9 de dezembro de 2023, 6h08
Uma vez autorizada a desestatização da Sabesp, disposta no Projeto de Lei paulista nº 1.501/2023, aprovada em sessão de 6 de dezembro de 2023 pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), os holofotes tendem a ser direcionados para a forma como a privatização substancial ocorrerá, em especial para a regra posta pelo artigo 14 da Lei nº 14.026/2021.
Isso porque se o que pretende é, de fato, atrair capital privado em um leilão ou pregão bem sucedido para alcançar a universalização do serviço em seis anos (artigo 2º, II, PL 1501/2023), primeiro passo que deve ser dado é definir o que acontecerá com os contratos de programa regulares e vigentes firmados pela companhia com outros entes federativos.
Até mesmo porque, tratando-se de alienação de controle por venda de ações, a avaliação econômica para precificação tende a considerar como variável componente da equação a receita operacional que esses ajustes contratuais firmados em sede de gestão associada com municípios poderão gerar para a Sabesp até o final da vigência, trazendo-a a valor presente.
Destarte, a possibilidade de esses contratos de programa serem encerrados em razão da alienação do controle acionário passa a ser informação relevante que necessita ser tratada com transparência para que não se compre gato por lebre.
Imagine a situação em que, após a alienação das ações a mercado, todos os contratos de programa sejam rescindidos pelos municípios, pois, uma vez perdendo a natureza pública, a companhia não poderia figurar mais em instrumentos de gestão associada constitucionalmente prevista para cooperação entre as pessoas políticas e suas entidades de administração indireta. A depender do impacto na receita operacional, referida situação poderia gerar euforia, eventual prejuízo à liquidez das ações e ao preço de comercialização da companhia, o que é indesejável até mesmo por inviabilizar a redução de tarifas, um dos objetivos centrais da privatização. Afinal, como poderia projetar diminuição tarifária, com efeito imediato de queda de receita operacional, paralelamente ao abrupto impacto também na receita por rompimento desses contratos.
Por essa razão, conferir segurança jurídica e previsibilidade ao destino dos contratos de programa regulares vigentes se tornam indispensáveis para que o projeto de alienação do controle não seja frustrado por assimetria de informação e pelo efeito adverso da surpresa do rompimento repentino dos contratos de programa. Daí a importância de se enfrentar neste momento o alcance do artigo 14 da Lei nº 14.026/2021, sob o prisma da compatibilidade constitucional.
A relevância da discussão é proporcional à importância que os contratos de programa têm na formatação do segmento até o presente momento.
É certo que o artigo 175 da Constituição de 1988, a Lei de Concessões dos Serviços Públicos e a Lei das Parcerias Públicos-Privadas, ainda na década de 1990 e anos 2000, passaram a admitir arranjos contratuais público-privados oferecendo ao empreendedor a possibilidade de executar projetos concessionários autossustentáveis. Além de essas privatizações formais servirem de instrumento de arranjo fiscal, com injeção nos cofres públicos da outorga paga pelo vencedor da licitação, pressupõe-se que a introdução da lógica da competição por meio de processos de seleção seja fator que estimularia a eficiência dos serviços.
No entanto, apesar de há muito o ambiente legal ter autorizado o ingresso de novos agentes econômicos mediante concessão, no saneamento o Estado ainda permaneceu como principal agente, muito em decorrência das concessões de longuíssimo prazo advindas do Planasa. Demais disso, a Lei nº 11.445/2007 não operou mudanças estruturais, garantindo a preservação do monopólio do setor às companhias estaduais também a partir do diálogo com a Lei Geral dos Consórcios Públicos (Lei nº 11.107/2005), importante base normativa do federalismo cooperativo inaugurado na Constituição de 1988, bem como na gestão associada de serviços públicos dispostas no artigo 241 da Carta Magna.
A partir daí, por meio de contratos de programa garantiu-se privilégio às estatais sobre os serviços de saneamento, desta vez a partir de arranjo de gestão associada, ao abrigo de consórcios públicos e sem obrigação de licitar.
Referido arranjo cooperativo se mostrou como alternativa interessante aos titulares do serviço, principalmente para Municípios de pequeno porte e pouca estrutura. Isso porque a prestação direta demanda orçamento, planejamento e execução, o que por vezes não é factível em algumas realidades locais; demais disso, processos licitatórios para contratação de empresas privadas mediante concessão demandam corpo técnico especializado, alto custo, além de risco de judicialização ou questionamento administrativo, situações essas indesejadas pelas municipalidades.
Não sem razão, para atrair capital privado, uma das medidas enérgicas trazidas pelo marco regulatório foi proibir contratos de programa na prestação de serviços no intuito de eliminar reserva de mercado às companhias estaduais e fomentar a seleção competitiva por processo licitatório.
O mote de garantir a competição para obter melhor seleção e, por consectário, entregar valor ao usuário do serviço de saneamento não pode ser desvirtuado. Se assim o é para vedar contratos de programa, também deve ser quando da alienação do controle da estatal.
A Sabesp, relembre-se, está inserida neste contexto: uma companhia estadual, cuja atividade operacional — até a privatização substancial se concretizar — é impactada diretamente pelos consórcios cooperativos firmados entre estado de São Paulo e os municípios que entregam o serviço à companhia sem licitação, por meio do vínculo precário de um contrato de programa. Uma vez desvinculando a Sabesp do aparato da administração pública, como ficariam esses contratos de programa? A questão é relevante para o momento pós 6 de dezembro de 2023.
Ao menos em uma primeira visão, é incompatível a sua continuidade por impossibilidade jurídica total de um contrato de programa ser estabelecido entre município e empresa privada que não faz parte da administração indireta de nenhuma pessoa política.
A compreensão, contudo, deve passar pelo marco do saneamento.
Neste ponto, ganha destaque o artigo 14 da Lei nº 14.026/2021 ao dispor que, em caso de alienação de controle acionário, “[…] os contratos de programa ou de concessão em execução poderão ser substituídos por novos contratos de concessão, observando-se, quando aplicável, o Programa Estadual de Desestatização“. A leitura desatenta e isolada talvez leve o intérprete a crer, com segurança, que os contratos de programa serão simplesmente substituídos por contratos de concessão, como se a mudança de nomenclatura fosse suficiente para trazer legalidade e resolver o problema.
Por evidente, não é dessa forma que o direito opera, na medida em que se existe natureza jurídica, é para colocar as coisas cada uma em seu devido lugar. Assim, se o contrato de programa é prerrogativa constitucional vinculada à gestão associada, não parece razoável simplesmente substituí-lo, como mágica, por contratos de concessão, cujo regime jurídico é diverso e atrai multiplicidade de questões afetas ao projeto concessionário.
Fora isso, não existe autorização constitucional para substituição de um por outro. O artigo 175 da Constituição é claro ao dispor que toda concessão deverá ser previamente licitada e quanto a isso não há margem para interpretações criativas. Parece ser mais adequado ao regime das concessões e livre concorrência admitir que, na hipótese de alienação do controle da estatal, os vínculos contratuais firmados por força de prerrogativas especiais de administração se encerrem, ao passo que, concomitantemente, o município realize processo licitatório para seleção do melhor competidor. Neste contexto, a substituição do contrato de programa poderá até ocorrer, desde que a compreensão do termo implique em reconhecer a descontinuidade deste tipo de arranjo, seguida de licitação vencida pela própria companhia privatizada.
Ou seja: não nos parece ser constitucionalmente compatível admitir que a substituição ocorra sem licitação, na medida em que, se assim for, estar-se-á criando uma nova categoria de reserva de mercado dentro do setor do saneamento, desta vez, para companhias estaduais privatizadas.
Destaque-se que mesmo assim a Sabesp terá vantagem competitiva em processos licitatórios de projetos concessionários cujo serviço era prestado por ela. Afinal, é a companhia que esteve durante décadas à frente do saneamento básico no estado de São Paulo, detendo expertise decorrente do aprendizado de todo tempo de operação. Todavia, esse know how deve se refletir em transparente processo licitatório que admita ampla competição e possibilite que outros players também possam colocar na mesa de negociação suas intenções e potenciais. Quem ganhará neste jogo é o usuário do serviço, na medida em que a modelagem adequada de um processo licitatório tenderá a selecionar proposta que, por exemplo, pague valor justo pela outorga e também cobre a menor tarifária possível, considerando o equilíbrio econômico-financeiro.
De toda forma, o momento para discussão é agora. Não é de bom tom primeiro realizar leilão, para depois discutir o alcance do artigo 14 da Lei nº 14.026/2021, visto que eventual assimetria de informação, além de prejuízos ao próprio serviço, poderá gerar distorção na precificação do ativo. Além disso, é corriqueiro — o que inclusive já foi enfrentado pelo próprio Marco Legal do Saneamento — a judicialização como resposta à incerteza, deflagrando conflitos, aumentando risco e gerando insegurança jurídica ao investimento, o que é nocivo quando se está diante de um serviço essencial cujo escopo precípuo é entregar dignidade ao cidadão.
Daí a necessidade de ser definido com urgência o destino dos contratos de programa, para que a alienação do controle acionário da Sabesp cumpra seu objetivo, universalizando até 31 de dezembro de 2029 o saneamento no estado de São Paulo com redução tarifária.
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