O dia a dia e as histórias da Fundação Casa, antiga Febem
Atualmente, há 140 unidades, com orçamento de 824 milhões de reais, 80% a mais que em 2005
*O nome dos menores entrevistados foi trocado
Menores encapuzados liderando motins e queimando colchões em cima de telhados. Rebeliões sangrentas que tomavam conta do noticiário com uma frequência assustadora. Foi nesse contexto de violência institucionalizada que a procuradora paulistana Berenice Gianella assumiu a presidência da Febem, atual Fundação Casa, no dia 7 de junho de 2005. Só no primeiro semestre daquele ano, menores comandaram 35 rebeliões — uma média de quase seis por mês. Muitas vezes, a Tropa de Choque da Polícia Militar era acionada para conter a baderna. Parecia que o estado perdia a batalha pela recuperação de jovens infratores.
Então secretária adjunta da Secretaria de Administração Penitenciária, Berenice foi escalada por Geraldo Alckmin, em seu segundo mandato como governador, para capitanear o projeto de substituir os megacomplexos por unidades menores. Ela consultou apenas sua mãe e as duas irmãs sobre a possibilidade de ingressar naquela universidade de degeneração. “Os amigos falaram que seria uma loucura aceitar o cargo e que eu corria o risco de enterrar a minha carreira.” Não enterrou.
Dos cerca de 6.000 internos da época, 82% ficavam confinados na capital, em megacomplexos como o do Tatuapé, da Vila Maria e da Raposo Tavares, que abrigavam, cada um, até 1.800 jovens. “A meta era construir edifícios pequenos, com capacidade para até sessenta garotos, em várias cidades do estado”, conta Berenice. Com medo de rebeliões e possíveis fugas, muitos prefeitos se opuseram à ideia. “Certa vez, precisei sair de uma cidade escoltada porque os moradores eram contra nos instalarmos lá.” Mesmo a contragosto, o projeto saiu do papel. De 2005 para cá, a instituição passou de 88 para 140 unidades — outras nove foram prometidas para o primeiro semestre deste ano.
O custo da descentralização é alto. O orçamento da Fundação Casa para 2011 é de 824 milhões de reais, 80% a mais que em 2005. Atualmente, cada interno custa 3.709 reais por mês aos cofres públicos, contra cerca de 1.000 reais gastos com um detento do sistema penitenciário. O valor contempla, entre outras coisas, oficinas de arte e dança e cursos profissionalizantes, como de panificação. Os jovens podem sair aptos para trabalhar e mudar o rumo da pesada história que carregaram até ali. Ou seja, têm uma segunda chance.
A rotina é intensa. Os internos são despertados às 6 horas. Começam então a executar as tarefas para as quais foram escalados em rodízios que mudam periodicamente. Limpam quartos e banheiros, ajudam a preparar e a servir refeições — são seis por dia. Pela manhã e à tarde, assistem às aulas em que aprendem o mesmo conteúdo oferecido na rede pública de ensino. As atividades só cessam às 22 horas, quando eles vão dormir.
São monitorados por 11.000 funcionários, que se distribuem em 140 unidades nos três turnos. Reeducar e punir aqueles que lançavam mão da força para impor respeito foi outro capítulo da reestruturação da Fundação Casa. “O primeiro passo foi apurar com seriedade as denúncias de maus-tratos”, diz o chefe da corregedoria, Jadir Pires de Borba.
Em 2005, 48% das sindicâncias foram encerradas por falta de provas. No ano passado, esse número caiu para 7,8% — a corregedoria diz não ter o número total de denúncias. “Precisávamos resgatar nossa credibilidade perante o Ministério Público e a sociedade.” Nos últimos cinco anos, ocorreram 293 demissões por justa causa. Inspeções às unidades de todo o estado foram incorporadas à rotina.
A prática era comum aos promotores de Infância e Juventude do Ministério Público, que apareciam de surpresa para verificar como os jovens estavam sendo tratados. “Muito do que melhorou foi em razão da pressão que fizemos”, acredita o promotor Thales Cezar de Oliveira, da 2ª Vara da Infância e Juventude da capital.
Em 1998, em uma visita noturna, encontraram dezenas de internos amontoados no chão do refeitório dormindo de valete, ou seja, deitados de lado e alternando pernas e cabeça. Mães de garotos castigados por funcionários pediam à equipe que vistoriasse seus filhos. Não raro, os promotores os encontravam cobertos de marcas de cassetete, queimaduras e cortes.
O caminho de entrada para a Fundação Casa costumam ser as Varas da Infância e Juventude. Elas recebem desde menores que se meteram em confusões típicas da adolescência, como brigas na porta da escola, até aqueles acusados de assassinato. Todos são fichados, em históricos que se acumulam até a maioridade. Dependendo do ocorrido, os infratores podem ser perdoados e liberados. Se encaminhados para a fundação, podem ficar lá, no máximo, por três anos.
“É preciso separar o joio do trigo: os que estão na bandidagem e os que agiram por rebeldia”, afirma o promotor Oliveira. Ele conta que há os que chegam constrangidos e os que se orgulham de parecer perigosos. Quando o jovem abusa de gírias (“Fabiana” é cocaína e “socar no bigode” é roubar, por exemplo) e do gestual típico da criminalidade, o promotor não economiza franqueza para alertar a família.
“Sou como médico, não posso ter meias palavras. Tenho de dizer aos pais que o filho deles virou infrator.” Nem sempre ele tem essa oportunidade, já que a maioria dos jovens vive fora de casa ou tem pais com uma folha corrida muito pior que a deles. Em todos os casos, o histórico criminal zera quando o interno chega à maioridade. O poder público não sabe quantos dos presos no sistema penitenciário são egressos da Fundação Casa.
Os delitos mais comuns entre os infratores e criminosos com menos de 18 anos são tráfico de droga, roubo e furto, que juntos representam 80% dos casos. “Muitos meninos traficam para sustentar o próprio vício em crack”, diz Ivonete Gonçalves de Oliveira, diretora de uma Regional Metropolitana. Ela cuida das principais unidades de internação provisória do estado, que ficam no Brás. É a segunda etapa, depois da Vara da Infância. Em tese, os menores aguardariam ali até 45 dias à espera da sentença de um juiz — alguns, no entanto, chegam a ficar até três meses.
Funcionária concursada da entidade há 29 anos, ela já viu passar por lá casos de grande repercussão. Um deles em novembro de 2003, quando um monstro adolescente de 16 anos conhecido como “Champinha” torturou, estuprou e esfaqueou Liana Friedenbach, da mesma idade, depois de ter assassinado a tiros o namorado dela, de 19. Esse criminoso está hoje internado em uma unidade psiquiátrica do estado.
O caso mais recente foi o ataque por suspeita de homofobia na Avenida Paulista, em novembro de 2010. Um grupo de quatro adolescentes e um adulto agrediu o estudante Luis Alberto Betonio, de 23 anos. “Ninguém vem parar aqui por empinar pipa ou brincar de bolinha de gude”, ironiza. Há outros episódios chocantes que não tiveram grande repercussão.
Natural de Embu-Guaçu, Cristiano Gomes entrou para a Fundação Casa aos 12 anos, depois de filmar dois amigos fazendo sexo à força com um menino. Não bastasse isso, as cenas da barbárie foram divulgadas na internet. Caçula de uma família de seis filhos, ele destoa fisicamente do restante dos internos: é extremamente franzino e não perdeu o olhar ingênuo típico da infância.
Quando ingressa na Fundação Casa, o adolescente passa por um diagnóstico. O objetivo é verificar condições de saúde e analisar seu histórico escolar. Muitos chegam analfabetos. “Recebemos uma garota que não sabia usar talher e comia com as mãos”, conta Maria Cristina Santos de Oliveira, coordenadora de equipe da Mooca, a “senhora Cristina”. Os internos são instruídos a chamar funcionários e visitantes de “senhor” e “senhora”.
Cada jovem é avaliado separadamente, e os dependentes de droga são recebidos por um psiquiatra. Alguns têm de tomar ansiolíticos e antidepressivos para evitar as crises de abstinência. Amassados, os remédios são misturados a água, que deve ser tomada na frente de um monitor. A prática de dar-lhes os próprios comprimidos se mostrou falha. Alguns garotos escondiam a medicação na boca. “Eles a trituravam e inalavam por pensar que teria o efeito da cocaína”, conta Marcelo Vilela, enfermeiro responsável pela unidade de Osasco.
Para as adolescentes, a situação pode ficar mais delicada, já que algumas descobrem estar grávidas nos exames para a internação. Na unidade da Mooca, para onde são transferidas quando completam oito meses de gestação, há oito jovens mães e outras quatro prestes a dar à luz. No intervalo das atividades, elas ficam com o bebê para amamentar, dar banho e trocar fraldas. Fazem roupinhas de crochê enquanto ele dorme. Aprendem tudo com as funcionárias, acostumadas também a domar a agressividade das que não desejavam ser mãe. Na maioria das vezes, elas são usuárias de drogas e não fizeram nenhum exame pré-natal. Só podem amamentar após seu leite ser examinado para comprovar que não contém substâncias tóxicas.
As 342 garotas (5% do total de internos) às vezes dão mais trabalho que os rapazes. No ano passado, foi preciso que a tropa de apoio da fundação entrasse na unidade para conter uma baderna que poderia resultar em rebelião. Medidas duras são parte importante da educação desses jovens. “Por isso, posso dizer que são meus filhos”, afirma a presidente Berenice Gianella. “O processo de reabilitação requer tempo, firmeza e atenção.”
DA CRACOLÂNDIA À SALA DE AULA
Jennifer tinha 8 anos quando a mãe morreu, deitada ao seu lado, de overdose de crack. “Ela estremeceu, eu chamei meu irmão, mas já era tarde.” Anos antes, seu pai havia sido assassinado por causa de uma dívida com traficantes. Órfãos, Jennifer e seus irmãos foram morar com os avós. Por influência de um tio, a garota foi apresentada ao crack aos 10 anos. Não demorou muito para que passasse a viver na rua.
Sozinha, envolveu-se com um cafetão 35 anos mais velho, que lhe deu um lugar para morar. “Quando eu chegava em casa, havia sempre dois ou três homens me esperando”, lembra. “Vender meu corpo foi a maneira que encontramos para comprar droga.” Há três anos, acabou presa pela primeira vez, por tráfico. Hoje, aos 18, está aprendendo a ler e a escrever. “Meu avô teria orgulho de mim, sempre quis que eu estudasse”, diz. “Mas ele não fala mais comigo. Acho que por vergonha de eu estar aqui.”
ELE ESTRANGULOU A EX-NAMORADA GRÁVIDA
Em geral, a permanência dos adolescentes na Fundação Casa é de sete meses. Com 20 anos de idade, Otávio Dias — liberado na semana passada — ficou lá quase três anos, período máximo de reclusão permitido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Ao contrário da maioria de seus colegas, diz nunca ter experimentado droga, traficado ou roubado. Ele ficou recluso desde março de 2008 por ter matado sua ex-namorada por estrangulamento. Então grávida de três meses, a adolescente de 16 anos não cedeu aos apelos do rapaz para que abortasse — ele já estava em outro relacionamento.
Na ex-Febem, Dias aprendeu marcenaria e decidiu ingressar em uma faculdade. Ele cursa o 3º semestre de tecnologia em rede de computadores. Era o único universitário entre os sessenta internos de Fazenda do Carmo, em Itaquera, cuja capacidade é de quarenta jovens. Seus pais pagam uma mensalidade de 565 reais, e o estado deixava à disposição um funcionário para levá-lo e vigiá-lo. “Poucos amigos da classe sabem que fui interno”, conta. “Mesmo para esses, nunca contei minha história real.” Por ter conquistado a confiança da equipe da Fundação Casa, Dias conseguiu algumas regalias. Trocou beijos com uma colega nos corredores e visitou barzinhos. “Não sei se serei perdoado, mas quero ligar para a família da pessoa a quem fiz esse mal para pedir perdão.”
CHEFE DE QUADRILHA AOS 17
A dinâmica do mundo do crime produz rapidamente bandidos experientes. Em apenas três anos, Guilherme Macedo tornou-se chefe de quadrilha. O jovem de 17 anos está em sua terceira passagem pela Fundação Casa. Começou a praticar pequenos roubos aos 14 anos, quando comprou, por 1.300 reais, seu primeiro carro. Era um Fiat 147. Pouco depois, assaltou a mão armada o proprietário de um Fiat Uno. Queria um motor melhor.
Nascido em Jandira, na Grande São Paulo, o rapaz, que faz boas imitações do ex-presidente Lula e do apresentador Silvio Santos, é carismático, tem facilidade com matemática e se diz um ótimo motorista. “Não comecei a roubar para ter o que comer”, conta. Nos assaltos, ficava encarregado do “recolhe”, ou seja, pegar o dinheiro da mão das vítimas ou dos caixas dos estabelecimentos. “Eu era muito eclético”, diz. “Roubava em saída de banco, restaurante, autoescola, casa de manutenção de celular...” Com o montante amealhado — chegava a 2.000 reais por dia —, abriu um depósito de gás. O objetivo era lavar o dinheiro ilícito. Esbanjava em baladas. Chegou a gastar 600 reais em noitadas na boate Love Story, no centro de São Paulo. “Pagava uísque e cocaína para as garotas.”
Matou um rival que, segundo ele, começou a assaltar na mesma área em que atuava. Sincero, não sabe precisar o que o futuro lhe reserva. “Gosto da adrenalina de roubar. Lá fora existem muitas tentações.”
À ESPERA DO BEBÊ
Nem o barrigão de oito meses de gravidez nem as algemas impediram Diana de quebrar mesas, cadeiras e uma janela em um ataque de fúria, ao saber que seria transferida de unidade. Interna de Taipas, ela tinha de ir para a Mooca, onde ficam as jovens prestes a dar à luz ou que acabaram de se tornar mães. Só se acalmou quando foi medicada. Agora, às vésperas do nascimento de Viviane, tudo o que ela deseja é ficar quietinha. Espera, assim, obter autorização do juiz para cuidar de sua filha em casa.
“A droga tirou o que eu tinha de mais precioso, a confiança da minha mãe”, diz a jovem de 18 anos. Nas duas vezes em que ela esteve perto de sair, novos boletins de ocorrência chegaram ao conhecimento do Judiciário: um por roubo e outro por tráfico. Foi detida por assaltar uma joalheria com um bando que incluía amigos e o pai de sua filha. Maior de idade, ele está preso. Diana desconfia que o ex-namorado a tenha trocado por outra moça, que o visita na cadeia. “Sei que ela não é ‘ponte’, é caso dele”, afirma, usando a gíria para informante. “Não quero nem que ele saiba que estou grávida.” Indagada se entrou para o crime por ter se apaixonado por um bandido, Diana é categórica: “Não. Meu negócio era vender droga, roubei para poder comprar mais e revender”.
A NOVA ROTINA FORA DAS GRADES
Um natural de Barueri, outro de São Paulo. Ambos sentenciados por tráfico. Os destinos de Johnny Messias Dias, 20 anos, e Renato dos Santos, 18, se cruzaram na Fundação Casa de Osasco. Detidos por venderem cocaína, maconha e crack, cada um em sua “biqueira” (ponto de comercialização de drogas), eles cumpriram pena durante mais de um ano. Fora do cárcere, afirmam dar passos rumo a uma rotina feita de regras e dentro da legalidade.
Há dois meses, Johnny começou a trabalhar na cozinha de uma pizzaria. “Ainda tenho a sensação de que as pessoas me olham com desconfiança”, diz. Ele credita sua nova fase ao curso de panificação feito na antiga Febem, no total de 160 horas, ministrado por professores do Sesi. Renato está com emprego fixo há dez meses. Em abril do ano passado, descolou seu primeiro trabalho formal como atendente do McDonald’s de um shopping center da Zona Oeste. “Recebi uma promoção três meses depois”, lembra o hoje técnico de qualidade e serviço. “Minha mãe voltou a sentir orgulho de mim.”