14 de agosto de 2025, 9h23
In medio stat virtus

Atribuída a Aristóteles [1], a expressão latina “a virtude está no meio” veicula a crença do filósofo de que a virtude se encontra no ponto de equilíbrio entre o excesso e a falta. Esse o desafio que paira sobre o Supremo Tribunal Federal acerca da pejotização (Tema 1.389 de repercussão geral), por meio da qual empresas contratam trabalhadores como pessoas jurídicas (PJs) para evitar excessiva carga trabalhista e previdenciária.
A chamada “nova economia” (gig economy) baseia-se na maior maleabilidade dos contratos, buscando eficiência produtiva e flexibilização das relações de trabalho, como forma de garantir a competitividade das empresas e evitar o desemprego e a informalidade.
Polarização
Sob o enfoque político, a afetação do tema pelo STF expõe um confronto entre teses aparentemente antagônicas. De um lado, a dialética marxista do século 19, ainda presente em nossos dias, fundamental para combater os abusos da primeira fase da Revolução Industrial, levando à luta entre o proletariado e a burguesia.
Nas minas de carvão da Inglaterra, crianças e adolescentes enfrentavam jornadas de 16 horas de trabalho em condições insalubres, levando a taxas alarmantes de mortalidade precoce (17 anos em Manchester e 15 em Liverpool). No início do século 20, finalmente, houve a implementação dos direitos sociais, entre nós positivados nos artigos 6º e 7º da CF.
De outro, a agenda neoliberal, que prioriza a desregulamentação do mercado de trabalho, como forma de garantir a sobrevivência das empresas face aos novos desafios da economia capitalista, da revolução tecnológica e das novas técnicas de produção, em ambiente altamente competitivo. O alívio na carga trabalhista e previdenciária tem também um efeito positivo para o trabalhador, na medida em que reduz a informalidade e o risco de desemprego, tornando mais ágil, eficiente e competitiva a empresa empregadora.
Decisão do STF sobre Tema
O STF decidiu suspender todos os processos em tramitação que discutem a pejotização, a fim de analisar a legalidade desta prática no Brasil. O julgamento terá impacto significativo nas relações de trabalho, sobretudo naquelas que buscam se desvincular da CLT. Se o STF entender que a Justiça do Trabalho é competente para todas as questões envolvendo relação trabalhista e que a pelotização é uma burla ao direito do trabalhador, haverá uma maior proteção jurídica ao empregado, mas redução do nível de competitividade empresarial.
Mobilização sindical
Entidades ligadas aos movimentos sindicais têm se mobilizado contra a decisão, apontando que ela representa um “ataque à cidadania trabalhista” e uma tentativa de desmonte da Justiça do Trabalho, sem o prévio e legítimo debate legislativo acerca do tema [2]. No Congresso, o senador Paulo Paim (PT-RS) propôs uma audiência pública para discutir os impactos da pejotização, destacando seu potencial de precarização e o prejuízo à arrecadação da Previdência Social, o que reflete a tensão entre a agenda econômica do mercado e a defesa de direitos sociais consagrados [3].
Mobilização dos empregadores
Setores empresariais e juristas favoráveis à pejotização argumentam que a decisão do STF infundirá segurança jurídica, reduzindo a incerteza que afeta a contratação de pessoas jurídicas em setores como tecnologia, saúde e advocacia, de forma a permitir uma adequação mais efetiva às demandas da “nova economia”, sendo que sua regulamentação clara pode estimular o empreendedorismo, com aquecimento do mercado e aumento da empregabilidade [4].
Impacto econômico
No campo econômico, o cenário não é nem menos desafiador, nem menos polarizado: a pejotização tem consequências fiscais muito significativas. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) estima que, entre 2017 e 2023, a União deixou de arrecadar R$ 89 bilhões devido à pejotização, e, caso metade dos trabalhadores formais passe a ser contratada como PJ, as perdas podem superar R$ 300 bilhões nos próximos anos.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) alertou que a pejotização, especialmente entre trabalhadores qualificados de maior renda, reduz a arrecadação do Imposto de Renda e das contribuições previdenciárias, impactando o financiamento — já severamente combalido — da Previdência Social e de políticas públicas como moradia e saneamento. Um estudo do Ipea projeta um déficit de R$ 500 bilhões na proteção social até 2060 devido à pejotização e à “uberização” [5].
Impacto nos trabalhadores
No âmbito do mercado de trabalho, a prática parece afetar, indiscriminadamente, tanto trabalhadores altamente qualificados quanto aqueles em posições mais vulneráveis, como motoristas de aplicativos e entregadores. Embora profissionais com maior poder de negociação possam se beneficiar de vantagens fiscais, trabalhadores menos qualificados frequentemente são pressionados a adotar o modelo PJ, perdendo direitos trabalhistas (férias, 13º salário, etc.), sendo que, nesses casos, a remuneração de PJs tende a ser semelhante ou apenas marginalmente superior à de trabalhadores celetistas em funções equivalentes, a indicar que os superávits de produtividade ficariam majoritariamente com as empresas [6].
Impacto para o setor empresaria
Para as empresas, a pejotização reduz custos trabalhistas e encargos previdenciários, o que atua no sentido de aumentar a competitividade em setores de uso intensivo em mão de obra qualificada, como tecnologia e saúde. Nesse sentido, a suspensão dos processos pelo STF é vista por alguns especialistas como um alívio temporário, pois sinaliza que a Corte pode consolidar a legalidade da pejotização, reduzindo o risco de judicialização.
Circunstância essa que, no entanto, não supre a falta de regulamentação clara e de longo prazo dessa matéria, na medida em que a incerteza jurídica atual serve como um risco indesejado a investimentos, já que empresas não querem enfrentar a possibilidade de decisões trabalhistas que reconheçam vínculos empregatícios. Para os defensores do modelo pejotizado de relações de trabalho, o déficit previdenciário não serve como fundamento para a rejeição de sua incorporação, na medida em que reflete de uma escassez crônica e histórica de recursos nessa área, a indicar, no fundo, muito mais a exaustão do regime de caixa do que, propriamente o reflexo da pejotização sobre as contas do sistema.
Ademais, qualquer decisão final que venha a impedir — ou, quando não, reduzir drasticamente — a abrangência do modelo PJ não resolve a alternativa que sempre ameaçou a higidez financeira dos regimes previdenciários, e que, no fundo, é muito pior do que a pejotização: a informalidade, pura e simples, das relações de trabalho. De nada adiantaria reforçar incondicionalmente o caráter contributivo do sistema previdenciário e obrigatoriedade do modelo de filiação (artigo 201 da CF) se o mercado não disponibilizasse vagas no âmbito da formalidade do mercado de trabalho.
Repercussões jurídicas
Por fim, no campo jurídico, as tensões não são menos expressivas. Sob este aspecto, um dos pontos centrais da decisão a ser proferida pelo STF está em definir se a Justiça do Trabalho tem competência para julgar casos de suposta fraude na pejotização, ou se esses casos devem ser remetidos à Justiça Comum. Os fundamentos expostos na decisão [7] que afetou o tema para julgamento dessa questão sob a sistemática da repercussão geral, arrola, dentre outros motivos, a alegação de que a Justiça do Trabalho descumpre sistematicamente precedentes do STF, como os estabelecidos na ADPF 324 e no Tema 725, que validaram a terceirização irrestrita.
Para críticos, isto sugere uma tentativa de limitar a autonomia da Justiça do Trabalho, o que é visto por entidades como a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) como uma “manobra política” para esvaziar sua competência constitucional, prevista no artigo 114 da Constituição [8]. Ainda segundo essa crítica — com a qual não concordamos — a transferência de casos para a Justiça Comum, que não possui expertise em relações trabalhistas, poderia dificultar a identificação de fraudes, já que a Justiça do Trabalho tradicionalmente analisa a realidade fática das relações, e não apenas a formalidade contratual. Isso poderia levar a uma presunção de validade dos contratos civis, mesmo em casos de subordinação e dependência econômica, características típicas do vínculo empregatício. Tal mudança representaria um retrocesso na proteção trabalhista, pois a Justiça do Trabalho tem um papel constitucional de coibir práticas que desvirtuem os direitos previstos na CLT.
Justiça comum
Com o devido respeito às posições eventualmente divergentes, deve-se considerar que a Justiça Comum (no caso, a Estadual, que, ao menos na generalidade dos casos seria competente, em tese, para conhecer dessas questões) tem longa tradição construída sobre análise de contratos das mais diversas espécies, inclusive em situações de franca disparidade de armas entre os contratantes (contratos bancários, planos de saúde, consumidor em geral), firmando jurisprudência equitativa e abalizada na equalização dos interesses em jogo, de sorte que não é crível que uma suposta ausência de uma expertise quanto ao contrato de trabalho especificamente pudesse, apenas por isso, se identificar com expedientes destinados a validar contratos de fachada ou a fraudar direitos trabalhistas.
Ônus probatório
Um outro aspecto crucial nesse ponto é a definição do ônus probatório. A quem incumbe prova da existência de fraude na contratação? A questão se propõe porque, tradicionalmente, a Justiça do Trabalho presume a relação de emprego quando há indícios de subordinação, colocando o ônus da prova sobre o empregador. Alegam os opositores do modelo que uma eventual decisão do STF que transfira esse ônus ao trabalhador pode dificultar o acesso à justiça, especialmente para trabalhadores em situações de vulnerabilidade, que muitas vezes não possuem recursos ou meios para comprovar a fraude.
Isso poderia incentivar empresas a adotarem a pejotização de forma mais agressiva, sabendo que o risco de judicialização seria reduzido. Também não visualizamos, aqui, um argumento válido a interditar a adoção do modelo pejotizado. Não procede a noção de que a inversão do ônus probatório seja privativa ou restrita às reclamações que se processam perante a Justiça do Trabalho.
Esta concepção não encontra respaldo no atual Código de Processo Civil, que ampliou e flexibilizou as hipóteses de distribuição diversa do encargo probatório quando, por decisão fundamentada, nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, o juiz reconhecer circunstâncias relativas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumpri-lo, ou, simplesmente, à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, desde que, evidentemente, confira à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. (art. 373, § 1º do CPC).
Efeitos da futura decisão
Nesse universo, uma decisão do STF que venha a chancelar uma validação irrestrita do modelo da pejotização, como sugerem decisões recentes de suas turmas, deve produzir impacto significativo no mercado de trabalho. Empresas serão estimuladas a adotá-lo de forma mais agressiva, o que, numa situação-limite poderá implicar uma redução drástica de direitos trabalhistas para diversas categorias, como alertado pelo jurista Jorge Luiz Souto Maior [9], e ao esvaziamento da Justiça do Trabalho. Para além, parece imediata a conclusão de que a arrecadação da Previdência Social será ainda mais prejudicada, comprometendo a sustentabilidade do sistema de proteção social.
Por outro lado, uma decisão contrária à pejotização, embora improvável, reforçaria a competência da Justiça do Trabalho e a proteção dos direitos trabalhistas, mas enfrentaria resistência de setores empresariais, que argumentam que a rigidez da CLT desincentiva contratações formais e empurra trabalhadores para a informalidade. Uma decisão intermediária, que reconheça a pejotização com limites, legítima apenas em casos de profissionais qualificados com autonomia real, poderia mitigar os impactos sobre direitos históricos de trabalhadores.
A dificuldade está em que uma abordagem como esta exigiria critérios claros para diferenciar contratações legítimas de fraudes, como a ausência de subordinação e a voluntariedade na escolha do modelo PJ. Tal abordagem preservaria a liberdade contratual, mas manteria a proteção trabalhista para trabalhadores vulneráveis. No entanto, a implementação de parâmetros objetivos seria desafiadora, dado o volume de processos (460 mil ações em 2024, segundo a ANPT) e a complexidade de verificar a realidade das relações contratuais individuais caso a caso.
Conclusão
Tema denso, delicado, de inegável profundidade retórica e interesse pragmático, a questão posta em debate contrapõe valores sensíveis e aparentemente inconciliáveis nos mais diversos campos da convivência humana. O texto se limita, despretensiosamente, a analisar apenas alguns deles. A problemática sub judice na mais alta corte de Justiça do país transita uma dificuldade ancilar e um problema central na filosofia moral, especialmente no campo da ética normativa.
Entre o contrato individual de trabalho e as vênias digitais de ajustes estereotipados, entre a proteção jurídica do trabalhador e a necessidade de adaptação as exigências da revolução tecnológica da informação, entre garantias sociais de proteção previdenciária e o risco da informalidade, o embate entre a celetização e a pejotização expõe o conflito que se instaura entre a necessidade de tutela da contemporaneidade, que é contingente, e a preservação da essência de valores universais do homem, que são atemporais.
Grandes pensadores já se debruçaram sobre esse tipo de dilema: Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes propõe que decisões éticas devem ser baseadas em princípios universais, como o imperativo categórico de que se deve agir apenas segundo uma máxima que possa se tornar uma lei universal [10].
Stuart Mill, sugere que qualquer decisão nesse campo deve maximizar o bem-estar geral, considerando as consequências de cada escolha. Valores contemporâneos podem ser priorizados se gerarem maior utilidade imediata, enquanto valores atemporais podem ser favorecidos por sua estabilidade a longo prazo [11].
Habermas, na Teoria da Ação Comunicativa, sugere que a deliberação racional em contextos democráticos pode legitimar valores contemporâneos, desde que respeitem normas universais de discurso [12]. Não há, como visto, caminho fácil e nem solução de compromisso que permita albergar todos os interesses em jogo. Esperemos, com Aristóteles, pela virtude do caminho do meio.
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Referências
Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
Habermas, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.
Mill, John Stuart. O Utilitarismo. Tradução de Alexandre Braga. São Paulo: Hedra, 2007.
[1] Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
[10] Kant, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007.
[11] Mill, John Stuart. O Utilitarismo. Tradução de Alexandre Braga. São Paulo: Hedra, 2007.
[12] Habermas, Jürgen. Teoria da Ação Comunicativa. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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