5 de agosto de 2025, 13h22
A Lei de Execução Penal assim dispõe: “O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva”. Além de prever a obrigatoriedade, a legislação condiciona o bom desempenho no trabalho como requisito para obtenção de direitos como a progressão de regime, o livramento de condicional, a comutação de pena e a concessão de indulto. Isso porque a recusa ao trabalho é considerada falta grave [1] e, portanto, seu reconhecimento incorre em má conduta carcerária, causa impeditiva de benefícios legais [2]. As únicas hipóteses em que a lei confere o caráter facultativo ao exercício do trabalho são as exceções aos presos provisórios e aos presos políticos (artigos 31, parágrafo único e 200 da LEP).

Dentre os argumentos que defendem a compulsoriedade do labor às pessoas presas, é possível sumarizar os seguintes: a) trata-se de atividade de natureza disciplinar e não aflitiva; b) trata-se de instrumento para a ressocialização do indivíduo, isto é, a materialização da função de prevenção especial positiva; c) o trabalho consiste em garantia da dignidade humana; d) o trabalho beneficia o preso através da remição; e, por fim, e) inexiste coação física apta a caracterizar a modalidade do trabalho forçado.
Tais argumentações podem ser confrontadas. Primeiramente, a obrigação do trabalho determinada aos presos não encontra respaldo na Constituição que, não apenas reconhece o trabalho como direito social fundamental (artigo 6º), tendo seus valores sociais como fundamento da República (artigo 1º, IV), como também rechaça qualquer pena de trabalho forçado, sem preceituar nenhuma exceção (artigo 5º, XLVII, ‘c’).
Em segundo lugar, destaca-se que a previsão normativa em debate é datada de 1984, contemporânea, portanto, à vigência do texto constitucional de 1967, uma vez que a atual Carta da República entrou em vigor apenas na data de 5 de outubro de 1988. Aquele, por sua vez, não proibia expressamente o trabalho forçado. Com o advento da Carta de 1988, contudo, o dispositivo deveria ser entendido como não recepcionado.
Com relação ao argumento utilizado de que a inexistência de coação física afastaria a caracterização de trabalho forçado, ressalta-se que referida coação não consiste em requisito para sua configuração. Conforme definição da Organização Internacional do Trabalho, a modalidade forçada consistente em “todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de uma sanção e para o qual a pessoa não se ofereceu espontaneamente” (artigo 2º, 1). Além do mais, a Convenção 105 da mesma Organização também reforça que o trabalho imposto com a finalidade de submissão à disciplina se insere na modalidade do labor forçado (artigo 1).
Doutrina e até mesmo tratados internacionais sobre o tema costumam ressalvar, sem maiores explicações, o trabalho forçado a ser realizado em decorrência de sentença condenatória.
Chama atenção o previsto no Pacto de Direitos Civis e Políticos que, não obstante disponha sobre a proibição de execução de trabalhos forçados ou obrigatórios, exclui dessa interpretação o trabalho ou serviço “normalmente exigido de um indivíduo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade condicional” (artigo 8, 3, c, i).

Em idêntico sentido é a disposição da Convenção Interamericana de Direitos Humanos que, após disciplinar a proibição da escravidão e da servidão, afirma não constituir trabalho forçado ou obrigatório para os efeitos da proibição “os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente” (artigo 6, 3, a).
Nesse sentido, a diferenciação entre o trabalho prisional e as modalidades de trabalho forçado ou escravo parece residir na condição daquele que se submete ao labor: se a pessoa estiver em liberdade, o trabalho forçado ou degradante poderá ser assim considerado; contudo, embora a mesma situação possa ocorrer no cárcere, será tida como legítima, por estar expressamente excepcionada pela legislação em razão dessa particularidade [3].
Quanto à argumentação de que o trabalho obrigatório se justifica por se tratar de uma punição imposta por determinação judicial e respaldo legal e constitucional, anota-se que as penas previstas no ordenamento brasileiro não incluem penas de trabalho forçado. Ao contrário, as excluem expressamente (artigo 5°, XLVII, “c”, da Constituição).
A pena a ser cumprida deve ser tão apenas aquela privativa de liberdade e as privações que lhe são inerentes – nada mais. Advogar no sentido de que o trabalho é inerente à privação, uma vez que necessário para a manutenção da disciplina, desconsidera não apenas outras formas possíveis de gestão penitenciária, como também a realidade da situação carcerária do país, em que apenas uma parcela mínima de presos exerce algum labor.
Assim, se necessária atividade laborativa para manutenção da disciplina, essa deveria, no mínimo, ser oferecida, contando também com opções diversas que contribuam com a pretendida socialização do apenado. Dados estatísticos acerca da população prisional demonstram que pequena população prisional está envolvida em algum tipo de programa de remição por atividade complementar, como a leitura, esporte e cultura (Relipen/2024).
Ainda, considerando as disposições normativas de que as atividades que visam à ressocialização devem se assemelhar, ao máximo, às atividades do cidadão livre, para o bom êxito do programa terapêutico, quaisquer atividades compatíveis com a privação de liberdade deveriam ser consideradas inclusive para o fim da remição. É o que sugerem Amaral e Ude, ao defenderem a possibilidade de remição da pena por atividades de cultura e de lazer [4].
Nesse sentido, é válido mencionar a Resolução 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça, que recomendou aos tribunais que, para fins de remição pelo estudo, fossem também valoradas e consideradas outras atividades de caráter complementar, como as de natureza cultural, esportiva, de capacitação profissional, de saúde, entre outras. O CNJ, inclusive, está desenvolvendo grupos de trabalho que visam ao desenvolvimento de planos nacionais de fomento à leitura e ao esporte dentro do cárcere (Portarias CNJ 204/2020 e 205/2020) [5]. O plano de leitura foi lançado em 2023 [6]. A remição por leitura, esporte, videoteca, atividades de lazer e cultura já integra o Sistema Nacional de Informações Penais (Sisdepen), sistema de dados estatísticos lançado em 2023. Dos dados, observa-se que a remição pelo esporte ainda não foi implementada na maioria dos estados da Federação.
Economia do cuidado
Como exemplo de avanço jurisprudencial na ampliação das hipóteses de remição, discute-se a possibilidade de reconhecimento da amamentação como forma de trabalho para fins de remição da pena. Em decisão, ao que se sabe, inédita, acolhendo solicitação da Defensoria Pública estadual, a 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu que o ato de amamentar integra a chamada “economia do cuidado” e, por isso, deve ser contabilizado como trabalho materno, apto a gerar o benefício previsto no artigo 126 da Lei de Execução Penal.
A Corte bandeirante fundamentou-se no Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016) e no conceito moderno de trabalho, destacando que, se atividades como costurar bolas de futebol ou empacotar luvas são suficientes para a remição, com maior razão o é a amamentação, dada sua relevância para o desenvolvimento infantil e a dignidade da mulher encarcerada. A decisão determinou que a autoridade administrativa apure o tempo efetivamente dedicado à amamentação, para fins de abatimento da pena.
O tema está em debate no Superior Tribunal de Justiça (HC 920.980/SP) e será analisado pela 3ª Seção, em sessão prevista para o dia 7 de agosto. O ministro relator, Sebastião Reis Junior, votou pela concessão da ordem para reconhecer o direito à remição pelo período em que a mãe esteve segregada e dedicada aos cuidados com a criança.
O trabalho é um meio de garantia de remição de pena e, portanto, um inconteste benefício para aquele que cumpre pena. Contudo, admitir a modalidade obrigatória à luz dessa justificativa, como pontua Barros [7], seria aceitar uma finalidade moralizante da remição, completamente contrária ao texto legal e ao Estado de Direito [8]. Soma-se ao argumento o fato de que apenas uma pequena parcela de reclusos consegue o privilégio do trabalho dentro das prisões (25%, conforme o Relipen do 2º Semestre de 2024). Logo, a exceção não pode consistir em justificativa para uma regra limitativa de direitos.
Dentro do contexto do sistema prisional, o trabalho se apresenta como forma de atenuação do sofrimento da pessoa encarcerada [9]. Não só pela possibilidade de redução da pena, através do instituto da remição, mas também pela simples passagem do tempo, pela fuga da realidade imposta. Por essa razão, pesquisadores, após analisarem o instituto do trabalho prisional in loco, como Hassen, afirmam que: “o trabalho só é melhor, para os presos, do que o ócio. (…) não é o trabalho em si que tanto atrai os presos, mas o que proporciona e ao que ele se põe como alternativa, isto é, à ociosidade aos perigos das galerias”.[10]
Entende-se, assim, que o trabalho prisional deve ser, em primeiro lugar, garantido a todos que tenham interesse; afinal, trata-se, antes de tudo, de um direito. Em seguida, deve ser ampliado; garantindo uma gama maior de oportunidades e modalidades de labor. Deve, ainda, ser garantido aos presos trabalhadores remuneração justa e proporcional pelo labor praticado. Dados do Relipen revelam que mais da metade dos presos que trabalham não recebem nenhuma remuneração pela atividade. Por fim, defende-se que instituto da remição precisa ser expandido efetiva e amplamente para outras formas além da educação e do trabalho, consagrando também as modalidades de leitura, cultura, esporte, cuidado e formas contemporâneas de compreensão do trabalho.
[3] MATOS, Erica do Amaral. Cárcere e trabalho: um diálogo entre a sociologia do trabalho, o sistema de penas e a execução penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 139.
[4] AMARAL, Cláudio do Prado, UDE, Walter. Remição pelo lazer e cultura. Boletim do IBCCRIM, vol. 266, Jan/2015.
[7] BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
[8] BARROS, Carmen Silvia de Moraes. A individualização da pena na execução penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 184/185.
[9] MATOS, Erica do Amaral. Cárcere e trabalho: um diálogo entre a sociologia do trabalho, o sistema de penas e a execução penal. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 172/183.
[10] HASSEN, Maria de Nazareth Agra. O trabalho e os dias: ensaio antropológico sobre trabalho, crime e prisão. Porto Alegre: Tomo Editorial, 1999, p. 191/192. No mesmo sentido, BRANT, Vinicius Caldeira. O trabalho encarcerado. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 113.
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