Estudo da FGV e da USP mostra que o principal argumento do juízes para decisão favorável é a falta de transparência no cálculo
CLÁUDIA COLLUCCI
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Em dez anos, o psicoterapeuta Arlindo Salgueiro, 83, de Santos (SP), foi à Justiça três vezes para pedir a redução do valor da mensalidade do seu plano de saúde. Nas três vezes saiu vitorioso. Na última, em julho deste ano, o boleto chegou com um reajuste de 35% e um valor de R$ 6.124.
“Se eu não tivesse entrado com as ações judiciais, estaria pagando R$ 12 mil. Ainda trabalho, tenho minha renda, mas preciso recorrer aos filhos para me ajudar porque não consigo pagar esse valor absurdo. É humilhante”, diz ele, que aguarda a execução da decisão judicial e a revisão do valor do plano.
A cada dez ações judiciais que questionam reajustes nas mensalidades dos planos de saúde coletivos, seis têm o aumento revisto pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em favor do usuário, mostra estudo realizado por pesquisadores da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e da USP.
Publicada na Revista Direito Público, a pesquisa aponta que o principal argumento que ampara a revisão é a falta de transparência ou de justificativa no cálculo do reajuste por parte das operadoras de saúde.
O trabalho partiu de uma amostra de 666 decisões judiciais e, dessas, analisou 215, todas referentes a planos coletivos. O reajuste foi considerado legal em 85 casos (40%) e ilegal em 130 (60%).
De acordo com o estudo, ao fazer a revisão, o TJSP costuma usar o índice de reajuste adotado pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para os planos individuais/familiares. Neste ano, esses planos tiveram aumento de 6,9%, menos da metade da taxa de reajuste médio dos planos coletivos, que foi de 14%.
A legislação e a regulação dos planos coletivos estabelecem que o preço é determinado pela livre negociação entre as partes. Mas, segundo o advogado Daniel Wang, professor da FGV e um dos autores do estudo, as decisões mostram que o Judiciário desconfia dessa livre negociação.
“Ele entende que não tem uma negociação, mas sim uma imposição de reajuste em cima de indivíduos que fazem parte de um plano coletivo. Ou seja, aquilo que a regulação diferencia, o Judiciário uniformiza.”
Segundo Wang, na maioria das vezes, os juízes entendem que as operadoras não exemplificam ou não justificam para o beneficiário a necessidade do reajuste.
“Essa autoridade parte do pressuposto de que, quando o reajuste do plano coletivo está acima do índice da ANS para o plano individual, há alguma coisa errada, e as decisões acabam permitindo ao indivíduo que ele tenha um reajuste limitado ao índice da ANS.”
Foi o que aconteceu com Arlindo Salgueiro nas três vezes em que recorreu à Justiça para rever os reajustes. Mas ele diz que, ainda assim, é uma situação insegura. “Alguns juízes determinam, a partir de uma ação, que esse [reajuste de acordo com o índice da ANS] deve ser o padrão para todo o sempre; outros não. Isso te obriga a entrar com novas ações todos os anos.”
Planos coletivos, como o de Salgueiro, são contratados entre a operadora e a pessoa jurídica pela qual o beneficiário direto é empregado ou da qual é associado ou sindicalizado. Para os com menos de 30 vidas, a ANS determina a adoção de um cálculo por meio de um pool de risco.
Ou seja, cada operadora realiza o agrupamento de todos os seus contratos com menos de 30 vidas, distribuindo os riscos de cada um em pools maiores de beneficiários. Assim, um mesmo índice de reajuste é aplicado a todos os contratos dentro de um mesmo subagrupamento.
Já os planos coletivos com 30 vidas ou mais devem ser negociados entre a operadora e a pessoa jurídica contratante, sem a mediação da ANS ou sem a imposição de tetos para o reajuste.
Para o advogado Rafael Robba, sócio do escritório Vilhena Silva e especialista em direito à saúde, as operadoras, ao calcular os reajustes para os planos coletivos, não levam em conta a sinistralidade de toda a carteira, mas sim a de contratos individuais, que normalmente têm menos beneficiários e, portanto, podem apresentar um risco mais elevado.
“Isso faz com que os reajustes para contratos menores frequentemente sejam mais altos, enquanto, em uma carteira mais ampla, o risco é mais diluído e a sinistralidade tende a ser mais equilibrada.”
A advogada Marina Paullelli, do programa de saúde do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), afirma que pesquisas feitas pela entidade identificaram abusos nos reajustes dos coletivos. “As operadoras alegam o aumento da sinistralidade, mas não apresentam planilhas, documentos que embasem essa utilização do plano e também a expressividade do percentual.”
Na sua opinião, é importante que haja mudança na regulação dos planos coletivos, que leve a uma padronização das cláusulas de reajuste e que esteja alinhada ao Código de Defesa do Consumidor, ao qual muitas vezes os juízes recorrem para fazer as revisões.
Para Daniel Wang, ainda que as decisões judiciais beneficiem individualmente os usuários de planos, elas não resolvem o problema coletivo do aumento dos custos da saúde e podem levar a reajustes ainda maiores, a serem custeados pelos outros integrantes da carteira que compartilham os riscos financeiros.
Ele argumenta que, nessa discussão de reajustes, é preciso considerar o aumento expressivo na lista de terapias aprovadas pela ANS, o que encarece o produto e será repassado ao valor da mensalidade. “Não é simples. Você tem que tentar equilibrar a qualidade e o tamanho do seu pacote com a manutenção de um preço acessível.”
Segundo Gustavo Ribeiro, presidente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), fatores como a lei que obrigou os planos a arcarem com tratamentos fora da lista de referência da ANS, as fraudes e a judicialização geram falta previsibilidade ao setor, o que torna a conta muito complexa.
“Não há falta de visão [transparência] programada. Acontece que tem tanto elemento externo que não está nessa equação que vira uma coisa muito complicada de se calcular. Precisávamos de uma lei de mercado que operasse com mais previsibilidade, com mais respeito à agência reguladora. Isso tudo não existe.”
Ribeiro afirma que as ações judiciais causaram um impacto de R$ 5,5 bilhões ao setor em 2023. “Isso aí desequilibra qualquer conta, qualquer demonstração de qualquer coisa.”
Para ele, quando um juiz arbitra que o reajuste de um plano de saúde coletivo deva seguir a metodologia do individual, ele está regulando o setor. “Uma coisa é a pessoa ter direito a um tratamento X e a operadora não deu. Indiscutível. Cumpra o contrato. Agora, quando o juiz legisla, quando ele se sobrepõe à ANS, ao legislador, é uma mecânica artificializada.”
No fim, segundo ele, essas decisões judiciais individuais recaem sobre o conjunto de usuários de planos. “Alguém sempre paga a conta. Ele [o juiz] faz a justiça ali, naquele caso concreto, mas gera um efeito em cascata e que é ressonante para toda a coletividade.”