por Kathia Gomes, do Promenino.
A redução da maioridade penal está na pauta quase diária da mídia brasileira, e ainda gera muita polêmica, dividindo ânimos e opiniões de especialistas e sociedade. Os que são a favor conseguiram, no dia 19 de agosto, uma vitória e tanto quando a Câmara dos Deputados aprovou, em segundo turno, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que reduz de 18 para 16 anos a idade mínima necessária para as punições em casos de crimes graves e hediondos. Agora, a proposta aguarda aprovação do Senado, onde terá de passar por duas votações, gerando mais debates. Poucas são as pessoas, porém, que conseguem abordar o assunto com uma visão dos dois lados da moeda, como é o caso de Roberto da Silva, especialista em Educação e ex-interno da Febem (atual Fundação Casa).
Totalmente contrário à medida de redução da maioridade penal, ele se tornou exemplo máximo de reinserção social e hoje, aos 58 anos, é professor doutor no departamento de Administração Escolar e Economia da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Ao conhecer sua biografia, não é difícil se impressionar com o título, merecido após anos de estudo e dedicação. Desde a adolescência, Roberto passou 24 anos de sua vida sob custódia, permanecendo até os 17 anos em unidades da Febem e o restante em casas de detenção.
Sua infância se transformou radicalmente após a mudança com a mãe e três irmãos de São José dos Campos para São Paulo, com a separação dos pais. Sem amparo financeiro, ficaram sem casa por quatro meses. Neste momento, o Juizado de Menores foi acionado e encaminhou os irmãos para uma unidade da Febem. A mãe teve como destino um hospital psiquiátrico. Roberto foi liberado aos 17 anos, sem qualquer tipo de orientação, e foi morar em uma pensão. Na época, passou a trabalhar como office-boy. “Eu só comecei a cometer crimes depois de ficar livre. Antes, apenas havia sido encaminhado para a Febem por conta da falta de estrutura familiar”, relata o professor, que na idade adulta chegou a ser condenado a 36 anos de prisão.
Na prisão, ele passou a estudar Direito, o que reduziu a sua pena de 36 anos a um quinto. “Eu me interessei pela matéria e comecei a estudar como autodidata”, conta. Em liberdade a partir de 1984, não parou mais. Concluiu o ensino formal, que havia interrompido na quinta série, e graduou-se em Pedagogia pela Universidade Federal do Mato Grosso. Em 1996, tornou-se mestre pela USP, publicando livro “Os filhos do Governo” (Editora Ática) e, em 2001, concluiu seu doutorado pela mesma universidade, com a tese “A eficácia sociopedagógica da pena de privação de liberdade”, obtendo a livre docência em 2009.
Com a consciência de que a sua trajetória é uma exceção, pensando em ajudar aos jovens que enfrentam as mesmas dificuldades em serem aceitos de volta na sociedade, ele criou o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Regimes de Privação da Liberdade (GEPÊPrivação), integrado por pesquisadores da Faculdade de Educação (FEUsp) e do Instituto Paulo Freire (IPF). “Estou muito envolvido em viabilizar a educação dentro das prisões e também nas unidades da Fundação Casa e empenhado em regulamentar a educação social como profissão no Brasil”, afirma.
Em “Política”, primeiro capítulo do livro “Pedagogia Social – Ciência da Delinquência: O olhar da USP sobre o ato infracional, o infrator, as medidas socioeducativas e suas práticas” (Editora Expressão & Arte), o professor esclarece os motivos pelos quais é contra a redução. “Apenas 1% dos adolescentes comete crimes hediondos. A taxa de reincidência é de 13,5% e entre os adultos sobe para 75%. Reduzir a maioridade penal significa atingir apenas 349 meninos de cerca de 10 mil que se encontram internados para medidas socioeducativas”, explica. Confira a seguir trechos da entrevista concedida ao Promenino:
Promenino – Quais são as consequências para a sociedade, caso a redução da maioridade penal seja aprovada?
Roberto da Silva: Além de claramente não resolver o problema da violência, argumento que se usa para tentar aprovar a PEC, nosso país pode ser suspenso dos sistemas internacionais de direitos humanos. Nosso país assinou todos os tratados e todas as convenções mundiais sugeridas pela ONU (Organização das Nações Unidas). Ou seja, legalmente, devemos fazer o que dissemos ao mundo que faríamos. A diminuição da idade penal dos adolescentes fere gravemente várias normas estabelecidas e, por conta disso, o Brasil será obrigado a comunicar e se justificar perante os 192 países ligados à ONU. Por conta do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) o nosso país é referência mundial na defesa dos direitos das crianças e adolescentes. Então, com a aprovação da PEC, estaremos seguindo na contramão de tudo o que alcançamos de bom nos últimos 25 anos.
O senhor afirma, inclusive no artigo do seu livro, que a redução não resolve a questão da violência. Pode citar exemplos que respaldem o argumento?
Os projetos de lei apresentados sempre relatam os episódios chocantes mostrados exaustivamente na mídia, como o caso do Champinha, em 2003. Só que, desde então, os adolescentes que cometem esses crimes hediondos são condenados. Eles têm sua liberdade tirada por no máximo três anos com as aplicações de medidas socioeducativas.
Qual é a situação dos adolescentes internados na Fundação Casa, quando comparada com os adultos presos?
São mais de 10 mil adolescentes cumprindo medida socioeducativa, contra 560 mil adultos presos. As infrações juvenis são estatisticamente menores quando comparadas com a dos adultos. O assunto a ser debatido não tem que ser a redução da idade penal, e sim a garantia dos direitos conquistados pelo ECA.
Não há uma equivalência entre as medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes e as penas aplicadas aos adultos. É daí que vem o discurso da impunidade, que não é verdadeiro. Porque o adolescente, na prática, é mais duramente punido do que o adulto. Exemplo: um roubo à mão armada. Um adulto que seja réu primário, que não tenha antecedentes, recebe uma pena de 5 anos e quatro meses. Se tiver endereço fixo e estiver trabalhando, cumpre apenas 1 ano, 6 meses e 10 dias. Depois disso, está livre, vai para a rua. Já um adolescente que cometer o mesmo crime, mesmo sendo primário, pode ficar até 3 anos. E isso acontece em relação a outros crimes também, ainda que sejam mais leves.
Um caso como o seu, por exemplo, que foi enviado para a Febem ainda criança e sem ter feito nada de errado, jamais poderia acontecer, não é?
Jamais! Mas, na prática, isso ainda acontece. E muito. Tem meninos de abrigo, que, simplesmente por cometerem atos infracionais (fumar, usar drogas dentro do abrigo, se envolver em brigas que causam lesão corporal), são enviados para unidades da Fundação Casa. E hoje, aqueles que completam 18 anos simplesmente são mandados para o sistema carcerário comum. Mas o ECA permite que as medidas socioeducativas sejam aplicadas junto a medidas de proteção. Os casos de droga, pequenos furtos, pichação, bagunça, briguinhas de rua são típicos de adolescentes que precisam de proteção socioeducativa, e não de punições com internações. O correto seria incluí-los em projetos sociais, de artes, de esportes… Fazer um acompanhamento sério de forma preventiva.
E qual seria a solução a ser aplicada?
O investimento em educação é uma solução real do Estado para que, ao completarem 18 anos, esses adolescentes possam ser inseridos de verdade na sociedade, diminuindo suas chances de reincidência. Devem ficar sob a tutela do ECA até os 21 anos, ampliando a proteção jurídica da adolescência para a juventude, em vez de simplesmente transferir essa tarefa para o sistema penitenciário brasileiro.
Quais são as medidas socioeducativas indicadas?
As previstas no ECA já são suficientes, se forem realmente aplicadas. Ao contrário do que a sociedade pensa, crianças e adolescentes são punidos, sim, e enviados para internação. O que se deve fazer é se preocupar com a internação mais gravosa. Pois a internação de adolescentes, de forma indiscriminada, é responsável pela superlotação, que torna desproporcional o número de agentes para determinado número de internos, criando os problemas que já conhecemos.
Que tipo de experiências chegou a fazer pela reinserção social dos adolescentes internos?
Seria interessante destacar a experiência que fizemos no GEPÊPrivação, com o projeto de Iniciação Científica na USP, como fundamento para orientação técnica e profissional para adolescentes da Fundação Casa, no qual alunos regularmente matriculados em cursos da USP puderam compartilhar a sala de aula com adolescentes cumprindo medidas socioeducativas de internação em unidades da Fundação Casa. A dificuldade que encontramos foi sobretudo por parte das famílias, que não faziam um investimento em seus filhos. Não havia apoio familiar. Enquanto estavam internados, iam duas vezes por semana na USP, com a escolta necessária. Eram engajados e participativos nas questões. Mas, depois que adquiriram a liberdade, as cobranças familiares por empregos, impossibilitaram a continuação da educação, dos estudos.
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