação, não tinham vontade nem de erguer a cabeça. Outras ainda se sentavam com as pernas cruzadas e com as costas eretas, como se estivessem se preocupando em manter uma postura educada ao receber uma visita em sua casa.
Chamado de Fundação Casa, o espaço que abriga as meninas é composto por três alas. A que abriga crianças de 13 a 16 anos, a que abriga as jovens de 16 a 21 anos e a ala das mães. É nesse terceiro, onde o PAMI (Programa de Atendimento Materno Infantil da Casa Chiquinha Gonzaga) recebe as internas que estão prestes a dar a luz ou aquelas que já estão com seus bebês nascidos, mas ainda os amamentam, lá dentro mesmo.
"Temos, atualmente, nove bebês no PAMI", conta o diretor da fundação – isso mesmo, um homem – Ezeilton Rodrigues de Santana. "Somos a única unidade da cidade com esse programa, então qualquer menina que precise da nossa assistência, que esteja no final da gravidez, é trazida para cá", explica.

Pensamento Condicionado

"Quando filho de rico arrisca fazer alguma coisa diferente, criativa, como que os pais falam? 'Isso, filho! Que lindo! O mundo é seu e você vai ser o que quiser nessa vida'. Como que acontece com a gente? O que a gente ouve desde pequena? 'Não, menina! Não adianta tentar'", analisa Cláudia, sob os olhares de aprovação de parte das meninas.
Escritora explicou que não vê dinheiro como objetivo, mas como consequência
Jéssica Freitas/iG São Paulo - 02.12.16
Escritora explicou que não vê dinheiro como objetivo, mas como consequência
"A mente dele [filho de rico] é tão voltada à ideia de que ele consegue qualquer coisa, que as barreiras ficam menores", continua. "Eu tive que me reprogramar... Tudo o que eu aprendi quando era criança, que eu era negrinha, sem chance, que minha vida não teria futuro e não sei o que... Tive que esquecer e pensar: sou rara, rica e milionária. Posso fazer o que eu quiser", conta ela.
Em sua palestra, a escritora tenta explicar para as meninas que ter "experiência de rua" é algo que a torna ainda mais "rica". "Quem tem diploma, não precisamente tem a minha experiência de vida. Mas eu, com a minha experiência de rua, minha experiência de vida, posso estudar, batalhar, ter um diploma e, assim, serei ainda mais 'rara, rica e milionária', com coisas que ninguém pode tirar de mim, porque vieram do meu berço, da minha criação".
Ao fim da palestra, Giovana, que aparentava ter uns 16 anos, perguntou se a publicação de livros e esse tipo de pensamento havia trazido dinheiro para Cláudia. Todas as demais meninas riram, por terem entendido que a mensagem era justamente não relacionada ao dinheiro em si. "Ela tá rica de conhecimento", afirmou Ruth, outra interna que aparentava uns 18 anos.
Em resposta, Cláudia explicou que não vê dinheiro como objetivo, mas como consequência. "Quando a gente tem uma estrutura que, principalmente, vem através do conhecimento, quando a gente tem uma vida reta e com a verdade, tem um objetivo, foco e disciplina, o dinheiro vem".
O encontro terminou com abraços na palestrante, novos livros na estante da biblioteca da Fundação Casa e algumas sementes de esperança e de perseverança plantadas na cabeça das meninas. "Com esses olhares, eu vou sair daqui mais milionária ainda", disse a ex-empregada doméstica, causando o riso das meninas.