Conforme noticiado pela Valorinvest e por O Antagonista, existe um mercado bilionário fomentado pelas condenações na Justiça do Trabalho: o de compra de créditos trabalhistas.
Ambos os sites informam que o total do mercado estaria estimado em R$ 620 bilhões e, obviamente, este montante tende a crescer, já que as condenações não cessam na Justiça do Trabalho, gerando em média quase R$ 30 bilhões a mais todos os anos de um ativo circulante, conforme os relatórios estatísticos que podem ser encontrados no site do Tribunal Superior do Trabalho.
De há muito se ouve nos corredores dos fóruns trabalhistas, mas sem qualquer tipo de comprovação, que alguns advogados utilizam esta prática, "comprando" as reclamações trabalhistas de seus clientes, o que obviamente seria uma conduta repudiada pela própria categoria por, no mínimo, ferir a ética da profissão.
A situação objeto das notícias atuais, contudo, é bem diferente. Trata-se de exercício do legítimo interesse do titular de um crédito em negociá-lo, seja para não correr o risco de eventual inadimplemento, seja para perceber ao menos parte do valor devido rapidamente. E nada mais natural, pois, afinal de contas, os trabalhadores que buscam a Justiça do Trabalho pretendem, ao fim e ao cabo, receber dinheiro. Salvo nos casos, bastante minoritários, onde o interesse é diferente (reintegração ou algo do gênero).
A cultura trabalhista sempre foi avessa à prática da cessão de crédito, chegando a se defender que diante da natureza alimentar o crédito trabalhista não poderia ser objeto de tal negociação. Entendia-se, também, que a competência para continuar a ação trabalhista seria afetada, já que ao ceder o crédito o novo titular não seria um trabalhador, perdendo o crédito sua natureza original.
Tais entendimentos mostram uma época, digamos, romântica da Justiça do Trabalho, onde o sentimento era puramente de fazer valer direitos trabalhistas para implementar a justiça social preconizada em nossa Constituição, erradicando desigualdades e pacificando a histórica luta de classes.
A verdade é que existe um gigantesco mercado de interesses em torno de uma forma de ser da Justiça que envolve cifras bilionárias e que, para ser alimentado, precisa manter o alto nível de litigiosidade que sempre foi a marca da área trabalhista. A iniciar pela própria magistratura do trabalho.
Existe uma mentalidade de que Justiça forte é Justiça grande. Quanto maior o número de ações e a dependência do Estado-juiz para resolver os litígios, mais orçamento público para alimentar o sistema, pois o número de órgãos jurisdicionais precisa acompanhar a quantidade de ações. Em outras palavras, mais cargos de juiz, mais tribunais, mais escolas judiciais, mais vagas de desembargador, mais servidores, mais membros do Ministério Público do Trabalho e por aí vai.
Dessa necessidade já surge outro mercado, onde inclusive atuei e ainda atuo bastante, o de concursos públicos. Livros, apostilas, aulas e tudo o mais para a preparação de candidatos, uma verdadeira indústria milionária que, desde o corte no orçamento da Justiça do Trabalho, com a escassez de novos cargos, vem reduzindo a cada ano.
Na advocacia não é muito diferente. Com um valor de condenações que beira R$ 30 bilhões por ano, só de honorários contratuais para advogados de reclamantes pode-se estimar algo em torno de R$ 9 bilhões anualmente, já que é bastante comum a fixação de honorários contratuais de risco no importe de 30%. Se considerarmos os honorários contratuais para os advogados das empresas, outros tantos bilhões.
São cifras que impressionam, mas também é importante lembrar que, atualmente, no Brasil, há cerca de 1.220.000 advogados, algo como 1 advogado para cada 175 habitantes no país, o que obviamente coloca em escala de massa a produção de ações que retroalimentam todos estes interesses.
Existe, portanto, uma grande lógica cíclica que necessita que as coisas continuem sendo como sempre foram: mais ações, mais orçamento, mais cargos, mais concursos, mais honorários, mais livros, mais cursos, enfim, mais tudo. E agora, mais créditos para serem vendidos.
Fica evidente que qualquer ato contra essa roda gigante deve ser pronta e frontalmente combatido, como o foi a tal da Reforma Trabalhista. De todas as mudanças na nova lei, as que mais geraram debates foram as que afetaram a lógica do mercado trabalhista: a responsabilização dos reclamantes em caso de sucumbência e o fim da gratuidade irrestrita, que reduziram o número de ações.
Os dados são claros: após a reforma, a queda chegou a 30% em 2018, embora em 2019 tenha havido já uma recuperação quantitativa do número de ações. Em 2020 não se pode considerar a estatística, pois a pandemia do novo coronavírus afetou imensamente o funcionamento da Justiça e a atuação dos advogados.
E isso tudo significa exatamente o quê? Quais conclusões podemos tirar desses dados? Simples: que todo o debate sobre direitos trabalhistas esconde, na verdade, o interesse de manutenção desses mercados. Ao lado da narrativa da efetivação de direitos sociais existe o interesse de todos os atores envolvidos em manterem seus próprios ganhos, diretos ou indiretos. Interesse legítimo, frise-se, pois cada um está apenas exercendo seu papel e sobrevivendo dignamente.
Não é a toa que os maiores críticos da nova lei tenham sido advogados, procuradores e magistrados trabalhistas. Todos usando a defesa dos direitos sociais em nome dos trabalhadores, quando estes próprios pouco se movimentaram. O movimento social saiu das ruas para dentro das instituições. A suposta derrocada dos direitos trabalhistas levaria, igualmente, à derrocada de todos nós.
Em um mundo onde o chamado "politicamente correto" exige uma narrativa condizente com os valores aprovados pelos vigilantes de plantão, que se autoproclamam como defensores da moral e dos direitos alheios, a cartilha manda usar a história da luta de classes e das conquistas trabalhistas, de preferência com violência no discurso, para tentar evitar qualquer mudança na lógica que sempre funcionou tão bem e que alimentou o sistema.
Por décadas formou-se uma estrutura que necessariamente é avessa a qualquer modificação nesta espiral milionária, desde associações de classe de todos os segmentos, a sindicatos e instituições públicas, todos carentes da litigiosidade voraz para fornecer seu sustento.
Nada contra quem, honestamente, exerce seu mister dentro dessa engrenagem. As coisas são como são. O que não significa que não possam deixar de ser...
Há inúmeras novas possibilidades que, para acontecerem, precisam de uma grande abertura de todos que atuam na área e, direta ou indiretamente, acabam sobrevivendo do mercado de direitos trabalhistas, ou seja, acabam retirando o sustento também das empresas, as que em regra são condenadas na Justiça do Trabalho.
O grande desafio é viabilizar um novo tipo de abordagem da questão trabalhista que possa alimentar milhares de profissionais que dependem da lógica tradicional do litígio. E existe alternativa.
Em primeiro lugar, um ramo do Poder Judiciário não é forte em razão do seu tamanho, mas por sua efetividade. Parece preferível uma Justiça do Trabalho menor, que atue em ações onde realmente há necessidade de intervenção do Estado, voltada às questões complexas oriundas das relações de trabalho, mormente as ligadas às lesões a direitos fundamentais, a uma Justiça que precisa, por exemplo, fiscalizar a conduta de advogados homologando acordos que são realizados extrajudicialmente.
Por que a legislação não evolui, por exemplo, para que os litígios possam ser resolvidos diretamente pelos interessados devidamente assistidos por advogados? Quantos milhões em orçamento público seriam economizados? Por que os próprios advogados e juízes parecem não querer as soluções extrajudiciais dos conflitos? A resposta politicamente correta seria o perigo para a preservação dos direitos trabalhistas, mas já sabemos que há algo para além desta narrativa.
E nesse afã de manter os próprios direitos, toda a classe envolvida no mercado do litígio trabalhista tende a defender, sempre, que a velha fórmula da regulação trabalhista permaneça sendo a regra geral, forçando a aplicação de um modelo para realidades distintas, como no caso dos trabalhadores em plataformas digitais.
O exemplo dos motoristas do aplicativo Uber cujos acordos não foram homologados, para viabilizar a condenação da empresa com o reconhecimento do vínculo de emprego, é significativo dentro desta lógica: a sobrevivência de todos depende do avanço desta "conquista social". Se a nova forma de trabalhar, que parece ser a tendência para o futuro, não se enquadrar na boa e velha Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a destruição do sistema estará anunciada.
Da mesma forma, aceitar uma nova legislação trabalhista mais flexível e com direitos mínimos adequados às novas formas de trabalhar constitui um perigo a tudo que está estabelecido. Melhor inclusive que a questão não seja resolvida pelo legislador, pois enquanto isso um novo nicho com potencial de milhões de ações se descortina, a do pedido de vínculo de emprego por ação judicial. Todos ganham com esta possibilidade e a Justiça exerce seu papel.
Parece que teremos que mudar muito se quisermos uma nova lógica para a área trabalhista, uma que não produza mais um custo para as empresas, que de fato acaba sustentando não apenas os trabalhadores através da justa contraprestação, mas também todos os profissionais ligados à indústria do litígio.
Enquanto isso não acontece, ao menos surge uma forma do empresariado nacional reduzir o impacto da questão trabalhista no desenvolvimento econômico: investir na compra do crédito trabalhista. Com retorno de 25% ao ano, como apontado nas notícias que abriram este texto, deve valer mais a pena faturar com o litígio do que produzir no Brasil.
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