Por Emanoela Campelo de Melo, emanoela.campelo@svm.com.br
Segundo levantamento da Seas, em três anos, mais de sete mil adolescentes foram privados de liberdade. A reportagem acompanhou inspeção realizada pelo Poder Judiciário no Centro Socioeducativo Canindezinho, na Capital
Ala branca. Ala vermelha. As cores traduzem os ambientes. O Centro Socioeducativo Canindezinho, no Bairro São Bento, está dividido, como todos os outros. Eram 91 jovens no dia 2 de dezembro de 2019 ocupando 100% da capacidade do prédio. Periculosidade e afinidade por facção criminosa determinam onde cada adolescente infrator fica. Aqueles que estão no setor "de referência" são os que mais têm chances de ir para liberdade assistida. Quando o juiz Manuel Clístenes, da 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza, se aproxima, começam os gritos para serem retirados dali.
"Será se eu passo o Natal aqui sem ver minha avó?", pergunta um jovem de 18 anos ao juiz. Ao lado, outro na mesma tranca questiona: "Doutor, quando eu saio?". São dias e noites na companhia uns dos outros, observados de perto pelos socioeducadores do Governo do Estado. Em cada tranca do setor de referência, três ou quatro adolescentes dividem espaço. Por trás das grades, todos os muros estão pichados. As paredes trazem mensagens de fé: "Só Deus", pode ser traduzido como: "quem mais pode me tirar daqui?".
Conforme dados da Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo do Ceará (Seas-CE), em três anos, mais de sete mil adolescentes deram entrada nos equipamentos socioeducativos do Estado. Foram 2.613 em 2017; 2.596 no ano passado; e 1.815 neste ano (até o fim do mês de novembro). Para Manuel Clístenes, a redução dos internamentos é reflexo do menor número de infrações cometidas pelos adolescentes, e o recuo destas ocorrências está diretamente ligado ao isolamento das lideranças das facções criminosas nos presídios. "Era do presídio que saía a maior parte dos comandos para cometer crimes, e muitos destes comandos eram direcionados aos adolescentes", disse o magistrado.
PRIVAÇÃO
Conforme apurado pela reportagem, dos 91 internos do Centro Socioeducativo no Canindezinho, pelo menos 45 fazem uso de medicamentos controlados; a média de 50% medicados ainda se repete nos outros centros socioeducativos. Os remédios são, principalmente, para driblar ansiedade e dependência química, com prescrição médica.
"Às vezes, a medicação é usada de forma indevida. Eles quebram o comprimido para poder cheirar o pó", disse uma fonte, que não será identificada. Os socioeducadores fazem a medicação assistida: entregam os comprimidos e observam o uso. Contudo, parte dos internos finge que engoliu e, ao chegar na tranca, comercializa a medicação. O cuidado para evitar esses episódios é alto, mesmo com os internos considerados "de confiança".
Os jovens não admitem ter cometido infrações dentro do centro. Qualquer passo em falso pode ser motivo para o retorno à ala vermelha, onde estão os mais "afoitos" e, por vezes, impossibilitados de sair da tranca para cumprir atividades esportivas no centro.
O que foi feito por eles no passado é assumido. "Matei uma 'sapatão'. Mataram um amigo meu e disseram que eu era o próximo. Fui lá e matei antes. O que matei era do PCC", diz um adolescente, já isolado na tentativa de ter a vida resguardada. Cinco metros depois estão os grupos "da bença": aqueles que se renderam à religião para se redimir.
As preferências musicais são respeitadas no "setor de referência". A tarde é momento de ouvir louvores. Em frente ao juiz, os membros do grupo da "bença" não negam terem cometido atos infracionais, mas pedem que seus casos sejam analisados novamente, porque já estão ali há quase um ano. "Eu tava cumprindo a semi aí roubei e fui detido. Vou mentir? Roubei mesmo. Assumo. Pulei o muro do Mártir Francisca (Centro de Semiliberdade). Tive discussão com o orientador, mas tá com seis meses que eu não assino", sobre não ter seu nome envolvido em conflitos. Há também os que mantêm o sonho de ser jogador de futebol. Um dos internos pede para ser posto em liberdade porque recebeu proposta para jogar no Fortaleza.
REALIDADE
O titular da 5ª Vara da Infância e Juventude de Fortaleza conta que, atualmente, 60% dos centros socioeducativos são tomados por integrantes da facção criminosa Guardiões do Estado (GDE). Manuel Clístenes afirma que a presença de faccionados nas unidades compromete até a educação, porque "até para ter aula tem que separar os alunos por facção e levar eles até a sala de aula em pequenos grupos".
Renan Santos, assessor jurídico do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), questiona a efetiva ressocialização dos jovens nestes espaços. "As Unidades de Atendimento Socioeducativo, no Estado do Ceará, têm sido marcadas por reiteradas violações dos direitos humanos, com diversos casos de agressões, jovens alojados em 'dormitórios' similares a celas, em locais abafados, sujos e insalubres, com uma visível carência de atividades que possam dar algum sentido às medidas socioeducativas", afirmou Santos.
STF
A expectativa dos adolescentes que estão no setor de referência é serem liberados devido ao bom comportamento ou no instante que o equipamento superlotar. No fim do último mês de maio, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), delimitou que os centros socioeducativos não ultrapassassem 119% de ocupação. A partir do momento que a taxa for atingida e não tiver onde realocar, é preciso que magistrados da Infância decidam pelas liberações dos infratores com menor potencial ofensivo.
Devido a todos os equipamentos atuarem com capacidade máxima, as liberações já vêm acontecendo. Nos seis meses seguintes à decisão, 308 adolescentes infratores saíram do centros. De acordo com Manuel Clístenes, primeiro foram liberados os de menor potencial ofensivo, mas o Sistema chegou ao colapso de que, para haver vagas, foi preciso soltar suspeitos até mesmo de homicídios.
"Hoje, não tem mais casos de adolescentes sem grave ameaça internados nos centros. Mandamos para a internação domiciliar e eles vêm uma vez por mês. Ao mesmo tempo que é uma punição ficar no centro, teoricamente, também é uma oportunidade de estar ali", pontuou o juiz. Para o Cedeca, a medida socioeducativa de internação deve ser a última opção.
Renan Santos destaca que a privação de liberdade é, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, medida excepcional a ser adotada, e não pode se sobrepor ao respeito à vida desses adolescentes. "A privação de liberdade é imposta a esses adolescentes como forma de responsabilização pela conduta infracional. Não cabe à socioeducação impor outras violências, como castigos físicos, por exemplo. De modo oposto, cabe à socioeducação garantir os direitos dos adolescentes. O direito à vida é o mais básico".
Por nota, a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo afirmou que todas as denúncias são apuradas e processos formais são instaurados, "sendo que até o momento foram instaurados 201 procedimentos administrativos ou sindicâncias que variam entre denúncias de agressões/maus tratos sofridos pelos adolescentes, faltas e/ou ausências injustificadas, negligência ou omissão de condutas e inadequação às rotinas estabelecidas nas unidades socioeducativas".
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