A lentidão da Justiça brasileira é conhecida, mas o que muita gente não sabe é que até as pessoas que já estão presas são prejudicadas por isso. Entre elas, estão os detentos que já acertaram suas contas com a sociedade e demoram para serem soltos, contribuindo para a superlotação das penitenciárias, um dos grandes problemas do país na atualidade.
Em meio à crise no sistema prisional, que voltou à tona com os massacres ocorridos no Amazonas e em Roraima recentemente, uma das iniciativas utilizadas para desafogar as prisões não é realizada desde 2014: o mutirão carcerário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que concedeu mais de 80 mil benefícios a presos desde a sua criação, em 2008 - 45 mil acabaram libertados.
Desde então, ações do tipo, que levam juízes e defensores para dentro das cadeias e fazem uma varredura nos processos para ver quais presos podem, por exemplo, migrar de regime ou ganhar a liberdade, passaram a ser quase sempre organizadas no nível estadual, mas não são todos os Estados as colocam em prática.
Em âmbito nacional, só o Condege (Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais) - cooperação entre as defensorias dos Estados, do Distrito Federal e da União - faz trabalho semelhante, mas age apenas em situações que considera emergenciais no âmbito de um programa chamado Defensoria Sem Fronteiras. Nenhum foi realizado no ano passado.
O CNJ informou à BBC Brasil que não realizou nenhum mutirão em 2015 e 2016 - anos em que o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, presidiu a instituição. A atual presidente, Cármen Lúcia, que tomou posse em setembro, também não deu continuidade ao projeto.
Mas por que o programa ficou de lado, se é bem avaliado e custa pouco?
A resposta está nas mudanças de gestão do CNJ.
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O mutirão carcerário do órgão foi criado quando seu presidente era o ministro do STF Gilmar Mendes. Seus sucessores, Cezar Peluso e Joaquim Barbosa, hoje aposentados do Supremo, mantiveram a iniciativa.
Lewandowski, por sua vez, resolveu criar e priorizar outro programa de combate à superlotação. Ele implantou o projeto Audiência de Custódia, ação permanente em que presos em flagrante são rapidamente levados a um juiz, que decide sobre a legalidade daquela detenção, evitando que pessoas passem meses dentro da cadeia sem que seus casos sejam devidamente analisados.
Desde outubro de 2015, a prisão foi relaxada em 46,2% das 174.242 audiências realizadas. Nos casos restantes, a detenção em flagrante foi transformada em prisão preventiva.
Questionada pela BBC Brasil, a assessoria do ministro afirmou que esse programa substituiu os mutirões pelo custo baixo e "por ser uma ação permanente, movimentada pelo próprio Judiciário local e por dar efetividade a um direito constitucional e previsto em tratado internacional".
A BBC Brasil apurou que Cármen Lúcia, atual presidente do STF e do CNJ, solicitou aos tribunais uma reunião especial de juízes criminais para acelerar o julgamento dos processos de presos provisórios - ou seja, que ainda aguardam julgamento. Eles representam cerca de 41% das pessoas detidas, de acordo com dados de 2014 do Ministério da Justiça.
Desde que assumiu a presidência do órgão, em setembro, a ministra não se manifestou formalmente sobre a realização de mutirões.
Vítimas da lentidão
Enquanto as iniciativas de Lewandowski e Cármen Lúcia focam em presos que ainda não foram condenados, os mutirões beneficiam detentos em várias situações.
Entre eles, os condenados que podem já ter direito a trabalhar fora do presídio durante o dia (ou seja, migrar para o regime semiaberto), a abatimento da pena, a cumprir prisão em regime domiciliar ou a simplesmente serem soltos, seja em liberdade condicional ou de forma definitiva, mas que estão com seus processos parados devido à lentidão da Justiça.
"Há no Brasil centenas de milhares de presos nessa situação", diz Taiguara Souza, o professor de direito penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretor executivo do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH). "Contribui de maneira decisiva para a superlotação."
Os últimos dados oficiais disponíveis, de 2014, apontavam uma população carcerária de 607 mil pessoas no Brasil - especialistas estimam que esse número já tenha ultrapassado os 700 mil, fazendo com que o Brasil passe do quarto para o terceiro lugar em população carcerária, atrás apenas dos EUA e da China.
Até abril de 2010, quando Gilmar entregou o cargo a Peluso, 108.048 processos foram examinados em 20 Estados e 33.925 benefícios, sendo 20.358 alvarás de soltura, foram concedidos. Entre 2010 e 2014, foram realizados outros 38 mutirões - 27 na gestão de Peluso (um em cada um dos 26 Estados e um no Distrito Federal) e outros 11 sob a direção de Barbosa.
"Os mutirões foram um instrumento muito válido para ajudar com o problema da com a crise no sistema prisional", disse Peluso à BBC Brasil. "Nós achávamos, como ficou depois comprovado, que havia muitos casos de não observância de direitos e de possibilidade de dar vantagens aos presos", completou.
Defensores
Na próxima segunda, um raro mutirão organizado por órgãos federais começará a atuar em Manaus, palco no início do ano da pior matança ocorrida em cadeias do país desde o Massacre do Carandiru, em 1992.
Para que o trabalho ocorra, foi assinado nesta terça-feira um acordo de cooperação entre Condege, Ministério da Justiça e Anadep (Associação Nacional dos Defensores Públicos).
O programa Defensoria Sem Fronteiras, do Condege, fez outros mutirões em 2014, em quatro cidades do interior do Paraná (Foz do Iguaçu, Londrina, Francisco Beltrão e Cascavel), e em 2015, em Recife e Fortaleza.
Outras iniciativas apoiadas pela Defensoria Pública da União realizaram mutirões carcerários em 2009 (Ribeirão das Neves, Minas Gerais), 2010 (São Pedro Alcântara, em Santa Catarina), 2013 (em oito cidades catarinenses) e em 2014 (no Maranhão). Os trabalhos foram coordenados pela Força Nacional da Defensoria Pública em Execução Penal, com participação da DPU.
O desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região conta que a Força foi criada em 2009 para ajudar nos Estados mais precários. Segundo ele, secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça na época, a pasta só pagava o deslocamento e a hospedagem dos funcionários cedidos pelas defensorias dos Estados.
"Era um custo baixíssimo", afirmou à BBC Brasil.
A economia feita, no entanto, era alta. O relatório final do primeiro mutirão da Força, feito em Ribeirão das Neves, estipulou que Minas Gerais iria deixar de gastar R$ 200 mil já no mês seguinte só com a soltura de 89 presos.