A catraca representa uma barreira na circulação, enquanto o preço da tarifa aponta para o “muro invisível” que nega inclusive o direito à cidade de boa parte dos indivíduos da classe trabalhadora
O conflito aberto entre o governo de São Paulo, por meio da proposta de privatização do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) das estatais Sabesp, Metrô e CPTM, e os respectivos sindicatos e categorias de trabalhadores dessas companhias demonstra mais uma página de impasses na história da frágil democracia brasileira. Os trabalhadores já realizaram duas greves, em 3 de outubro e 28 de novembro, enquanto o governo conseguiu aprovar na Assembleia Legislativa a privatização da Companhia de Abastecimento em 7 de dezembro. A disputa tem como pano de fundo a mercadorização das necessidades dos trabalhadores e do conjunto da sociedade, com a precarização e retirada de direitos sociais garantidos constitucionalmente e que são deveres de Estado.
A sociedade brasileira se estruturou com base numa relação de dominação oriunda da herança colonial e escravocrata secular. Nesse cenário, as classes e elites brancas que dominam a sociedade são avessas aos avanços dos direitos sociais da classe trabalhadora, formada por populações negra, indígena, migrante e imigrante. Isso num Estado-nação cujos pressupostos são republicanos, mas que na prática vem agido para a garantia das condições de reprodução dos grandes capitais, sejam eles internos ou externos.
Classes sociais diferentes têm problemas diferentes, poderes políticos e econômicos diferentes e espaços urbanos diferentes.[i] Os defensores das privatizações parecem ser do segmento da população que não utiliza transporte público e coletivo cotidianamente, circula de automóvel e reproduz a ideologia do “mercado virtuoso” versus “Estado ineficiente”.
Por isso, o conflito instaurado e explicitado nos últimos dois meses não parece ter solução quando duas visões de mundo se enfrentam numa relação de força e queda de braço em que não há diálogo, construção coletiva e participação popular nas instâncias de poder e decisão política. Com referência ao conflito, expomos aqui algumas contradições e impasses que precisam ser explicitados para uma compreensão desses processos de modo a encontrar saídas.
CONTRADIÇÕES ENTRE PRIVATIZAÇÕES E DIREITOS CIVIS, POLÍTICOS E SOCIAIS
A privatização refere-se ao processo oriundo das políticas de governos atreladas às empresas privadas e agentes do mercado em que empresas públicas e estatais são vendidas e/ou concedidas para os capitais privados, seja na forma de concessão pública ou mesmo de parcerias público-privadas e venda definitiva. Elas foram criadas sob o escudo ideológico das políticas neoliberais do Consenso de Washington de 1989, cujos princípios econômicos objetivavam reorientar os gastos públicos de governos; privatizar empresas públicas; desregulamentar os mercados; eliminar barreiras fiscais aos investimentos estrangeiros; além de proteger e garantir a propriedade privada.
As políticas neoliberais decolam no final da década de 1970 e início de 1980 com os governos da primeira-ministra Margaret Thatcher, no Reino Unido, e do presidente Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e foram aplicadas na América Latina pela primeira vez como laboratório sob a ditadura militar de Augusto Pinochet, no Chile. Diante das crises de superprodução do fordismo e da reestruturação produtiva, do petróleo e crescimento urbano das cidades, para uma suposta saída das crises, Thatcher disse que “não havia alternativa”, ao defender que os governantes de países em desenvolvimento deveriam seguir a cartilha neoliberal para receber “investimentos” externos diretos.
Com a redução de investimentos estatais em políticas sociais em decorrência das privatizações no Brasil na década de 1990, os direitos sociais das populações trabalhadoras foram impactados. Como o conjunto dos direitos civis, políticos e sociais do Estado constitui a base para o exercício da cidadania, cabe destacar que os civis referem-se à liberdade individual, igualdade de direitos e garantia da propriedade; os políticos, à participação política em governo, instituições públicas de Estado e privadas, bem como votar e ser votado; e os sociais, à participação na distribuição da riqueza social por meio do trabalho, da educação, da saúde, da previdência social, da moradia, do transporte e de programas de redistribuição de renda.
O princípio de “não haver alternativa” de Thatcher baixou como um espírito na consciência e na prática do governador Tarcísio de Freitas, que está intransigente em relação às privatizações que, segundo ele, baseiam-se na sua “convicção” de que será melhor para São Paulo. Curioso o governador dizer o que será melhor para São Paulo sem que tenha feito um plebiscito popular oficial e sem que tenha vivido aqui ao longo da vida, já que é natural da cidade do Rio de Janeiro. Freitas parece agir assim como um “Hood Robin” (Robin Hood às avessas): quer retirar dos pobres para dar aos ricos, com o recente ciclo de privatizações que seu governo pretende inaugurar.
Entretanto, Freitas e seu parceiro no município de São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB), tiveram que enfrentar e explicar o recente “caos” do apagão provocado pela morosidade nas ações da Enel em reestabelecer a energia de diversos bairros e distritos interrompida com a queda de árvores após o recente vendaval na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Milhares de pessoas ficaram dias sem energia e o apagão levantou fortes questionamentos sobre o processo de privatização de setores estratégicos e de infraestrutura básica.
Outro problema foi explicitado na matéria “Linhas privadas ganham 4 vezes mais, mas transportam menos que o Metrô e CPTM”: as privatizações das linhas 8 e 9 da CPTM e da linhas 4 e 5 do Metrô, vendidas e sob concessão por meio da venda e parceria público-privada à Companhia de Concessão Rodoviária (CCR), evidencia a caixa preta dos recursos públicos e do preço da tarifa que foram transferidos para as empresas de transporte no munícipio de São Paulo. O portal UOL apurou que a Via Mobilidade e Via Quatro, ambas nomes fantasias da CCR, receberam juntas R$ 2 bilhões de repasses em 2022 para transportar apenas 500 milhões de passageiros, enquanto o Metrô recebeu R$ 291 milhões e a CPTM R$ 169 milhões, totalizando R$ 460 milhões, para transportar mais de 1,5 bilhão de passageiros no ano.
No caso da privatização das linhas de trem e metrô que ainda são estatais, os impactos se refletiriam diretamente no aumento progressivo do preço da tarifa, podendo chegar em alguns lugares a R$ 8 ou R$ 9, preços que na atualidade são menores em decorrência do subsídio público. Após três décadas de políticas neoliberais e privatizações, setores populares da sociedade brasileira e da classe trabalhadora questionam essas medidas com base no aumento do custo de vida, na precarização dos serviços públicos essenciais e na defesa dos direitos sociais.
CONTRADIÇÕES URBANAS ENTRE OS MODAIS RODOVIÁRIO E METROFERROVIÁRIO
A urbanização é um processo social, político, econômico e ideológico tipicamente capitalista caracterizado pelos fenômenos de expansão e crescimento das cidades por meio da aglomeração urbana e crescimento da população, originada do forte processo de concentração industrial e fluxo migratório campo-cidade. Ela advém da industrialização, mas é independente dela por estar além da indústria e porque refere-se à produção e à reprodução do espaço urbano, espaço em que há uma concentração de infraestrutura viária, equipamentos, serviços urbanos e riquezas sociais materiais e imateriais.
A urbanização capitalista e a produção do espaço com base na segregação urbana criaram e expandiram a necessidade de transporte motorizado, e indivíduos passaram a realizar longas viagens entre origem e destino numa cidade, mas também entre cidades, metrópoles, países e continentes. Por isso, entender o transporte implica encará-lo como um problema coletivo, não individual, haja vista que os primeiros transportes coletivos de massa da sociedade industrial foram os trens, que circulavam em ferrovias, e os navios a vapor, criados para o transporte de mercadorias e de passageiros. A ferrovia é a irmã siamesa da Revolução Industrial e o seu desenvolvimento representou a “locomotiva” do progresso capitalista e da consolidação da sociedade moderna.
No Brasil, a ferrovia foi inaugurada na segunda metade do século XIX, inicialmente na região Sudeste. Ela foi construída com capital dos barões do café e do Estado imperial para que pudesse dar vazão à produção dessa matéria prima, valorizada no mercado internacional, mas também para transportar passageiros do interior do estado até o porto de Santos com maior rapidez. Portanto, o transporte ferroviário teve um papel importante na estruturação da cidade e da sociedade urbana.
O modelo de desenvolvimento desigual e combinado instituído na sociedade brasileira se estruturou com base no capitalismo dependente, alicerçou-se no fordismo periférico[ii] e na catraca como símbolo de uma sociedade com herança colonial e escravocrata, cujas barreiras sociais e étnico-raciais determinam quem pode e não pode circular pela cidade, ou seja, circular pela própria sociedade. A catraca representa uma barreira na circulação, enquanto o preço da tarifa aponta para o “muro invisível”[iii] que nega inclusive o direito à cidade de boa parte dos indivíduos da classe trabalhadora.
Com referência a esse modelo de sociedade desenvolveu-se o que designei por urbanização rodoviarista,[iv] fenômeno que resulta do processo de desenvolvimento urbano, cuja lógica de acumulação está alicerçada no tripé de crescimento econômico global desde a década de 1930 e intensificada nos anos de 1950: 1) indústria petroleira; 2) indústria automotiva; e 3) indústria da construção civil. Esses três setores redefiniram e expandiram a produção espacial das cidades e metrópoles brasileiras no ciclo de urbanização periférica, além de criar as condições para outro tipo de ligação entre cidades por meio do sistema viário rodoviarista, ao ampliar a força produtiva para a circulação de automóveis, caminhões, ônibus[v] e proliferar o modo de circulação individual no acesso ao transporte. Isso vai marcar a hegemonia desse modelo e provocar a crise de mobilidade urbana nos deslocamentos das metrópoles brasileiras no final do século XX e início do século XXI, contexto da Revolta da Tarifa que insurgiu em 2013.
Foi com a urbanização rodoviarista, inaugurada com o Plano de Avenidas do prefeito Francisco Prestes Maia e assumida como modelo de desenvolvimento urbano pelo presidente Juscelino Kubitschek, que ocorreu a expansão da segregação urbana e a periferização das cidades, diferentemente do ferroviarismo que havia propagado a suburbanização.[vi] Ao longo de décadas os investimentos públicos estatais voltaram-se exclusivamente para a produção de ruas, avenidas, rodovias, pontes, viadutos e túneis para atender à tríplice indústria, cujas consequências foram a crise urbana.
A urbanização rodoviarista favoreceu ainda a indústria do transporte coletivo, representada pelos ônibus de passageiros. Empresas de ônibus privadas foram fundadas a partir da década de 1940, ao substituírem o transporte de bondes na cidade, para realizar o “serviço” de transporte e atender o conjunto da classe trabalhadora que não dispunha de recursos para adquirir automóveis.
Atualmente em São Paulo, de acordo com a matéria do UOL já citada, cerca de 65% dos recursos do Bilhete Único e dos subsídios públicos em 2022 foram repassados para a SPTrans. Esta fez o repasse direto para as empresas de ônibus privadas, o que representa R$ 4,5 bilhões, enquanto as linhas privatizadas do sistema metroferroviário assumidas pela CCR receberam R$ 2 bilhões. Isto é, 92,9% (R$ 6,5 bilhões) dos recursos arrecadados foram destinados aos capitais privados, enquanto apenas R$ 500 milhões foram destinados ao transporte público, representado pelas companhias do Metrô e CPTM.
Segundo Eduardo Vasconcellos,[vii] a cada R$ 10 investidos em transporte, apenas R$ 2 foram para o transporte público. Cerca de 80% dos recursos públicos foram direcionados ao sistema rodoviário e transporte privado, com o consequente abandono e sucateamento das ferrovias durante décadas. Isso evidencia que numa sociedade democrática os recursos públicos deveriam ser direcionados para o uso público, mas, ao contrário, numa sociedade regida pelas leis da acumulação capitalista, o Estado investiu pesado no rodoviarismo como força produtiva para a circulação e valorização de veículos particulares, contradições que abordaremos a seguir.
CONTRADIÇÕES ENTRE SEGREGAÇÃO URBANA, TEMPO DE ROTAÇÃO DO CAPITAL E TARIFA ZERO
A cidade no processo de urbanização tornou-se o espaço fundamental de produção e reprodução das classes sociais, em particular da classe trabalhadora, cuja determinação foi a da centralização das necessidades vitais de reprodução da vida social. Se para o conjunto da classe trabalhadora o espaço urbano representa um valor de uso, para o capital, na dinâmica de produção do espaço, tornou-se a mediação essencial de realização do valor na condição de valor de troca e mercadorização da vida.
Diferentemente dos países de economias centrais, no Brasil e na América Latina a urbanização acelerada provocou um crescimento “desordenado” com desigualdades estruturais, expansão rodoviarista, favelização e periferização das cidades decorrentes da urbanização periférica. Esse crescimento “desordenado” aumentou as dimensões de cidades e metrópoles com sua expansão e fez crescer as distâncias espaciais e necessidades de transporte coletivo para os indivíduos. Por isso, a indústria ferroviária foi fundamental para diminuir o espaço pelo tempo na dinâmica de produção e circulação do capital, mas foi a tríplice indústria que sustenta a urbanização rodoviarista que permitiu uma oferta regular e mais acessível de veículos de transporte individual e coletivo, com certa mobilidade entre as localizações urbanas produzidas socialmente.
As cidades, com a urbanização capitalista, revelam espaços produzidos na lógica da separação entre as classes sociais por uma tríplice segregação do urbano: segregação socioespacial, que se refere à materialização urbana nas cidades dessa separação tanto no âmbito de bairros, como distritos e/ou áreas de uma cidade ou metrópole; segregação étnico-racial, caracterizada por onde habitam os trabalhadores superexplorados, em sua maioria representados pela população negra, ao viverem em moradias autoconstruídas e conjuntos habitacionais em favelas e bairros periféricos, relações raciais entendidas aqui como construção ideológica a partir de práticas sociais;[viii] e segregação urbana/territorial, que se vê na escala da metrópole como expressão das segregações socioespacial e étnico-racial na diferenciação das áreas nas cidades, tais como centro expandido, subúrbios e periferias. Então, toda classe social tem seu espaço diferenciado.
Por isso, a principal separação nessa tríplice segregação está entre trabalho e moradia, cuja diferenciação se dá pelas diferentes localizações no espaço. Na metrópole de São Paulo é perceptível a distinção entre as condições de moradia, transporte e trabalho de quem habita áreas distintas do centro expandido e do quadrante sudoeste, em relação aos subúrbios e periferias. Não é por aleatoriedade da vida ou intervenção divina que as melhores condições urbanas de infraestrutura viária de transporte com avenidas expressas, linhas de trem e metrô, serviço, comércio, emprego etc., se concentrem no quadrante sudoeste e centro expandido, lugar de habitação e negócio das classes médias altas e dominantes da sociedade. Em seu inverso, se verifica a precariedade de habitação, trabalho e transporte nas periferias, polo oposto dessa sociabilidade espacial do capital.
A retomada dos investimentos públicos no transporte metroferroviário mostra que de 1995 a 2017 o governo de São Paulo investiu na CPTM cerca de R$ 17,2 bilhões na CPTM. No Metrô, 2007 a 2017, foram R$ 33,8 bilhões na construção de novas linhas, estações, trens e modernização.[ix] Valores que nenhum capital privado estaria disposto a investir pelo tempo que levaria para obter o seu retorno. São esses investimentos estatais que foram transferidos com as privatizações nos últimos anos pelos governos tucanos a preços irrisórios para o capital privado, no caso, para uma única empresa: a CCR. Cabe destacar que a maioria das linhas do Metrô construídas no período se localiza em bairros nobres do quadrante sudoeste de São Paulo, áreas dos vetores de valorização imobiliária, ou seja: a expansão do transporte metroferroviário está de mãos dadas com a produção e os lançamentos imobiliários – não se vendem apenas imóveis, mas localizações.
Em recente estudo de doutorado, analisei o tempo de rotação do capital a partir da pesquisa de quarenta empresas de ônibus privadas que operam o transporte intermunicipal metropolitano em São Paulo e visitei duas delas. O tempo de rotação do capital foi definido por Marx[x] como processo periódico em que sua duração é dada pela soma de seu tempo de produção e seu tempo de circulação. A dinâmica de produção capitalista busca incansavelmente reduzir tanto o tempo de produção como o tempo de circulação, o que nas palavras de Marx representa “compressão do espaço pelo tempo”, ao possibilitar com mais rapidez a realização do valor acrescido em movimento.
Em uma simulação nesse estudo pude demonstrar que uma empresa de ônibus, ao investir na compra de ônibus para ampliar seu capital em determinadas linhas, consegue restituir seu investimento no período de seis meses, enquanto o fabricante de ônibus, no período de um ano. Todavia, o fabricante, que está inserido na cadeia produtiva da grande indústria capitalista, dispõe de um montante maior de investimentos com grandes capitais e tem uma capacidade produtiva de montar quarenta ônibus por dia. Só para se ter uma ideia, uma locomotiva é montada em três dias, o que demonstra a diferença do quantum de trabalho socialmente necessário para sua produção, por isso um trem tem um valor superior ao de um ônibus. Qual a mágica desse processo?
A resposta está no tempo de rotação do capital, porque no caso da empresa de ônibus, que adquiriu o veículo para o transporte de passageiros, o seu capital investido que será restituído nessa relação social volta mais rápido. Isso porque a produção do valor é a própria circulação, ou seja, o levar e trazer passageiros diariamente garante que o tempo de rotação esteja mais próximo de zero, o que lhe permite ter um ciclo de rotação mais curto. Outro aspecto é que o valor do ônibus adquirido junto ao fabricante será transferido via preço da tarifa, pago pelos passageiros que utilizam diariamente o transporte, fator que faz com que na dinâmica da acumulação e valorização do capital haja sempre uma pressão para a subida do preço da tarifa. Cabe destacar ainda que se as empresas têm seu capital restituído em seis meses, utilizam os veículos por cinco, dez ou até quinze anos, além de usar o sistema viário sem que desembolsem nenhum capital direto para esse uso.
A indústria automotiva no Brasil mostra que o faturamento saltou de US$ 10 bilhões anuais em 1966 para US$ 95 bilhões em 2010,[xi] o que pode ser verificado no acumulado de investimento público no transporte para essa lógica de acumulação privada: enquanto R$ 3,68 trilhões foram destinados para o transporte individual, apenas R$ 439 bilhões[xii] foram destinados ao transporte coletivo, o que evidencia o abismo nos investimentos públicos que urgentemente precisam de inversão de prioridades para salvar as cidades da poluição, o planeta do efeito estufa, a espécie humana dos problemas de saúde e eventos climáticos a todos os seres vivos do planeta.
É por isso que a privatização tende a intensificar essas contradições no sentido de dificultar ainda mais as condições de vida e reprodução da classe trabalhadora. E é por isso também que as proposições do governo de São Paulo, em vez de resgatar uma política neoliberal que não deu “certo” na efetivação do direito à cidade aos habitantes da metrópole paulistana, ao precarizar as condições de transporte, poderia estar numa direção inversa caso fosse uma gestão popular preocupada com a população trabalhadora: pautar, discutir e instituir a tarifa zero, a exemplo dos 74 municípios[xiii] no país que adotaram essa política, tal como Maricá e Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro, e São Caetano do Sul, na RMSP.
Como destacou Daniel Santini,[xiv] a adoção da tarifa zero está entre as soluções mais interessantes para as cidades, com potencial para melhorar o trânsito, o bem-estar e a qualidade de vida não só de quem usa as redes abertas, mas de toda a população. Para o autor, as políticas públicas de passe livre ou tarifa zero são aquelas em que se prevê o uso de transporte coletivo sem cobrança direta da tarifa. Então, o transporte público deixaria de ser tratado apenas como um serviço e voltaria a ser encarado como um direito social, tal como os sistemas de saúde e educacional. Ao mostrar como diferentes cidades no Brasil e no mundo aplicaram a política da tarifa zero, Santini resgata a utopia do passe livre como tecnologia social que é capaz de democratizar a circulação dos habitantes nas cidades, enquanto o transporte privado e por aplicativo não permite isso e joga a questão da mobilidade urbana na ilusão da solução individual.
A discussão a tarifa zero foi iniciada em São Paulo na gestão da prefeita Luiza Erundina (Partido dos Trabalhadores), em 1989, sob a proposição de seu secretário de transportes, o engenheiro Lúcio Gregori. Naquele momento, a prefeitura instituiu a tarifa zero por meio da empresa estatal CMTC em finais de semanas, eventos esportivos e algumas linhas circulares que havia no distrito de Cidade Tiradentes, extremo da zona leste. Porém, a administração não obteve apoio na Câmara para a ampliação do projeto, que contaria com o uso do subsídio proveniente na época do IPTU.
Em um mês de tarifa zero no município São Caetano do Sul, no último balanço feito pela prefeitura, o número de passageiros subiu 120%.[xv] Além de propiciar maior circulação dos habitantes, o comércio da cidade aumentou sua arrecadação com o crescimento das compras e do consumo, já que não há mais o custo do transporte para a população, sem mencionar que essa política gradativamente reduz o uso do automóvel: para cada ônibus em circulação, cerca de cinquenta carros deixam de circular. Para cada trem do Metrô com seis vagões, cerca de 1500 automóveis ficam nas garagens. Em São Paulo, a tarifa zero passará a vigorar aos domingos a partir do dia 17 de dezembro, possibilitando a circulação, vendas no comércio e acesso aos serviços.
À guisa da conclusão, a posição intransigente do governador de São Paulo em defesa da privatização e intolerante em relação à política de tarifa zero explicita nossa derrota histórica como sociedade, principalmente para a classe trabalhadora periférica, ao evidenciar como certas frações de classes pensam e agem por si próprias sem considerar o conjunto da sociedade, além de demonstrar seu caráter antidemocrático, ao não debater com os demais setores sociais e especializados; antipopular, porque a privatização vai prejudicar a maioria e reforça o papel subordinado do país na divisão internacional do trabalho; e anticiência, porque não consultou os estudos, especialistas e proposições sobre os benefícios urbanos da tarifa zero e outras propostas de gestão com controle social das empresas estatais. Barrar a tarifa zero é não enxergar o movimento da história social que exige mudanças ante as emergências climáticas, com políticas diversas e integradas de mobilidade urbana acessíveis e sustentáveis para os trabalhadores e para toda a sociedade.
Sandro Barbosa de Oliveira é cientista social, educador popular e professor. Doutor em Sociologia pelo IFCH Unicamp, mestre em Ciências Sociais pela EFLCH Unifesp e bacharel em Ciências Sociais pela Fafil Cufsa. É pesquisador do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp da Zona Leste e participa do Grupo Problemática Ambiental e Urbana da Unicamp.
[i] VILLAÇA, Flávio. Reflexões sobre as cidades brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012.
[ii] LIPIETZ, Alain. “Fordismo, fordismo periférico e metropolização”. In: Ensaios FEE, Porto Alegre, pp. 303-335, 1989.
[iii] D’ANDREA, Tiaraju; OLIVEIRA, Sandro. “Da cidade na encruzilhada às encruzilhadas políticas do capital: transporte, mobilidade, rua, catraca e poder na cidade de São Paulo”. In: FREITAS, Carolina; BARROS, Douglas; DEMIER, Felipe (Orgs). Junho e os dez anos que abalaram o Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2023.
[iv] OLIVEIRA, Sandro. A condição socioespacial da classe trabalhadora: Transporte e cotidiano da mobilidade perversa na metrópole de São Paulo. Campinas: IFCH UNICAMP, Tese de Doutorado, 2020.
[v] Importante destacar que em 2018 a cidade de São Paulo chegou ao total de 8,8 milhões de veículos e 6,2 milhões de automóveis, segundo dados do Detran-SP (Departamento de Trânsito de São Paulo).
[vi] LANGENBUCH, Juergen. A estruturação da Grande São Paulo: Estudo de geografia humana. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, 1971.
MARTINS, José de Souza. Subúrbio – Vida cotidiana e história no subúrbio da Cidade de São Paulo: São Caetano do fim do Império ao fim da República Velha. São Caetano do Sul: Hucitec, 1992.
[vii] VASCONCELLOS, Eduardo. Políticas de Transporte no Brasil: A construção da mobilidade excludente. São Paulo: Manoele, 2014.
[viii] GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos / organização Flávio Rios, Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 1ª ed., 2020.
[ix] Fonte: Secretaria de Transportes Metropolitanos, 2019.
[x] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro II. São Paulo: Boitempo, 2014.
[xi] VASCONCELLOS, ibidem.
[xii] Associação Nacional de Transporte Público, 2018.
[xiii] Associação Nacional de Empresas de Transportes Urbanos (ANTU), 2023.
[xiv] SANTINI, Daniel. Passe livre: as possibilidades da tarifa zero contra a distopia da uberização. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
[xv] Robson Bonin, Revista Veja, < https://veja.abril.com.br/coluna/radar/o-impacto-da-tarifa-zero-no-numero-de-passageiros-de-onibus-em-sao-caetano >. Acessado em 30/11/2013.