Metrópoles
Na década de 1990, a Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, no interior paulista, recebia os bandidos mais perigosos de São Paulo.
Na cadeia de segurança máxima, os presos relatavam uma rotina torturante, com espancamentos diários e comida misturada com insetos.
Pressionada por denúncias de maus-tratos, a diretoria do Piranhão liberou um jogo de futebol: o Comando Caipira, formado por presos do interior, enfrentaria o Primeiro Comando da Capital (PCC), com os nascidos na cidade de São Paulo.
Em 31 de agosto de 1993, a data da partida, os presos do PCC emboscaram os rivais e, em vez de futebol, a cadeia assistiu a um massacre.
José Márcio Felício, o Geleião, deu uma pancada na cabeça e quebrou o pescoço de Severo Amâncio Barbosa, o Baiano Severo. Outros sete presos cercaram Willian Garcia de Camargo e o espancaram até a morte.
Com os corpos dos rivais ainda estirados no pátio, os presos declararam o nascimento da facção criminosa PCC, sob o lema “Paz, Justiça e Liberdade”.
CAPÍTULO 1:
DE 8 A 100 MIL
de 8 a 100 mil
Nascido da ferocidade reinante no sistema prisional paulista, o Primeiro Comando da Capital (PCC) foi fundado há exatos 30 anos, em 31 de agosto de 1993, a pretexto de reivindicar mudanças nas condições de vida dos presidiários. Desde então, o grupo extrapolou os muros do sistema e perdeu o caráter de sindicato. Hoje, é uma multinacional do crime, com diretores bem remunerados e um exército de funcionários à disposição, sustentada pelos bilhões do tráfico de cocaína.
No início, eram apenas oito presos. Três décadas depois, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) calcula que o PCC tenha atualmente 100 mil “colaboradores”, número suficiente para alçá-lo, se fosse uma empresa, ao posto de terceiro maior empregador do Brasil, à frente de bancos, gigantes atacadistas e mineradoras.
São cerca de 40 mil “irmãos”, os batizados pelo PCC, e 60 mil “companheiros”, os prestadores de serviços. Todos submetidos às regras e à hierarquia do grupo. O crescimento exponencial aconteceu sob vista grossa de autoridades e à custa de um número incalculável de mortes dentro e fora dos presídios.
Para complementar o faturamento, a facção realiza contrabando de armas e assaltos cinematográficos. Também tem ramificações nos setores de comércio, serviços, mercado imobiliário, garimpo e até no de criptomoedas.
Segundo investigadores e estudiosos da facção, antes de se tornar a maior organização criminosa da América do Sul, o PCC atravessou uma “fase social”. Essa jornada começa no anexo da Casa de Custódia de Taubaté, no interior paulista, mais conhecido por “Piranhão”, “Casa de Monstros” ou “Campo de Concentração”.
Os fundadores
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César Augusto Roriz Silva, o Cesinha (líder)
Condenado a mais de 140 anos de prisão por roubos e homicídios, era o mais empolgado com a ideia de formar um “sindicato de presos”. Um dos líderes do grupo, tinha como assinatura a decapitação de rivais. A prática foi difundida no PCC.
Morreu em agosto de 2006, aos 39 anos, assassinado a estocadas na Penitenciária de Avaré (SP).
José Márcio Felício, o Geleião (líder)
Inventor da sigla PCC. Também líder do grupo, foi responsável por matar um dos presos rivais só com as próprias mãos no crime que inaugurou a facção. Estava preso desde 1979, por roubar e estuprar uma estudante na capital paulista.
Morreu em maio de 2021, aos 60 anos, de Covid-19. Foi o último fundador do PCC a morrer.
Mizael Aparecido da Silva, o Miza (líder)
Autor do primeiro estatuto do PCC. Estava preso desde 1985, acusado de estupro – crime que escondia dos outros detentos. No Piranhão, chegou a surtar e a comer os próprios dejetos durante um banho de sol.
Morreu em fevereiro de 2002, aos 41 anos, assassinado por enforcamento na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau (SP).
Isaías Moreira do Nascimento, o Isaías Esquisito
Era condenado a 34 anos de prisão por assalto e assassinatos. Portador de HIV, foi o primeiro fundador do PCC a morrer.
Morreu em outubro de 1995, na Penitenciária do Estado (SP), de causas naturais.
Antônio Carlos Roberto da Paixão, o Paixão
Cumpria pena de 26 anos de prisão por roubo e assassinatos. Cometeu suicídio três anos após fundar o PCC.
Morreu em agosto de 1996, enforcado na própria cela no Piranhão (SP).
Wander Eduardo Ferreira, o Du Cara Gorda
Era condenado a mais de 60 anos de prisão por homicídios e assaltos a bancos.
Morreu em outubro de 2000, em confronto com a Polícia Militar, durante uma tentativa de fuga em Marília (SP).
Antônio Carlos dos Santos, o Bicho Feio
Em conflito com outras lideranças, saiu do PCC pouco depois e fundou o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC), grupo rival, em 1999.
Morreu em dezembro de 2000, decapitado por membros do PCC durante um motim no Piranhão (SP).
Ademar dos Santos, Dafé
Também rompeu com o PCC e se tornou um dos fundadores do CRBC, facção criminosa com atuação em Guarulhos (SP).
Morreu em dezembro de 2000, executado por membros do PCC durante um motim no Piranhão (SP)
Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra
Apesar de não ser fundador do PCC, foi o primeiro preso a ser batizado. Afilhado de Cesinha, escalou rapidamente e se tornou o membro mais importante em São Paulo. Ladrão de banco, era condenado a 218 anos e respondia a 68 inquéritos na capital, Ribeirão Preto e outras cidades do interior.
Morreu em julho de 2001, assassinado por enforcamento no Piranhão (SP).
Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola
Amigo de infância de Cesinha, também foi um dos primeiros batizados pelo PCC. Passou pela antiga Febem, virou especialista em assaltar bancos e é condenado a mais de 330 anos de prisão. No Piranhão, tinha o vulgo de “Playboy”.
É o único líder da primeira geração do PCC que está vivo.
Estar no Piranhão era uma espécie de castigo. Famosa por abrigar presos de alta periculosidade, incluindo latrocidas e sequestradores, a cadeia recebeu Pedrinho Matador, o Maníaco do Parque e o Bandido da Luz Vermelha. Na unidade, a diretoria empilhava denúncias de tortura e maus-tratos.
Em 1993, o diretor era José Ismael Pedrosa, o mesmo do Massacre do Carandiru, ocorrido no ano anterior, que terminou com 111 presos mortos e nenhum policial militar punido até hoje. O episódio, tido como uma “covardia” pela massa carcerária, ainda repercutia no sistema prisional de São Paulo.
A realidade das cadeias também era diferente. Com extorsões, estupros e assassinatos banais cometidos internamente, presidiários formavam gangues para se proteger e disputar poder com rivais.
“Era uma coisa praticamente natural que os detentos encontrassem com os seus comparsas dentro do sistema, garantindo segurança e identificação”, afirma o procurador de Justiça Márcio Christino, do MPSP, que investiga o PCC desde a sua fundação.
Os colaboradores
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Com 40 mil “irmãos” e 60 mil “companheiros”, o PCC ocuparia o posto de terceiro maior empregador do Brasil, se fosse uma empresa formal.
Os presos nascidos na capital paulista eram minoria no Piranhão e viviam sob constante ameaça. Com currículo recheado de crimes violentos e oratória elogiada até por policiais, José Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz Silva, o Cesinha, lideravam o grupo dos paulistas.
A partida de futebol foi o episódio que os oito detentos utilizaram para trucidar os rivais e impor a sua disciplina na cadeia. Escrito à mão por Mizael Aparecido da Silva, o Miza, o primeiro estatuto do PCC proibia que presos cometessem delitos entre si, sem autorização prévia, e insuflava a massa carcerária contra a administração penitenciária.
Logo no primeiro artigo, o estatuto determinava “lealdade, respeito e solidariedade, sobretudo ao Partido”, outra forma de se referir ao PCC. A facção também seria chamada de “Sindicato do Crime” e de “1533” – sequência numérica formada pela ordem em que cada letra da sigla aparece no alfabeto.
O estatuto
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O estatuto do PCC serve para disciplinar as regras da facção, que valem para seus membros, dentro ou fora das cadeias, e para regiões dominadas fora do presídio (moradores comuns). O primeiro estatuto foi escrito por Miza (fundador), em 1993. As regras do PCC sofrem mudanças com o tempo.
Contagiada pela proposta de pacificar as cadeias e “revolucionar o país de dentro da prisão”, boa parte dos detentos aderiu voluntariamente à facção. Já os opositores eram mortos sumariamente.
“O PCC era algo completamente diferente. Ele vinha de dentro [da cadeia] para fora, e não de fora para dentro. A primeira ação do PCC foi impor a vontade dele em relação aos outros presos. E eles vendiam a ideia de que, estando do lado deles, os presos estariam protegidos”, diz Christino.
Para entrar no PCC, era necessário ter padrinho, ser batizado e prestar juramento. O primeiro novo integrante foi Idemir Carlos Ambrósio, o Sombra, assaltante de banco famoso pela crueldade e por gostar de fazer citações do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956).
Pelas regras impostas, membros em liberdade deveriam contribuir com R$ 500 por mês para o caixa da facção. Os que estavam em regime semiaberto tinham de pagar R$ 250. Já os encarcerados desembolsavam R$ 25. O valor arrecadado, chamado de “cebola”, serviria para bancar advogados, prestar assistência às famílias em necessidade e também patrocinar regalias para integrantes da cúpula.
O dinheiro era usado, ainda, para corromper agentes penitenciários, comprar armas e investir em “centrais telefônicas”, estruturas capazes de garantir a comunicação simultânea dos presos, via celulares contrabandeados para a cadeia.
A expansão
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Com discurso “sindical” e promovendo uma convivência mais “pacífica” dentro do sistema penitenciário, ao impor regras e punir crimes como estupros, extorsões e assassinatos banais, o PCC rapidamente se espalhou por São Paulo.
Para combatê-lo, o governo paulista negociou uma permuta de presos e enviou lideranças do PCC para outros estados. A estratégia, no entanto, saiu pela culatra e ajudou a espalhar a facção pelo país.
Taubaté
O PCC é fundado na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, o Piranhão, no interior paulista, em 1993.
Estado de São Paulo
Sombra e outros integrantes da facção são transferidos para diferentes cadeias de São Paulo ao longo da década de 1990. PCC chega à capital paulista, litoral e se espalha pelo interior paulista.
Mato Grosso do Sul
Cesinha, Geleião e Miza, os líderes do PCC, são transferidos para a Penitenciária de Campo Grande em 1998.
Paraná e Bahia
Cesinha, Geleião e Miza foram enviados logo depois para Piraquara, onde permaneceram até 2001.
As primeiras ações na Bahia foram identificadas ainda no fim da década de 1990.
Pernambuco, Minas Gerais, Espírito Santo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul
Novas células do PCC foram constatadas pela CPI do Tráfico de Armas, da Câmara dos Deputados, em 2006.
Brasil
O PCC já atuava em todos os estados, de forma hegemônica ou aliado a facções locais, em 2016.
Para abafar a facção, a estratégia do governo de São Paulo foi transferir lideranças e negar publicamente a existência do grupo até o início dos anos 2000. “É uma ficção. Uma bobagem. Estou absolutamente convencido disso”, declarou o então secretário da Administração Penitenciária, João Benedicto de Azevedo Marques, em 1997.
Na época, a fim de desmantelar a cúpula do grupo, São Paulo negociou uma espécie de permuta de presos e enviou Geleião, Cesinha e Mizael para Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, e Piraquara, município da Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná. Outros integrantes foram transferidos para diferentes penitenciárias do interior paulista. A estratégia, no entanto, ajudou a espalhar o PCC por outros estados.
Peregrinando por cadeias paulistas, Sombra virou o “porta-voz” da facção em São Paulo durante a ausência dos fundadores. Somente a ele são atribuídos pelo menos 500 batismos.
“Eu, Ivana David, sou a prova viva de que o governo sabia [do surgimento do PCC], por ser juíza corregedora [da Polícia Civil, na década de 1990]. Nós ouvíamos os presos e os presos contavam o que estava acontecendo. E está tudo no papel. E o que eu fazia no final? Oficiava o governador, para que tomasse conhecimento da situação x, y e z. Ninguém nunca escondeu a existência [do PCC]. Mas o bordão na época era o seguinte: ‘Ah, que exagero. É só um grupo de moleques’, ‘Isso não vai dar efeito nenhum’”, afirma a desembargadora Ivana David, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Com centrais telefônicas em pleno funcionamento, a estratégia de mandar faccionados para longe também não impedia que ataques nas ruas fossem coordenados dos presídios. Segundo investigações, o PCC levantou mais de R$ 51 milhões com grandes assaltos, o equivalente a R$ 308 milhões hoje, na sua primeira década de existência.
O dinheiro serviu para promover fugas em massa e sufocar gangues rivais, como a Seita Satânica (SS) e o Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade (CRBC), com menor poder de fogo. Dissidentes do PCC, os fundadores Ademar dos Santos, o Dafé, e Antônio Carlos dos Santos, o Bicho Feio, tiveram as cabeças arrancadas e atiradas para fora do Piranhão, em dezembro de 2000, durante um motim.
A primeira grande demonstração de força, entretanto, aconteceu em fevereiro de 2001. Em protesto contra a transferência de líderes, o PCC promoveu uma megarrebelião em 29 unidades prisionais de São Paulo, que terminou com 14 presos mortos e 19 agentes penitenciários feridos. O Brasil nunca havia assistido a nada igual.
Carcereiros foram mantidos reféns e rebelados apareceram exibindo faixas na TV. Com a megarrebelião estampada nos jornais, o governo também admitiu publicamente, pela primeira vez, os problemas com a facção.
A arrecadação
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O PCC planejou e executou grandes assaltos nos primeiros anos de existência. Com ações coordenadas de dentro da cadeia, a facção levantou mais de R$ 51 milhões, o que hoje corresponderia a R$ 308 milhões. A facção investiu esse valor para corromper policiais e agentes penitenciários, comprar armas, planejar novos crimes, sufocar gangues rivais e realizar fugas nas cadeias.
24 de abril de 1996:
Seis homens armados com metralhadoras e fuzis invadiram a pista do Aeroporto de São José dos Campos, roubaram malotes de dinheiro que seriam transportados em um avião e fugiram com duas aeromoças reféns. Foram roubados R$ 5 milhões.
17 de outubro de 1998:
Dezoito pessoas assaltaram a agência da Caixa Econômica Federal, no centro da capital paulista, e levaram dinheiro e joias dos cofres de 5 mil clientes. Os ladrões tinham o croqui do setor de penhora do banco. Foram roubados R$ 6 milhões.
5 de julho de 1999:
Uma quadrilha invadiu a agência central do Banespa, na cidade de São Paulo, e praticou o maior roubo a banco até então no Brasil. Os ladrões ficaram mais de quatro horas, arrombaram cofres e lotaram duas vans com dinheiro. Foram roubados R$ 32,5 milhões.
24 de outubro de 1999:
Com metralhadoras, fuzis e revólveres, 15 homens atacaram o setor de penhora da Caixa Econômica de Santo André, na Grande São Paulo, e levaram mais de 6 mil lotes de joias. Foram roubados R$ 5 milhões.
8 de junho de 2000:
Ladrões invadiram a pista do Aeroporto de Congonhas, na zona sul da capital paulista, pararam uma aeronave de pequeno porte com tiros de fuzil e levaram a carga. Foram roubados R$ 3 milhões.
Hoje, a estimativa é que o PCC domine 85% das 181 cadeias paulistas. Os seus membros também estão espalhados em todos os estados brasileiros e por outros países. “O governo sempre subestimou”, diz Ivana. “A facção só cresceu e enriqueceu. Financeira e estruturalmente transbordou os limites territoriais do país.”
Os cofres cheios e o poder também trouxeram rachas no PCC. Um dos líderes dos motins de 2001, Sombra acabou enforcado com cadarços, no pátio do Piranhão, quatro meses após coordenar os ataques.
Por causa do homicídio, a facção decretou luto de sete dias e lideranças fizeram acusações mútuas. A disputa interna, marcada por traições e novos assassinatos, seria vencida em 2002 por um dos primeiros presos batizados: Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. Até hoje, é ele quem manda no PCC.
As rebeliões
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Com os cofres cheios e um exército já poderoso, o PCC passou a medir forças com o governo de São Paulo. Uma série de ataques, de rebeliões nos presídios a atentados contra autoridades, revelou o poder da facção criminosa para todo o Brasil quase uma década após a sua fundação.
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