“Buscar lucro é incompatível com trabalhos sociais e socioeducativos”, avalia o advogado Ariel de Castro Alves sobre a possibilidade de parceria público-privada, defendida pelo governador de São Paulo, para a Fundação Casa
Publicado 29/02/2024 - 20h06
São Paulo – O plano do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), de privatizar a Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente, conhecida como Fundação Casa, colocará em risco a reeducação dos jovens que cumprem medidas socioeducativas na instituição. É o que avaliam entidades e especialistas nos direitos das crianças e adolescentes. O projeto de desestatização vem sendo anunciado pela gestão estadual desde ano passado, na esteira do programa de privatizações dos serviços públicos que já garantiu a venda da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).
Até o momento, porém, o republicano não apresentou oficialmente uma proposta para a avaliação da sociedade e do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca), apesar da obrigatoriedade. Em dezembro do ano passado, durante um evento de uma empresa de investimentos, Tarcísio defendeu a medida como uma forma de “cortar gastos”.
“A gente tem que cortar gastos. Se não cortar, os estados vão quebrar. Não tem escolha. Tem as questões ideológicas, muita gente critica a gestão quando falamos em concessões da CPTM, da Fundação Casa. A gente vai lutar até o fim para ter uma reforma sem distorções”, disse ele no Fórum Político XP. Vinculado à Secretaria de Justiça e Cidadania, o órgão é o responsável por executar as medidas socioeducativas de regime fechado – internação e semiliberdade – em todo o estado, seguindo as diretrizes dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
PPPs são ‘retrocesso’
Uma estruturação do trabalho socioeducativo com a possibilidade de parceria público-privada fica em risco, conforme alerta o advogado Ariel Castro Alves, que é especialista em direitos da infância e juventude e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
Hoje membro da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados em São Paulo (OAB-SP), Ariel participou na década de 90 da luta para que a Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo, a antiga Febem, fosse extinta, em 2006, justamente por seu histórico de violações aos direitos de crianças e adolescentes. Desde então, de acordo com o especialista, ocorreram investimentos e se efetivou um processo importante de descentralização, regionalização, com criação de pequenas unidades na capital, interior e na Baixada Santista.
Nesse processo, acrescenta Ariel, foram contratados e qualificados funcionários para atuar com as medidas socioeducativas. Enquanto, em paralelo, foram feitas parcerias para garantir escolarização, profissionalização e ensino técnico, além do oferecimento de atividades culturais, esportivas e de lazer. “Com as PPPs todo esse processo pode ser interrompido e podemos ter retrocessos, com a volta de unidades centralizadas nas capitais, grandes complexos, superlotação e falta de atividades socioeducativas”, avalia.
Denúncias invisibilizadas
“Isso porque as empresas visarão lucro e não um atendimento de fato socioeducativo. A reeducação dos jovens e a inclusão social podem ficar comprometidas seriamente. Buscar lucro é incompatível com trabalhos sociais e socioeducativos. Provavelmente as empresas vinculadas a essas parcerias público-privadas passarão a fazer lobby no Congresso Nacional e no Judiciário buscando maior criminalização da juventude para ocorrerem mais internações e mais repasses “per capita” por interno do estado, visando lucrarem com a privação de liberdade”, acrescenta o advogado.
A crítica é compartilhada pela Coalizão pela Socioeducação – articulação formada por 53 ONGs, Coletivos, a Frente Estadual pelo Desencarceramento e as defensorias Públicas, os mecanismos estaduais e nacional de Prevenção e Combate à Tortura, pesquisadores e especialistas com atuação no sistema socioeducativo. Para o movimento, a transferência de gestão permitirá a desresponsabilização do estado e atribuirá valor financeiro à vida dos adolescentes e jovens, “indo contra o caráter pedagógico que as medidas socioeducativas devem possuir”, alerta.
A secretária Executiva da Coalizão pela Socioeducação, Thaisi Bauer, teme ainda que as violações de direitos que, apesar dos avanços, ainda ocorrem dentro do sistema fiquem invisibilizadas e seja mais difícil denunciá-las. “É uma política neoliberal que corrobora ainda mais com o ditado de que a carne negra é a mais barata do mercado, tendo em vista que essa é a cor da maioria dos jovens que compõem as unidades socioeducativas”, lamenta Thaisi. O movimento participa nesta quinta-feira (29) de uma audiência pública na Assembleia Legislativa (Alesp) que questiona os planos do governador.
Conanda já se manifestou contrário à privatização
A Fundação Casa opera hoje com 111 unidades ativas, 10 prédios administrativos e tem um orçamento anual de R$ 2 bilhões financiado pelo governo estadual. De acordo com Ariel, sob a gestão Tarcísio o órgão vem passando por um processo de precarização das unidades, com menos oferta de cursos e atividades socioeducativas e com o fechamento de unidades que eram referências na capital, interior e Baixada Santista.
“Provavelmente, essa desqualificação e precarização que a Fundação vem passando já seja premeditada para depois o governo justificar a privatização com a propaganda enganadora para a sociedade de que irão gastar menos e atender mais adolescentes”, observa o advogado. A medida também coloca em risco o trabalho dos funcionários da Fundação Casa.
Em 2023, o Conanda já se manifestou contrariamente a essas parcerias público-privadas em nota técnica. A avaliação do órgão nacional é de que as PPPs são “incompatíveis” e há necessidade de que os serviços socioeducativos sejam estatais, em consonância com o ECA e o Sinase.