SÃO PAULO — Há pouco mais de dois anos, quando o chefe da organização criminosa paulista ligada ao narcotráfico foi transferido para um presídio federal, um vácuo de poder se instalou na facção. Na penitenciária de segurança máxima em Brasília, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, teve sua rede de comparsas que o conectava com o mundo externo abalada. Isolado, parou de cuidar do dia a dia da organização.

Com a autorização dele, um antigo conhecido da polícia ocupou a posição de principal liderança da facção na rua. No submundo do crime, Marcos Roberto de Almeida atende pelos codinomes Tuta, Angola, Africano, Marquinhos, Tá bem, Boy e Gringo. Há sete anos em liberdade, circulava livremente enquanto praticava novas contravenções. Em setembro passado, com uma ordem de prisão expedida contra ele, passou a ser foragido da Justiça.

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Para o Ministério Público de São Paulo, é Tuta quem atualmente toma as decisões estratégicas da organização criminosa — desde controlar o fluxo de caixa até levantar informações de autoridades e policiais alvos de possíveis atentados da facção. A decisão de colocá-lo como o novo chefe foi tomada por toda a cúpula, sem divergência.

De lá para cá, Tuta vem ganhando terreno na liderança. Para o promotor Lincoln Gakiya, que está há 13 anos à frente do Grupo de Atuação Especial contra o Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público em Presidente Prudente (SP), região que concentra o maior número de prisões do país, Tuta é o nome que “resolve tudo” na facção:

— É quem cuida dos negócios: se a facção vai vender para a máfia calabresa, se vai comprar de determinado fornecedor...

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O promotor revela que o mais recente plano de resgate de Marcola, em dezembro de 2019, ficou sob responsabilidade de Tuta. A facção já teria mapeado os arredores da penitenciária de Brasília com drones e arregimentado integrantes com conhecimentos militares. A intenção era libertar Marcola enquanto ele se deslocava para consultas e exames médicos — para conter o plano, militares do Exército reforçaram a segurança do presídio.

Marcola faz exames no Hospital de Base de Brasília, acompanhado de um forte aparato policial 21/01/2020 Foto: Jorge William / Agência O Globo
Marcola faz exames no Hospital de Base de Brasília, acompanhado de um forte aparato policial 21/01/2020 Foto: Jorge William / Agência O Globo

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Tuta é um antigo conhecido das autoridades. Em 2006, quando já atuava na organização criminosa, foi preso em Guarulhos. Estavam com ele duas mulheres com documentos falsos. No momento da abordagem, Tuta ofereceu R$ 50 mil aos policiais das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) para que os agentes não efetuassem a prisão. Numa interceptação telefônica do MP feita em 2013, o criminoso conversa com outro investigado sobre o pagamento de propina a PMs em Heliópolis, uma das maiores favelas de São Paulo.

De acordo com a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, Tuta é egresso do Centro de Progressão Penitenciária de São José do Rio Preto. Ele cumpria pena de 23 anos, 7 meses e 28 dias pelas práticas de latrocínio, roubo qualificado, ameaça, cárcere privado, uso de documento falso, falsificação de documento público, corrupção ativa e dano qualificado. Saiu pela porta da frente em 2014, por progressão de pena ao regime aberto.

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Segundo Gakiya, Tuta e Marcola se conheceram na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau (SP), onde cumpriram pena juntos. Tuta alcançou mais relevância na organização depois que Rogério Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, e Fabiano Alves de Souza, o Paca, foram assassinados no Ceará. Tuta se tornou um nome forte, em especial, porque estava em liberdade e, na época, ainda não era procurado pela Justiça.

Sob sua gestão, o dinheiro do tráfico de drogas é recolhido das biqueiras da Grande São Paulo, Baixada Santista e interior a cada três dias. Em seguida, é enviado a hotéis de luxo ou apartamentos alugados pela facção e guardado em cofres construídos para esse fim. Então é entregue a doleiros de confiança e enviado ao Paraguai. Em um ano e três meses, de acordo com a denúncia do Ministério Público, a facção mandou R$ 1,2 bilhão para o país vizinho, referente apenas ao tráfico de drogas interno.

Paradeiro desconhecido

Em maio de 2019, uma operação do MP batizada de Jiboia teve Tuta como principal alvo. Segundo investigações, ele pertencia à chamada célula “restrita” e era responsável por rastrear autoridades e policiais. A facção planejava matar três capitães da PM, um promotor e um parlamentar. Num dos endereços do criminoso, num bairro nobre da capital paulista, a polícia encontrou um Porsche branco. Em outro local, apreendeu celulares, notebook, R$ 182 mil em espécie, além de um cartão de um consulado africano. Na ocasião, não havia mandado de prisão contra Tuta, apenas de busca e apreensão.

Em setembro do ano passado, a operação Sharks, também do MP, tentou prender Tuta — sem sucesso. Ele se encontrava em São Paulo, mas a polícia não o localizou. Para o MP, o esconderijo varia entre a Bolívia e países do continente africano.

Segundo as investigações, em meados de 2018 Tuta foi admitido pelo consulado de Moçambique em Belo Horizonte com o cargo de adido comercial. Gakiya afirma que Tuta esteve no país africano na companhia do então cônsul honorário em BH, Deusdete Januário Gonçalves.

Ao GLOBO, Gonçalves nega a viagem. Diz que Tuta foi contratado a pedido da Embaixada de Moçambique, em Brasília, “para buscar empresas e fomentar relações comerciais” com o país africano, e que nunca teve contato direto com ele. De acordo com Gonçalves, Tuta tinha a atribuição de enviar para a Embaixada e para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Moçambique, a cada três meses, um relatório detalhando suas atividades. Não recebia salário, apenas uma comissão de 10% pelos negócios intermediados.

— Ele nunca fez uma missão sequer para o país. Quando descobri que não estava prestando relatório, o mandei embora. A partir daí, fui perseguido pelos embaixadores — defende-se Gonçalves.

Rota pela África

Em nota, a Embaixada de Moçambique informa que o país nunca possuiu um Consulado Honorário em Belo Horizonte e, por isso, não teve Tuta como funcionário. Ressaltou ainda que, embora não tivesse a sede física do consulado, nomeou Gonçalves para a função de cônsul honorário. Em julho de 2020, ele foi destituído do posto.

Gakiya explica que os países africanos são estratégicos para a facção pela logística de distribuição da droga, que sai dos países andinos, passa pelo Brasil e atravessa o Atlântico. É mais vantajoso desembarcar os ilícitos na África do que em portos mais visados, como os da Bélgica, Holanda e Itália. Do continente africano, a droga é enviada para os mercados asiático e europeu, sem depender da intermediação das máfias europeias, que cobram 40% do valor da mercadoria pelo serviço. A intenção da facção seria abrir uma rota própria via África.