2 de julho de 2024, 6h03
Precisou ser constatada a exposição de crianças em condições reprováveis por anos e anos para que isso se tornasse efetivamente uma questão debatida, com mais espaço na sociedade e capacidade de ensejar o reconhecimento de direitos.
Os primeiros passos internacionais surgiram com a criação da organização não-governamental Save the Children para arrecadar fundos e prestar apoio e proteção aos menores vítimas da 1ª Guerra Mundial. Não demorou muito para a Sociedade das Nações Unidas criar um Comitê de Proteção da Infância. Em 1924, a Liga das Nações cria a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, um dos maiores marcos de reconhecimento dos direitos de crianças e adolescentes.
Nesta linha, considerando as mazelas da 2ª Guerra Mundial, a ONU (Organização das Nações Unidas) criou o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Embora tenha sido criado nesse período com fim específico de ajudar os menores vitimados pela guerra, o fundo foi ampliado, tornando-se uma das principais instituições de proteção às crianças pelo mundo inteiro.
Em continuidade, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, foram incluídos os direitos das crianças e dos adolescentes, consagrando, pela primeira vez, o conceito de criança como “todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável, a maioridade seja alcançada antes”.
Especificamente no Brasil, chegou-se a ter o Código de Menores (Lei 6.697/79). Todavia, o documento não representou grande avanço, pois, segundo Custódio (2009), reduziu a criança à condição de incapaz, violando e restringindo seus direitos mais elementares.
Felizmente, em 1989 o Brasil adotou a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, concebida ante a necessidade de assegurar proteção aos infantes, permitindo a intervenção da comunidade internacional e obrigando os Estados que a assinaram a tomarem todas as medidas administrativas e judiciais para implementar a proteção à criança e ao adolescente.
Com isso, foram reconhecidas a individualidade e a particularidade das crianças enquanto seres humanos, com seus respectivos direitos e proteções decorrentes de sua condição de desenvolvimento.
Mais que isso, por meio do artigo 12, 1 e 2, restou consolidado o compromisso dos estados partes em assegurar à criança capacitada o direito de expressar suas opiniões em todos os assuntos em que for relacionada, proporcionando às crianças e aos adolescentes a oportunidade de serem ouvidos em processos judiciais ou administrativos.
Como forma de implementar os pilares internacionais e constitucionais, foi promulgada a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma das grandes conquistas desse diploma, além de substituir o Código de Menores, foi consagrar a doutrina da proteção integral.
Neste mesmo sentido, foi sacramentado o conceito de criança e adolescente — “considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos” —, assegurando aos mesmos o direito de serem ouvidos.
Lei 13.431/2017
Antes de a legislação prever especificamente a escuta especializada e o depoimento especial das crianças e adolescentes, o Poder Judiciário, tendo em vista o contato frequente com as situações como divórcios e crimes com vítimas menores, tentou organizar, ainda que minimamente, formas de tornar o ambiente em que a criança seria ouvida mais amigável.
Há 20 anos, o “depoimento sem dano” foi concebido pelo desembargador José Antônio Daltoé Cezar. À época, o magistrado responsável pela Vara de Infância e Juventude em Porto Alegre reparou que a vítima menor ficava no mesmo ambiente da audiência, presenciando todos os embates, ouvindo as perguntas sem linguagem adequada, tornando a prova mais difícil ser colhida e aumentando as chances de revitimização. Surgiu, então, a ideia de gravar o depoimento e afastar a vítima daquele ambiente, assim como ouvi-la com auxílio de psicólogos.
Os magistrados começaram a implementar e perceber os efeitos positivos dessa nova dinâmica, a ponto de o Conselho Nacional da Magistratura promover a recomendação 33/2010 para que todos os Tribunais de Justiça instalassem salas adaptadas com equipamento audiovisual para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Alguns anos depois, em 2014, também foi determinada, por meio do provimento 36/2014, a adoção de providências a respeito da falta de equipes interdisciplinares em todas as varas com competência exclusiva ou cumulativa na área da infância.
Tardiamente, no ano de 2017, foi promulgada a Lei 13.431, regulamentando uma espécie de microssistema de normas para a realização de escuta com especial intuito de dar voz aos menores, mas, ao mesmo tempo, protegê-los no curso da investigação e processo da vitimização e violência institucional.
O artigo 7º da Lei prevê a escuta especializada, um procedimento de entrevista realizado por integrantes da rede de proteção, quais sejam; escolas, conselhos tutelares, assistência social e até mesmo órgãos de segurança pública. Nessa entrevista, apura-se possível violência contra a criança ou adolescente e busca-se a proteção e o cuidado com a vítima, com utilização de mecanismos capazes de implementar medidas necessárias para o resguardo da vítima.
Diferencia-se do depoimento especial, previsto no artigo 8º do mesmo diploma, pois não é considerado um método de colheita de prova testemunhal, embora possa assumir o contorno de prova pericial. Ademais, não exige um rito específico.
O depoimento especial, por sua vez, é o método preferencial para a coleta da prova testemunhal de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Sua realização pode ser em fase de investigação, por meio de produção antecipada de provas, ou durante a ação penal. Neste último caso, o ato deve ser necessariamente transmitido em tempo real para a sala de audiência.
O artigo 12 da Lei 13.431/2017 prevê o procedimento a ser adotado, ressalvando a necessidade de profissionais especializados, esclarecimentos ao depoente, proibição da leitura da denúncia ou outras peças processuais, adaptação das perguntas a uma linguagem de melhor compreensão da criança ou adolescente e gravação do depoimento, que não deve ser repetido.
Embora a lei tenha consagrado determinados pilares do procedimento, não especificou qual protocolo deve ser adotado, razão pela qual coube à Resolução 299/2019 determinar a utilização do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense como referência metodológica para a tomada do depoimento especial.
Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense
A saída encontrada para suprir a lacuna na legislação — que muito embora determinasse a implementação do depoimento especial, calou-se com relação ao seu método de aplicação — foi proposta pelo Conselho Nacional de Justiça que, por meio da Resolução 299/2019, trouxe orientações específicas sobre o tema.
Questões procedimentais inerentes, como a arquitetura das salas em que se toma o depoimento especial, a capacitação dos magistrados para acompanhamento do ato e o aproveitamento dos profissionais especializados que compõem a equipe técnica dos Tribunais de Justiça foram de antemão resolvidas.
Aprofundando a leitura do documento, depara-se com a especificação do Protocolo de Entrevista Forense (PBEF) como baliza para a realização do depoimento especial. É o que passaremos a discutir.
Em que pesem os inúmeros protocolos disponíveis para orientação de entrevistas semiestruturadas envolvendo a escuta protegida de crianças e adolescentes envolvidas em situação de violência, o Brasil apontou para a predileção do referido protocolo, até para fins de uniformização do procedimento por tribunais de todos os estados.
O documento formalizado no ano de 2020 pelo Instituto Childhood Brasil, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), representa mais uma camada regulatória do tema.
Já nas primeiras páginas de apresentação, o PBEF se autodenomina como um “método de entrevista semiestruturado, flexível e adaptável”, que teve como parâmetros de estudo o método adotado pelos Estados Unidos para entrevista forense de crianças e adolescentes, com as necessárias ressalvas com relação às diferenças culturais de cada país. (PBEF, 2020).
Suas diretrizes estão fixadas em dois estágios, que por sua vez subdividem-se em mais algumas etapas que vão desde o momento anterior à tomada do depoimento, com a preparação da criança ou adolescente conduzida pelo profissional capacitado, e caminha até a concretização do ato, visando à não revitimização, fator primordial quando se trata do assunto.
Em linhas gerais, o primeiro estágio tem por definição uma aproximação inicial entre o entrevistador e o entrevistado. Seu objetivo é tornar o ambiente mais acolhedor à criança ou adolescente, ganhando a confiança necessária para a melhor condução dos trabalhos.
Segundo as diretrizes do protocolo, esta primeira etapa não será gravada e pode inclusive ser realizada em dia diverso da efetiva tomada do depoimento especial. O profissional deverá — por meio de linguagem adequada — apresentar-se e esclarecer o objetivo dos encontros que estão por vir, sempre norteando-se pela verdade.
Por meio da conversa inaugural, o entrevistador obtém informações básicas sobre a criança ou adolescente, como sua personalidade, seus gostos e preferências, relações de amizade, estrutura familiar que o rodeia e possíveis entraves neste sentido.
Os elementos colhidos nessa conversa são de grande valia, pois dão subsídio ao profissional para a condução da próxima etapa, podendo valer-se de assuntos diversos de interesse do menor, para alcançar os pontos de abordagem necessários.
Por outro lado, o conhecimento sobre a existência de temas sensíveis àquele entrevistado indica a necessidade de cautela e maior presteza na condução das perguntas futuras.
É também nesse primeiro estágio que se identifica o nível de compreensão do entrevistado sobre a violência ocorrida, o grau de desenvolvimento intelectual e cognitivo de acordo com a idade e demais limitações que possam aparecer.
A etapa preliminar servirá para instruir a criança ou adolescente sobre as diretrizes do depoimento a ser colhido, demonstrando — sempre por meio da linguagem correlata — o grau de seriedade da entrevista. Neste ponto, o expert deve ser assertivo sobre a fidedignidade das alegações, estimulando o entrevistado a manifestar-se sempre que não compreender o questionamento, ou ainda quando houver lapso memorial — muito recorrente até certa idade.
Ao final do primeiro estágio, espera-se que ambas as partes, entrevistador e entrevistado, criem um vínculo mínimo de interação, simpatia e confiança mútua, garantindo à criança a espontaneidade e desinibição necessárias para relatar o evento.
Iniciado o segundo estágio, adentrar-se-á ao tema propriamente dito, qual seja, a violência ocorrida.
O ponto de partida é deixar que o menor fale livremente sobre o tema, à sua própria maneira. Para isso, deve o entrevistador utilizar-se de perguntas abertas, evitando afunilar muito o tema. O método garante envergadura pois, ao mesmo tempo que respeita as limitações do entrevistado, evita o direcionamento inicial a respostas enviesadas.
Somente após a primeira exposição é que o profissional passará a coletar informações faltantes, por meio de questionamentos mais específicos. Neste ponto, o protocolo traz outras recomendações importantes a serem observadas.
A título de exemplo, deve-se evitar perguntas diretas que possam ser respondidas meramente pela afirmativa ou negativa da criança ou adolescente e, ainda, o entrevistador deve auxiliar o entrevistado no entendimento da pergunta, alterando a estrutura da frase quando perceber a dificuldade de compreensão.
Outro ponto de destaque no procedimento diz respeito à estrutura física do local em que se realiza o procedimento. Uma vez que a entrevista se realiza em local separado dos demais participantes — juiz, membro do Ministério Público, acusado e defensor —, o ato deverá ser transmitido em tempo real para a sala de audiência, possibilitando que as partes elaborem perguntas, que serão replicadas pelo próprio entrevistador.
Certa problemática pode se apresentar neste cenário, pelo confronto entre as pretensões do questionamento feito pela parte e a formulação da pergunta pelo entrevistador. Há inequívoca dificuldade na conversão de questionamentos jurídicos à linguagem infantil, o que por vezes pode dificultar o deslinde dos fatos.
Superada a inquirição, ao final da etapa, espera-se conseguir chegar em uma das seguintes hipóteses: a violência não foi revelada pela criança; a criança revela que não houve violência; a criança revela a violência, apesar de relutante; a criança nega a violência.
Capacitação de profissionais para depoimento especial
O debate envolvendo a competência dos profissionais para tomada do depoimento especial antecede a própria Lei 13.431/2017, que regulamentou ordinariamente o procedimento.
O atraso na regulamentação do tema — que somente de deu efetivamente em 2018, após a entrada em vigor da legislação — obrigou os tribunais brasileiros durante longos anos anteriores a adotarem procedimentos próprios para a escuta especializada.
A diversificação nos métodos de aplicação da tomada do depoimento de crianças e adolescentes na esfera criminal não só causou insegurança jurídica às partes envolvidas nas ações penais, mas também grande alvoroço aos profissionais responsáveis pelo procedimento.
Em sondagem, é possível constatar que o tema é discutido pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), ao menos desde o ano de 2009 quando, por meio da Resolução 554, se colocou contrário à execução dos trabalhos de inquirição das vítimas crianças e adolescentes no processo judicial, por profissionais da área.
O principal argumento encontrado pelo Conselho fazia referência à própria Lei 8.662/93, que dispõe sobre o ofício da assistência social, dando parâmetros de atuação que, por sua vez, não se enquadravam aos parâmetros da entrevista forense.
No ano seguinte, o Conselho Federal de Psicologia publicou Resolução 10/2010, em sentido similar ao CFESS, e vedou que seus profissionais atuassem como inquiridores de crianças e adolescentes em situação de violência, por não se enquadrar nos preceitos da Lei 4.119/62, que regulamenta a profissão.
Em que pese a objeção dos Órgãos, em novembro daquele mesmo ano o Conselho Nacional de Justiça proferiu Recomendação 33/2010, visando à criação de serviços especializados nas respectivas varas dos tribunais de todo o País, para a tomada do depoimento especial — muito embora já estivesse ocorrendo na prática.
Mais adiante, em abril de 2012, o Ministério Público interpôs Ação Civil Pública (ACP) 562984 (0004766-50.2012.4.05.8100) perante a 1ª Vara da Justiça Federal do Ceará, contra os respectivos Conselhos Federais de Serviço Social e de Psicologia, com a finalidade de anular as recomendações trazidas pelos órgãos de regulamentação interna que impediam a atuação dos profissionais.
Um ano depois seria proferida, naqueles autos, sentença pelo juiz Luís Praxedes Vieira da Silva, julgando procedente o pedido autorial para determinar em todo o País a suspensão definitiva das Resoluções 10/2010 e 554/2009. A sentença foi confirmada em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região.
A promulgação da Lei 13.431/2017 deixou o tema mais uma vez em evidência ao estabelecer que o depoimento especial deveria ser realizado por profissionais capacitados conveniados ao respectivo tribunal de seu estado.
De lá para cá, inúmeras foram as manifestações proferidas pelos Conselhos Federais de Serviço Social e Psicologia, colocando-se contra a atuação nas demandas penais.
Os motivos de insatisfação expostos pelos referidos profissionais fazem menção às suas reais aptidões e funções do exercício, que estão interligadas à escuta da criança e do adolescente sob o viés psicológico e social, e não sob o viés da produção de prova.
No que tange especificamente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, em maio de 2018 publicou-se o Provimento 17/2018, de assinatura do corregedor-geral da Justiça, reafirmando mais uma vez o entendimento sobre a possibilidade de atuação de psicólogos e assistentes sociais do procedimento.
No mesmo ano, instaurou-se, por iniciativa da Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo, Procedimento de Controle Administrativo (PCA) 0004543-46.2018.2.00.0000, buscando anular o provimento mencionado. Mais uma vez, a batalha restou vencida pelo Poder Judiciário que, por meio do julgamento ocorrido em dezembro de 2019, sob a presidência do ministro Dias Toffoli, julgou improcedente o pleito.
Buscando traçar uma solução e reafirmar sua posição, em novembro de 2021 a Corregedoria Geral da Justiça, em parceria com a Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu nova recomendação às equipes técnicas para fins de capacitá-las, deixando claro que “A escuta especializada não é atribuição das equipes técnicas do Poder Judiciário”.
A recentíssima e acalorada discussão envolvendo os Conselhos Federais das categorias profissionais e o Judiciário evidencia a problemática em torno de quem seria efetivamente responsável e qualificado pela inquirição.
Afinal, se por um lado os serviços de apoio aos tribunais não se entendem competentes para realizar seus trabalhos sob o prisma judicial, por outro, os servidores judiciários também não teriam capacitação técnica para conduzir entrevista com crianças e adolescentes em situação de violência, sem revitimizá-las.
Não se pode ignorar que a maneira e as técnicas utilizadas para entrevistar as crianças e adolescentes são de suma importância para a qualidade da prova testemunhal, afinal, suas lembranças podem sofrer interferências e até mesmo falsificações.
A interposição entre o profissional qualificado e os operadores do direito nessa dinâmica pode influir sobremaneira no resultado, desta forma, é imprescindível que se assegure à defesa prévio conhecimento sobre o procedimento, incluindo a qualificação do profissional, além da possibilidade de indicar assistente técnico que possa participar do ato e argumentar sobre a técnica utilizada.
Ressalvados todos os aspectos necessários à garantia do devido processo legal, é possível concluir pela necessidade de cautela ao se tratar do tema, que está longe de ser emoldado, e da importante promoção, por parte dos órgãos envolvidos, de novas discussões que possam dar mais segurança aos profissionais envolvidos na colheita de depoimentos envolvendo menores e adolescentes.
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