domingo, 10 de janeiro de 2021

Fundação Casa de Franca: denúncias de tortura, assédio e até de estupro

10 de janeiro de 2021
GCN.net.br

Franca

EXCLUSIVO

Fundação Casa de Franca: denúncias de tortura, assédio e até de estupro


Fonte gcn

Agentes da unidade de reeducação de adolescentes em Franca denunciam 'inúmeras práticas criminosas' dentro da instituição, como 'tortura' contra os internos e assédio moral contra funcionários, e uma ex-vigilante diz ter sido estuprada por um coordenador do local.

Franca 2 horas atrás
  
Kaique Castro
da Redação
 
Arquivo/GCN 
Fundação Casa investiga as denúncias; acusados negam os relatos, um deles fala em 'maldade'
 Uma onda de denúncias tem marcado os últimos dias na Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) de Franca. Nessa última semana, denúncias de agentes e vigilantes que trabalham na instituição, além de familiares de internos, apontam que no local acontecem agressões aos jovens, assédio moral e até estupro.

E um termo circunstanciado, dez agentes apoio que atuam na unidade denunciam o que classificam como “inúmeras práticas criminosas”. Boletins de ocorrência também foram registrados na Polícia Civil.

Um agente que prefere não se identificar com medo de represálias chegou a registrar um boletim de ocorrência, nessa quinta-feira, 7. O estopim foi o engavetamento de denúncias de agressões contra os jovens e de assédio moral contra os agentes supostamente praticados por um coordenador da unidade.

“São práticas de tortura que acontecem lá com os adolescentes. Assédio contra os funcionários. Os adolescentes não podem delatar o que está acontecendo, porque caso contrário, eles vão apanhar mais, além de constantemente serem ameaçados de passarem mais tempo dentro da Fundação”, afirmou o agente.

Ainda de acordo com os denunciantes, o assédio moral e as ameaças começaram após a troca da diretoria da Fundação. “Práticas que violam seriamente a dignidade da pessoa humana de várias maneiras desde a chegada do novo diretor Marcelo Viana Barense”, afirmam os 10 agentes, na denúncia encaminhada à Fundação Casa.

Um dos agentes disse ao GCN que os adolescentes chegam a reclamar sobre os casos de violência que, segundo ele, são diários, mas as denúncias teriam sido arquivadas pela diretoria da Casa de Franca.

“Um adolescente chegou a ser agredido pelo diretor, mas ele é o mesmo que arquiva as denúncias. Ele (diretor) quer implantar uma prática de tortura aqui, mas não estamos acostumados a trabalhar dessa forma. A grande maioria dos agentes é contra esse tipo de prática”, continuou.

Além das agressões ao adolescente, o agente reclama de determinadas atitudes de Barense. Segundo ele, o diretor trata os funcionários de forma arrogante e desrespeitosa. Ele narra um episódio que teria acontecido nessa última quinta-feira, quando o diretor o ameaçou, caso um relatório pendente não fosse realizado.

“Ele olhou pra mim e disse: ‘Tem um relatório pendente pra fazer, demônio. Caso der BO e sobrar pra mim, vou colocar no seu r***’. De imediato, fui fazer o relatório no sistema. Mas ele afirmou que agora ficará de olho em mim”, narrou o agente.

A maioria das denúncias cerca uma pessoa: Erivan de Melo, de 37 anos. Ele ocupa o cargo de coordenador de equipe há dois anos, mas trabalha na Fundação há seis. Segundo um agente da Fundação Casa de Franca, as práticas de violência começaram quando Erivan veio transferido de Ribeirão.

Ele diz ter presenciado uma cena de agressão praticada por Erivan, no dia 21 de dezembro de 2020, quando um jovem de Batatais foi transferido para Franca e, no momento da revista, um atrito entre o interno e o coordenador terminou com o adolescente sendo espancado.

“Houve o desentendimento entre eles. O Erivan trancou o menino em um quarto. Depois ele retornou, tirou o menino do quarto e o levou até a quadra, sozinho e agrediu ele com socos no peito”, disse o agente.

Após as agressões – conta o agente – o jovem foi encaminhado para seu dormitório e, pela manhã, relatou a outros agentes o que teria acontecido. Ele foi encaminhado para a enfermaria e uma ficha de notificação de violência foi feita.

Ainda segundo o funcionário da casa, o procedimento implantado pela instituição seria encaminhar o adolescente ao IML (Instituto Médico Legal), o que não foi feito. Ele também faz sérias acusações ao diretor, afirmando que o jovem foi coagido a não prosseguir com as denúncias.

“No dia 2 de janeiro deste ano já, o garoto disse que denunciaria Erivan. Segundo o relado de outros adolescentes, o diretor chamou o adolescente até sua sala, onde houve ameaças que ele ficaria mais tempo internado”, finalizou o agente.

Todas as denúncias feitas pelos dois agentes ao GCN constam do Termo Circunstanciado, assinado por 10 servidores da instituição.

 

Familiares confirmam agressões

Após as denúncias das agressões sofridas por adolescentes, o GCN procurou familiares de jovens que se encontram internados na Fundação Casa de Franca. Pais e mães repetiram as acuações contra a unidade.

A mãe de um jovem de 17 anos, que está internado na instituição por tráfico de drogas, conta que seu filho foi agredido por conta de um chinelo.

“Ele contou que apanhou por causa do chinelo. Lá eles são separados por grupos. E cada grupo tem uma cor de roupa e de chinelo. Não sei se o segurança achou ruim e meu filho respondeu. Mas ele apanhou por conta de um chinelo”, afirmou a cozinheira de 52 anos.

Segundo apurou a reportagem, o filho da cozinheira apanhou de um agente e do coordenador do local, no corredor de convivência onde os jovens ficam.

Ainda de acordo com a mãe, esta é a segunda vez que seu filho está internado na Fundação Casa e esta foi a primeira ocorrência de agressão contra ele.

“Ele chegou uma vez a brigar lá, mas foi com outros internos. Dessa vez, não. O tratamento lá é bom, nunca tive problema com agressões, essa foi a primeira vez”, finalizou a mãe, que confirma que o caso foi registrado no local.

Outra pessoa que relatou problemas na instituição é uma catadora de recicláveis, mãe de um adolescente de 16 anos. Segundo ela, seu filho começou a apresentar sinais estranhos nas videochamadas feitas por ele na Fundação.

“Eu tive uma videochamada com ele e percebi que ele estava mais acuado. E sua boca estava inchada. Tem um tempo que ele estava estranho, foi quando descobri que ele tinha sido agredido”, disse a mulher, que é de São José da Bela Vista.

Prints encaminhados pela mãe à reportagem mostram o rosto do jovem inchado. Por se tratar de um adolescente, a imagem não será publicada.

As agressões aos adolescentes seriam praticadas por agentes e coordenadores. Denúncias apontam que até o diretor do local tem o costume de “corrigir” os adolescentes com socos e pontapés.

 

Acusação de estupro

O nome de Erivan de Melo é envolvido em outra grave denúncia de violência dentro da Fundação Casa de Franca. Desta vez, o coordenador é acusado por Márcia Gonçalves do Santos, de 40 anos, de a ter assediado e estuprado no período em que ela trabalhou na instituição.

Márcia conta que começou a trabalhar na Fundação como vigilante de uma empresa terceirizada em junho de 2019. Tudo iria bem até dezembro daquele ano, quando ela teve seu turno alterado e passou a trabalhar à noite, mesmo horário que Erivan.        

“Eu conversava com ele como conversava com todos os outros funcionários. Falávamos de todos os assuntos. Mas eu tinha um parceiro de trabalho, então nunca aconteceu nada. Mas eu comecei a perceber que ele dava algumas investidas, umas indiretas. Ele tinha a investida, mas eu nunca demonstrei que teria vontade de ficar com ele”, disse Márcia, que no início acreditava que as investidas e indiretas eram brincadeira.

Mesmo com as “brincadeiras”, Márcia não denunciou o coordenador. Segundo ela, o que a deixava segura era a presença de outro vigilante na guarita em seus turnos.

Tudo começou a se agravar quando a empresa que a mulher trabalhava começou a atrasar os salários dos funcionários. Em janeiro de 2020, Márcia e outros vigilantes precisaram trabalhar sozinhos, apenas com a presença dos servidores da instituição.

Mesmo com o salário atrasado, ela continuava indo ao trabalho, porque acreditava que receberia os dias trabalhados. Segundo ela, foi nesse período que teria sido estuprada pelo coordenador.

“O Erivan tinha acesso a toda a instituição. Ele ficava andando lá a noite inteira. Até que teve um dia que ele me pegou na cozinha e praticou o ato. Ele me estuprou na cozinha da P1 (local onde Márcia ficava durante o turno...)”, disse a mulher.

“Ele abaixou minha calça e praticou o ato. Foi muito rápido. Acho que ele ficou com medo de alguém chegar. Eu fiquei paralisada. Não tive reação. Parece que minha alma saiu do corpo naqueles momentos.”           

Márcia diz que, após o ato, Erivan teria saído e, posteriormente, voltado e dito: “Nossa, como ela é cheirosa!”.

A vigilante disse que decidiu manter silêncio, mas pedia para que os agentes ficassem com ela na guarita, enquanto o coordenador estava lá.

“Eles não entendiam o porquê, mas entendiam o meu desespero de ficar perto dele. Mas eu pedia: ‘Pelo amor de Deus, não deixa me deixem sozinha com esse homem aqui’. Eles não entendiam, mas ficavam”, continuou a vigilante.

A vigilante disse que passou outro apuro com o coordenador. Segundo ela, o homem se sentou em uma cadeira da P1, tirou o pênis para fora e começou a se masturbar olhando para ela. “Ele me perguntou se eu queria c... Mandei ele colocar aquilo para dentro e saí. Em seguida, ele saiu também”, continuou.

Márcia alega que, após esses supostos episódios, teria começado o assédio moral. Até que um dia, ela se cansou e relatou os problemas à diretora do local, mas pediu que ela não o denunciasse, porque tinha muito medo de perder o emprego.

Dois meses depois, a vigilante foi transferida para o Caip (Centro de Atendimento Inicial e Provisório), que faz parte da Fundação Casa, onde permaneceu por algum tempo e foi dispensada após seu contrato acabar.

A mulher registrou um boletim de ocorrência contra Erivan. Todos os envolvidos foram ouvidos e o caso foi arquivado na Polícia Civil. Márcia agora briga na Justiça para que o inquérito seja reaberto.

Ela afirma que as pessoas ouvidas na delegacia não estavam no dia do suposto crime. Ela também move uma ação de assédio moral, que já está correndo na Justiça. Os envolvidos deverão ser ouvidos no Fórum de Franca em março deste ano.

 

Acusado nega acusações e fala em ‘maldade’

A reportagem procurou os dois acusados pelos agentes e pelos familiares. O diretor Marcelo Viana Barense afirmou que não recebeu denúncia alguma sobre qualquer acontecimento e que mais informações seriam repassadas pela assessoria da instituição.

O coordenador Erivan de Melo disse que as acusações de assédio e agressões não têm fundamento e que seu trabalho segue as diretrizes da instituição, respeitando todos os internos e funcionários. Ele nega qualquer tipo de agressão e assédio.

“Sobre as acusações de assédio e agressão, eu desconheço. Trabalho com 50 adolescentes e 40 funcionários. Meu trabalho é reconhecido e, infelizmente, a gente não agrada todo mundo. Não sei por que fizeram isso. Maldade, sei lá. Eu sigo meu trabalho”, afirmou.

Melo disse que não desrespeitou nem maltratou ninguém. “Isso não tem fundamento. Sou muito correto, exigente. Os adolescentes sabem disso, acatam todas minhas orientações. Agressões não existem de forma alguma. A Corregedoria está aí para comprovar”, ressaltou.

Ele acredita que todas as denúncias não passam de “maldade” dos denunciantes. Ele cita que além dele, o diretor e o outro coordenador estão sendo alvos dessas “maldades”.

“Somos pais de família. É maldade. Não é só comigo, estão agindo na maldade com outro coordenador e o diretor. Não tenho problema pessoal com ninguém. Não sei o que passa na cabeça das pessoas.”

Sobre o caso de denúncia de estupro, ele afirma que não praticou os atos denunciados pela vigilante, como afirmou em oitivas feitas pela Polícia Civil, no inquérito arquivado.

“Foi provado que eu não fiz nada. O processo foi arquivado. Isso não existe, nunca houve isso. Ela fez isso com algum propósito para se beneficiar financeiramente”, finalizou.

 

Pastoral do Menor

A Pastoral do Menor de Franca, que gerencia o local em parceria com o Governo do Estado, afirmou que ficou sabendo das denúncias nesta quinta-feira, 7, e que irá apurar todas as denúncias.

“Soube dos casos ontem e já começamos a apurar. Vamos levantar as informações e passar para a ouvidoria e corregedoria da Fundação. Não tínhamos conhecimento das agressões e é de extrema importância que isso seja investigado”, disse o presidente da Pastoral, padre Ovídio de Andrade. 

 

Fundação Casa

Através de nota, a Fundação Casa afirmou que abriu sindicância para apurar as denúncias. Leia na íntegra:

A Corregedoria Geral da Fundação CASA investiga, em sindicância, as denúncias citadas. A Fundação CASA baseia a sua prestação de serviço de execução de medida socioeducativa em regime fechado no respeito aos direitos humanos e fundamentais dos adolescentes, regulados na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), além do próprio Regimento Interno.

Não há tolerância institucional à prática de tortura contra o público atendido, assim como a Fundação CASA repudia todo e qualquer ato de violência entre servidores ou contra prestadores de serviço.

A relação entre a Instituição e os servidores ainda se baseia na legislação trabalhista vigente, sem qualquer orientação, inclusive por meio do Regulamento Interno dos Servidores, para que gestores extrapolem a boa convivência com seus subordinados na execução do trabalho.


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