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por Paola Bettamio*, Rosa Menezes** e Thaisi Bauer***
O projeto batizado de “Novo Socioeducativo” foi estruturado pela Caixa Econômica Federal, em conjunto com o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia e governos estaduais, em parceria com o UNOPS, o organismo das Nações Unidas especializado em infraestrutura e gestão de projetos. O piloto está sendo implantado em Minas Gerais e Santa Catarina, com a intenção de ser replicado futuramente nas demais unidades federativas.
Esse “novo” modelo tem como ponto central a construção e operação de novos centros socioeducativos por meio da parceria público-privada (PPP), em que a contratação da infraestrutura e serviços ficarão a cargo e desempenho de organizações privadas. O modelo que se apresenta não deixa dúvidas que trata-se, na verdade, de um primeiro passo em sentido à privatização das Unidades de Atendimento Socioeducativo no Brasil, sobretudo das medidas de privação e restrição de liberdade.
De acordo com o portal do Governo de Minas Gerais, a iniciativa desta proposta surgiu com a demanda de aumentar as vagas no sistema socioeducativo, no entanto, de acordo com o Relatório de Inspeção do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), lançado em agosto de 2022, existe um superávit nas unidades de Minas Gerais, ou seja, existem mais unidades de internação que adolescentes para ocupar as mesmas.
O superávit retratado pelo Relatório de Inspeção do MNPCT é confirmado pelos dados do Panorama Socioeducativo – Internação e Semiliberdade, disponibilizados pelo Conselho Nacional do Ministério Público. De acordo com as informações apresentadas pelo Panorama, a ocupação total das 27 unidades socioeducativas do estado de Minas Gerais não chegam nem a 50%. Das 1.189 vagas disponíveis, apenas 585 estão ocupadas. Quando o assunto é semiliberdade no estado, a porcentagem não é muito diferente e fica em torno de 46,73%, mostrando que somente 157 vagas das 336 disponíveis estão ocupadas. Esses números não mentem e mostram que a superlotação é uma realidade distante da atual vivida em Minas Gerais. Então qual seria o verdadeiro interesse por trás deste projeto?
Não podemos esquecer que o caráter das medidas socioeducativas é primordialmente pedagógico, e segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente a medida de internação deve ser aplicada somente em situações excepcionais. Quando incluímos um ente privado dentro desta equação, mudamos totalmente a lógica inicial do caráter excepcional da medida, violando, inclusive, princípios previstos na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, como o da excepcionalidade e brevidade, e o de respeito à condição peculiar de desenvolvimento de adolescentes e jovens, visto que o objetivo do setor privado é o lucro, e este, é acentuado proporcionalmente pela quantidade de adolescentes e/ou de vagas previstas para inserção destes indivíduos em unidades socioeducativas, pelo tempo na internação, pelas condições de execução das medidas ou pela construção de mais unidades socioeducativas. Neste sentido, existe uma incompatibilidade entre a finalidade da medida socioeducativa e o interesse do setor privado.
Portanto, é importante entender que os movimentos que envolvem a cogestão e a PPP seguem uma linha perigosa no sentido da privatização da operação de unidades socioeducativas, sendo uma tentativa de terceirizar as responsabilidades do Estado. A lógica privada tende a transformar o indivíduo que tem sua liberdade privada em mercadoria, ou seja, quanto mais vagas e/ou adolescentes, mais recursos são repassados. Qualquer passo em direção a privatização do sistema socioeducativo apresenta um retrocesso à proteção integral.
Não é de hoje que experiências como estas tentam se infiltrar junto à política da socioeducação. Em Minas Gerais, o poder executivo anunciou um projeto em 2021 de cogestão para 12 unidades socioeducativas do estado por meio de Contrato de Gestão com Organizações Sociais (OS), que ficariam responsáveis pela manutenção e operação do espaço, assim como pela contratação da mão de obra. Essa experiência vista pelos olhos do MNPCT foi negativa, já que diversas violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente foram constatadas.
Além disso, não existe nenhuma pesquisa que comprove que a transferência da gestão para o setor privado acarretaria em economia de gastos, melhorias para as unidades, fortalecimento de vínculos para adolescentes institucionalizados(as) e melhorias nas condições de trabalho para servidores ou agentes. Ao contrário. As experiências narradas, por exemplo, pela Pastoral Carcerária Nacional (PCN) ao tratar do tema em unidades prisionais demonstram que a relação custo/benefício da transferência para o setor privado não foi vantajosa do ponto de vista legal e financeiro, além de ter resultado na ausência de políticas penais para pessoas em privação de liberdade (PNC, 2014, p. 39).
Ressaltamos que é um dever prioritário do Estado garantir a efetividade dos direitos das crianças e adolescentes (Artigo 4º, do ECA). Os interesses privados não podem se sobrepor ao dever de proteção integral de adolescentes e jovens.
*Paola Bettamio é advogada e mestra em Políticas Públicas em Direitos Humanos
**Rosa Menezes é Comunicóloga
***Thaisi Bauer é advogada e especialista em Ciências Penais
(As autoras integram a equipe técnica da Coalizão pela Socioeducação)
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