Relato faz parte da série de cinco episódios inspirada no livro da jornalista Ana Paula Araújo. Vítima, hoje com 41 anos, também falou sobre os motivos de não ter denunciado.
Por Heitor Moreira, EPTV1
Uma mulher que foi estuprada três vezes entre os 6 e os 19 anos relatou à EPTV, afiliada da TV Globo, como foram as violências cometidas por vizinhos, tio e patrão.
Hoje com 41 anos, a moradora de uma cidade do interior de São Paulo, na região de cobertura do g1 São Carlos e Araraquara, também contou os motivos de não ter denunciado os casos quando ocorreram.
O EPTV2 e o g1 lançam, nesta segunda-feira (6), a série de reportagens multimídia chamada "Abuso" — que tem como base o livro da jornalista e apresentadora Ana Paula Araújo e aborda a violência contra mulheres e crianças a partir de experiências na área de cobertura da emissora. (confira o vídeo acima).
Três estupros
Mulher foi vítima de estupro 3 vezes por vizinhos, tio e patrão — Foto: Pedro Santana/EPTV
O primeiro abuso aconteceu aos 6 anos quando a família dela se mudou para uma fazenda. Ela fez amizade com uma vizinha e gostava de brincar de casinha e de boneca.
“Mas os outros irmãos dela começam a entrar no quarto também para ficar com a gente. E eu lembro que eles já eram adultos e eles começaram com algumas ‘brincadeiras’. Falavam que iam brincar de médico com a gente, apagavam as luzes. Aí eles começaram a tirar as nossas roupas e aí aconteciam os abusos. Eles tampavam as nossas bocas, minha e da irmã deles, pediam pra gente ficar quieta, que eles tiravam a mãos”, disse.
Ela contou que sofria ameaças após os abusos. “Nós ficávamos quietas e sempre diziam, sempre ameaçavam que a gente não podia contar nada para ninguém, porque senão algo de muito ruim ia acontecer com os nossos pais.”
Em uma noite de Natal, ela sofreu o segundo abuso, aos 11 anos. “Meus pais tinham acabado de se separar, e a gente sempre se reunia nos Natais, na casa da minha avó. Então, eu lembro que eu estava muito triste por conta dos meus pais, e um tio meu chamou eu e meus primos para a gente brincar. Aí, nós começamos a brincar de esconde-esconde, e meu tio pegou um cobertor, se cobriu e falou: 'vem cá, esconde aqui'. Aí, ele me colocou no colo dele e fez com que eu manipulasse o órgão [sexual] dele”, relembrou.
O terceiro abuso aconteceu aos 19 anos. O proprietário do escritório onde trabalhava pediu para ela começar a ir aos domingos para lançar itens do estoque do computador.
“Ele estava do meu lado falando: ‘eu vou te ajudar, vou te falar dos números, você vai digitando’. Ele começou a colocar a mão no meio das minhas pernas, acariciar e oferecer ajuda. Ele falava: 'eu sei que você precisa, eu posso te ajudar'. Mas eu nunca aceitei nada além. E, assim que eu consegui outro emprego, eu pedi demissão e saí do trabalho”, contou.
Ela ainda explicou os motivos pelos quais nunca denunciou os casos. “Eu nunca denunciei porque, quando era criança, tinha medo por conta dos meus pais, deles sofrerem alguma coisa. Quando eu tinha 11 anos, eu não denunciei porque eu achava que ninguém acreditar em mim. Quando eu tive 19, eu não denunciei porque era uma cidade muito pequena. O dono do local tem posses, tem nome, então, assim seria difícil alguém acreditar em mim”, explicou.
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Crescimento de estupros
A última edição do anuário do Fórum de Segurança Pública mostrou um crescimento de 4% dos casos de estupro e estupro de vulnerável em todo o país. Foram mais de 66.000 registros em delegacias de polícia — uma média de 180 casos por dia, sete casos por hora.
“Embora esse número seja muito elevado e esteja em crescimento, na verdade o que a gente consegue medir hoje é só a ponta do iceberg, porque a maior parte das vítimas sequer denunciam. Esses são os casos que chegam até as autoridades policiais, mas que nós sabemos que há uma enorme subnotificação”, disse a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno.
A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno. — Foto: Reprodução/EPTV
Toda mulher convive com o fantasma do abuso sexual. As que de fato foram estupradas e carregam sequelas por toda a vida, muitas vezes mesmo sem perceber como isso influência seus comportamentos.
Há aquelas que, mesmo sem ter sentido na pele esse tipo de violência, o tempo todo evitam lugares, pessoas, roupas e horários por medo de um estupro.
A jornalista Ana Paula Araújo pesquisou sobre abuso sexual por quatro anos, conversando com vítimas e estupradores dentro da cadeia em várias partes do país.
“Conversei com especialistas no assunto, com psicólogos, com médicos, policiais, advogados, juízes, pessoas que lidam com isso no dia a dia para traçar um retrato do que é a violência sexual pelo Brasil. Posso dizer que acontece da mesma forma em todas as regiões e em todas as classes sociais”, disse a jornalista.
Ana Paula também falou sobre as dificuldades para as vítimas denunciarem os crimes.
“(...) porque tem medo, porque achou que ia ser mal recebida na delegacia. A gente sabe que são poucos os municípios brasileiros que têm, de fato, uma delegacia da mulher com atendimento específico. Têm medo de serem desacreditadas porque é um crime que muitas vezes não tem testemunhas. A vítima fica naquela situação, quem é que vai acreditar em mim?", afirmou.
A jornalista Ana Paula Araújo é autora do livro 'Abuso - A cultura do estupro no Brasil' — Foto: Reprodução/EPTV
O que é o estupro
Estupro é qualquer forma de violência sexual, com ou sem penetração, contra vítimas do sexo masculino ou feminino, não importa a idade. Pode ser tanto a conjunção carnal como o ato libidinoso.
“Apalpar regiões íntimas de uma mulher, de um homem ou de uma criança, a penetração à força. Acho que é importante a gente falar. O estupro é necessariamente um ato sexual que não conta com o consentimento da vítima”, disse Samira.
“A lei brasileira é muito clara: abaixo de 14 anos de idade, não existe consentimento. Então, não dá para dizer que teve uma relação sexual consensual com uma adolescente ou com um adolescente de 13 anos de idade, de 12 anos de idade. Isso é crime, é crime de estupro e estupro de vulnerável, que é ainda mais grave”, disse Ana Paula.
“A pior coisa que te aconteceu não precisa definir o resto da sua vida, procure ajuda, cuide dos seus traumas. Você pode sobreviver a essa violência”, afirmou a jornalista.
É possível denunciar casos de estupro pelo telefone 180.
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6 de fev de 2023 às 15:46
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