Em julho de 2005, o advogado aposentado Davi Tulman pediu para sua mulher fazer uma braciola (prato típico da Itália, conhecido no Brasil como bife a rolê) e chamou seu filho para almoçar. Quando, no meio da refeição, ele morreu de embolia pulmonar, na frente dos dois, o processo milionário do qual era parte desde 1995 foi "herdado" pela mulher e pelos filhos. Hoje, 12 anos depois, eles ainda aguardam um desfecho do caso.
Davi é um entre dezenas de aposentados do banco Itaú que aguarda receber por uma dívida que vem se arrastando judicialmente desde a década de 1990. À época, eles haviam aderido a um plano de complemento de previdência oferecido pelo empregador. No tempo da hiperinflação, o reajuste era semestral.
Foi quando Gustavo Franco, Fernando Henrique Cardoso e companhia lançaram o Plano Real. E uma das medidas para deter a temida indexação da economia era a regra de que os contratos no Brasil deveriam ter reajustes anuais. Nesse momento, quando o Itaú foi mudar a dinâmica de reajuste dos contratos dos aposentados, ignorou os meses de abril, maio e junho de 1994, que deveriam ter sido reajustados
Os aposentados foram à Justiça pedir que o reajuste continuasse semestral e que o valor fosse ajustado levando em conta aqueles três meses.
O processo começou a correr em 1995 na Justiça do Trabalho de São Paulo. Em 2005, o Tribunal Superior do Trabalho definiu que o reajuste não deveria ser semestral, mas que era preciso levar em conta aqueles três meses. Definiu que o Itaú deveria acertar em cascata tudo que foi devido a partir daquela falta de reajuste, calculada em 214%.
O Itaú levou o caso para o Supremo Tribunal Federal, que, em 2013, confirmou a decisão do TST.
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Mesmo assim, ainda não chegou o momento da execução. A instituição depositou o valor em juízo, mas segue recorrendo. Nos últimos episódios judiciais da história, o banco foi condenado duas vezes por ato atentatória à dignidade da Justiça.
Caixeiro-viajante
Davi Tulmann foi o único de sete irmãos que fez faculdade. Ele cursou Direito no Largo São Francisco, na Universidade de São Paulo. Ainda quando estudava, teve a oportunidade de estagiar em um escritório que estava começando. Porém, achou que não seria uma boa opção para sua carreira e não atendeu ao chamado do Pinheiro Neto.
Apareceu a oportunidade de trabalhar no departamento jurídico do Banco das Américas, que mais tarde se tornaria o Itaú. “Meu pai foi praticamente um caixeiro-viajante, indo para cidades de todo o Brasil para acompanhar o processo jurídico e burocrático de se abrir uma agência”, relembra o filho Celso Tullman.
Ao morrer, em 2005, deixou mulher e dois filhos. A família aguarda para receber mais de um R$ 1 milhão a que, segundo as decisões judiciais, teriam direito. A mãe de seus herdeiros hoje vive com uma pensão do INSS de menos de R$ 2 mil, com os quais paga plano de saúde, medicamentos e alimentação. O condomínio de seu apartamento é pago pelos filhos.
“Minha mãe outro dia me disse: ‘Se eu ganhar esse dinheiro eu vou para a Europa? Não. Vou comprar um carro? Não. Eu não tenho mais condições de aproveitar ele’. Ela tem a esperança que eu e meu irmão possamos aproveitar, mas eu já me pergunto se talvez vá ser o caso de apenas os meus filhos poderem desfrutar de verdade”, indaga Celso.
Planos econômicos
Após perder em 2013 no STF, o Itáu recorreu da execução da dívida. O argumento é de que o pedido dos aposentados na verdade é de que eles teriam um direito a um reajuste salarial que não foi dado – e este adicional refletiria nas aposentadorias, que, no plano do banco, eram calculadas conforme os salários de cada um.
A defesa do diz que este caso está inserido no contexto dos planos econômicos. Assim, seria necessário primeiro resolver esta questão — que aguarda decisão do Supremo — e depois analisar os casos isolados.
“O Itaú Unibanco esclarece que a discussão processual prossegue atualmente apenas porque os cálculos do processo não observam a jurisprudência pacífica do TST. Ressalta-se que os benefícios mensais de complementação de aposentadoria estão sendo regularmente pagos aos beneficiários”, disse o banco à reportagem da ConJur.
Diante desse novo argumento do Itaú, a 59ª Vara do Trabalho de São Paulo e a 6ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região já disseram que o pagamento da verba previdenciária nada tem a ver com os planos econômicos e condenaram o banco por ato atentatório contra a dignidade da Justiça.
Caso herdado
Uma das ações do caso já chegou novamente ao TST. O advogado Gustavo Granadeiro cuida das ações de 30 famílias que esperam o fim do caso. Ele é o defensor das causas da Associação dos Funcionários Aposentados do Conglomerado Itaú (Afaci).
Assim como no caso da família Tulmann, o advogado também herdou seu envolvimento no caso. Seu avô, já morto, elaborou as primeiras petições do caso, em 1995.
Granadeiro se prepara para ir até Brasília, despachar com os ministros do TST e mostrar sua versão – que é a de que a execução dessa dívida não tem relação com planos econômicos.
“Nunca vi um caso como este, é surreal. Ainda se fosse civil, mas é trabalhista. Foram quase 20 anos para que enfim o STF decidisse. E após o trânsito em julgado, o Itaú conseguiu dar um novo jeito de não pagar. Imagino que eles vão levar isso novamente ao STF e não tem previsão de quando essas pessoas vão receber”, reclama Granadeiro.
Absurdos e ardis
Ao analisar o mais recente recurso do Itaú, o desembargador Rafael Pugliese Ribeiro, do TRT-2, afirmou que o pedido de ligar o caso ao julgamento dos planos econômicos “constitui ardil e meio artificioso para se opor maliciosamente à execução, configurando ato atentatório à dignidade da Justiça”.
A ação em questão envolve a aposentadoria de quatro famílias, entre elas a Tulmann. São mais de R$ 14 milhões devidos a essas pessoas e a sentença foi de multa de 20%, ou seja, R$ 2,8 milhões. O caso chega agora ao TST valendo quase R$ 17 milhões.
Em outro caso, o juiz Farley Roberto Rodrigues de Carvalho, da 59ª Vara do Trabalho de São Paulo, classificou as alegações do Itaú como absurdas. Para ele, o recurso do banco é uma maneira de tentar afastar a condenação que já transitou em julgado.
“O presente caso não se trata de diferenças salariais decorrentes de planos econômicos”, afirma o juiz em decisão de outubro deste ano, alegando que “trata-se de recomposição de complementação de aposentadoria”.
O advogado Gustavo Granadeiro calcula que o valor total dos casos que defende deve chegar a R$ 30 milhões e faz questão de lembrar à reportagem da ConJur que o lucro do banco em 2016 foi de R$ 22 bilhões.
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