Você está visualizando atualmente Relações raciais nos serviços penais são tema de nova publicação do CNJ
Crédito: Isabella Lanave/CNJ/PNUD.
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Em uma população de 644 mil pessoas presas, mais de 400 mil são pretas e pardas, segundo dados do Executivo Federal de dezembro de 2023. De modo a garantir protocolos e práticas antirracistas no dia a dia do sistema penal para além das prisões, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lança, nesta segunda-feira (20/5), o Caderno Temático de Relações Raciais: Diretrizes Gerais para Atuação dos Serviços Penais. Embora a questão racial esteja abordada em diferentes produtos do CNJ no campo penal e no campo socioeducativo, trata-se da primeira publicação exclusivamente dedicada a essa temática.

Leia o Caderno Temático de Relações Raciais: Diretrizes Gerais para Atuação dos Serviços Penais

Destinada a operadores do sistema de justiça e rede de instituições parceiras, o caderno orienta profissionais que atuam em equipamentos como as Centrais Integradas de Alternativas Penais (CIAPs), Serviços de Atendimento à Pessoa Custodiada (APEC) e Escritórios Sociais, entre outros. Na seção Dialogando com os Serviços Penais, que encerra cada um dos três capítulos, são apresentadas 33 diretrizes que podem ser aplicadas às metodologias de trabalho dos serviços penais para novas soluções, incentivo à aplicação de normativas em vigor no país e estratégias de capacitação para diferentes públicos.

Um exemplo de diretriz é a inclusão de módulos sobre a introdução da história afro-brasileira nos processos de formação e capacitação das equipes e gestores que atuam nos serviços penais, o que fortalece o papel das políticas públicas penais no enfrentamento do racismo. Esta diretriz está alinhada à Lei n. 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas e que pode ser aplicada e assimilada em todos os processos formativos das Escolas de Formação Policial, de Magistratura e de Gestão Penitenciária.

Outra orientação diz respeito ao registro dos dados com o recorte racial referente ao público atendido pelos serviços de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: branca, preta, parda, amarela e indígena. O produto também chama atenção para a avaliação da representatividade negra na composição das equipes de profissionais que integram os serviços penais, ressaltando a necessidade de ações afirmativas para a atuação de mulheres negras e LGBTQIAPN+ e o desenvolvimento de metodologias efetivas para enfrentamento ao estigma.

“Este caderno, que aborda não apenas questões históricas e estruturais, mas que também apresenta incidências práticas para aplicação no dia a dia, evidencia o compromisso do CNJ em enfrentar as disparidades raciais em todos os aspectos do sistema judiciário, incluindo os serviços penais. Nosso objetivo é mitigar os efeitos do racismo e da discriminação no encarceramento e nos processos de criminalização da população negra do país”, avalia o supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, conselheiro José Rotondano.

“O tema racial vem sendo abordado pelo CNJ em diversas publicações no campo penal, um olhar necessário para compreensão de dinâmicas erroneamente invisibilizadas e naturalizadas. Por outro lado, na linha de outros produtos dedicados a grupos com vulnerabilidade acrescida – a exemplo de pessoas indígenas e migrantes -, este caderno é um marco por ter foco exclusivo nas relações raciais nos serviços penais”, avalia a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Karen Luise Vilanova Batista De Souza, que contribuiu com a construção do produto. “Para enfrentarmos o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro é preciso trazer a questão da raça para a centralidade dos debates. Nesse sentido, um produto com esse escopo é fundamental para incidir nessa estrutura e transformar as relações raciais”, completa.

Para o juiz auxiliar da presidência do CNJ com atuação no DMF/CNJ Edinaldo César Santos Júnior, a redução do encarceramento em massa no país exige uma mudança de percepção em relação à tríade de desigualdades no Brasil, que inclui a criminalização da pobreza, a seletividade penal e o controle punitivo. “O racismo sistêmico, ao marginalizar e criminalizar a pobreza, encarcera pessoas jovens e negras. Esses dados precisam ser conhecidos pelo Poder Judiciário ao lidar com os processos diários e nos serviços penais. O caderno é um processo de letramento racial e traz normativas, literatura e análises acadêmicas para formar uma compreensão profunda da existência e das lutas das comunidades negras no Brasil.”

A publicação foi produzida pelo CNJ no âmbito do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo DMF/CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para acelerar as transformações necessárias no campo da privação de liberdade.

A baixa institucionalização do enfrentamento ao racismo no ciclo penal é um dos problemas mapeados pelo Plano Pena Justa, em construção pelo CNJ e pela União com participação de diversos setores da sociedade. O plano é uma resposta ao reconhecimento da situação inconstitucional nas prisões brasileiras pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 347, concluído em outubro de 2023.

Entre as ações em discussão no plano, estão a normatização de políticas institucionais de promoção à equidade racial no ciclo penal e a superação do tratamento desigual durante o ciclo penal orientado pelo aspecto racial, entre outas. O plano será entregue ao STF em julho de 2024 e, após validado, terá prazo de três anos para implantação.

Sobre a publicação

O conceito de serviços penais refere-se ao conjunto de ações ou estruturas relacionadas à administração da justiça penal. Isso inclui o monitoramento da aplicação de penas e medidas alternativas ao encarceramento, da monitoração eletrônica, da gestão de diferentes regimes de privação da liberdade (prisão preventiva, regime semiaberto, regime fechado etc.) e a atenção às pessoas que saem do sistema prisional (pessoas egressas), oferecendo suporte e acompanhamento para sua reintegração à sociedade.

O primeiro capítulo do caderno aborda relações raciais e a desigualdade de acesso à justiça, contextualizando o processo histórico e a negação dos direitos da população negra no Brasil. O segundo capítulo fala sobre o sistema de justiça criminal e o perfilamento racial, discutindo a marginalização e criminalização da pobreza, tendo como principal público a população negra. O terceiro capítulo explora a participação social como uma estratégia fundamental para promover o acesso à justiça e enfrentar as desigualdades sociais e raciais, além de apresentar dados que evidenciam a disparidade de acesso aos direitos fundamentais entre pessoas brancas e não brancas, e como isso se reflete no sistema de justiça criminal.

Consultora responsável pelo produto, a socióloga Regina Lopes enfatizou a importância de trazer dados oficiais, como os censos do IBGE, para desmistificar questões e mostrar a persistência das desigualdades. “É importante destacar que vivemos em um país mergulhado em normativas, mas a implementação efetiva dessas políticas ainda é um desafio”, comentou.

Exemplos práticos

Há nove anos atuando na Central Integrada de Alternativas Penais da Bahia, o psicólogo Alexandre Santos Pereira, especialista em direitos humanos e relações raciais, diz que o caderno pode contribuir de maneira significativa para os profissionais que atuam nos equipamentos de serviços penais e para o público-alvo destes. “Existem fenômenos e microfenômenos associados ao racismo que precisam ser pensados para os dispositivos que atendem as pessoas. O racismo pode ser percebido por meio de um olhar, de uma microexpressão, na forma que você é recebido na recepção do órgão. Se um espaço que visa acolher e acompanhar esse público reproduz racismo, fatalmente perderemos essas pessoas porque elas podem acreditar que não serão acolhidas.”

O servidor acrescentou que é fundamental considerar raça e cor como critério de análise da sociedade, dos grupos e das pessoas, além de compreender como a vida após o cárcere é afetada por estigmas sociais, racismo estrutural e limitação de oportunidades. “A gente não precisa estudar relações raciais para lidar com o mundo de maneira racializada. Muitas pesquisas em psicologia não apresentam o critério raça/cor ao estudar a atuação da psicologia dentro do sistema prisional. Visibilizar essas questões pode promover mudanças significativas nos sistemas de justiça criminal.”

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Texto: Isis Capistrano
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias