PM de SP compra 270 mil balas de borracha de lotes que falharam em testes; munições serão substituídas por 'bean bags'
Polícia constatou 'problemas de performance' em balas, que foram recolhidas ou deixaram de ser recebidas. Contrato com fabricante foi suspenso, e estoque da PM acabou. Empresa nega falhas. Corporação comprou emergencialmente 15 mil 'bean bags', sacos com esferas de metal.
Por Kleber Tomaz, g1 SP — São Paulo
À esq., modelo de bala de borracha da Condor que foi suspenso temporariamente pela PM; no centro, a PM usa balas de borracha em protesto de 2014; à dir., cartucho com 'bean bag' que será usado emergencialmente — Foto: Reprodução/ Condor/ Rodrigo Abd/AP / Safariland
Parte das 270 mil balas de borracha que a Polícia Militar (PM) do estado de São Paulo comprou no ano passado da fabricante nacional Condor S/A Indústria Química apresentou falhas durante testes de segurança, precisão e qualidade realizados pela corporação. Todos os lotes dessa munição que tiveram problemas foram recolhidos ou recusados pela corporação. Segundo policiais ouvidos pelo g1, nenhuma dessas balas foi usada em ações da PM.
Resumo
Nesta reportagem você irá ler sobre:
- Mudanças de trajetória e ferimentos: segundo policiais militares ouvidos pelo g1, tiros de balas de borracha da brasileira Condor tiveram desvio de 80 centímetros e perfuração em pessoas acima dos limites permitidos.
- Munições recolhidas e recusadas: 150 mil balas de borracha foram recolhidas e 120 mil acabaram recusadas por causa das falhas.
- GCM usa balas da Condor: Guarda Civil Metropolitana continua usando balas de borracha da empresa na capital paulista.
- 15 mil 'bean bags': como ficou sem balas de borracha no estoque, PM decidiu comprar nova munição que são sacos com bolinhas de metal (sacos de feijão, numa tradução do inglês). O produto é fabricado pela Safariland, dos Estados Unidos, mas foi comprado por intermédio da americana Police Survival LLC.
- Problemas em bombas: agentes da Polícia Militar também disseram que bombas de gás e efeito moral da Condor apresentaram falhas nos testes.
- Especialistas comentam: reportagem ouviu membros do Instituto Sou da Paz e da Defensoria Pública sobre a suspensão do contrato de compra das balas de borracha pela PM.
- O que diz a PM: Corporação informou ao g1 que “constatou problemas de performance” nas balas de borracha.
- O que diz a Condor: fabricante nacional negou falhas, alegou que testes da PM não foram feitos de maneira adequada e que Exército atestou "excelência" do produto.
Segundo policiais militares ouvidos pelo g1 sob a condição de anonimato, foram encontrados problemas graves nos testes feitos pela PM nos elastômeros, nome técnico do produto. Entre eles, principalmente aqueles que levam risco às pessoas, como mudanças acima do permitido na trajetória das balas de borracha durante os disparos. E possíveis ferimentos também ultrapassando a margem desejada.
“A bala de borracha tem demonstrado imprecisão e traumas acima do permitido, o que coloca em risco o agressor”, falou um dos agentes que teve acesso aos resultados dos testes feitos pela Polícia Militar.
Mudanças de trajetória e ferimentos
De acordo com agentes da Polícia Militar, em dos testes de tiro de bala de borracha, a 20 metros de distância do alvo, como é recomendado, verificou-se desvio de até 80 centímetros entre a mira feita pelo policial e o ponto atingido.
Os policiais disseram que seria o mesmo que, numa ação real, atirar abaixo da cintura de um suspeito, mirando nas pernas, como recomenda o fabricante e a própria corporação, mas a bala de borracha subir e atingir o rosto de uma pessoa que tenha 1,60m.
Outra inconformidade verificada nos testes da PM, segundo agentes, é que a bala de borracha dos lotes comprados pode causar ferimento acima do limite permitido - 4,4 centímetros de profundidade. E, dependendo de onde atinja, poderia provocar problemas no coração, em razão do impacto.
“Se é uma pessoa magra que é ferida no peito, pode levar a riscos cardíacos, já que o coração de uma pessoa fica a 4,6 centímetros abaixo da pele”, falou um policial.
Munições recolhidas e recusadas
Apesar de não informar ao g1 quais foram as inconformidades encontradas nas balas de borracha, a PM confirmou oficialmente, por meio de nota, que recolheu 120 mil dessas munições menos letais que tinha adquirido em 2015 e recusou o recebimento de outros 150 mil dos projéteis que a empresa forneceria em junho de 2020.
Todos são de fabricação da Condor, e o modelo é o "Precision - projétil de borracha de precisão", uma espécie de pino.
Segundo o site da fabricante "o cartucho calibre 12 AM-403/P foi desenvolvido para ser utilizado no controle de distúrbios e combate à criminalidade com a finalidade de deter ou dispersar infratores da lei, em alternativa ao uso de munições convencionais. As munições de impacto controlado possuem alto poder de intimidação psicológica, provocam hematomas e fortes dores".
De acordo com a PM, a Condor não atendeu aos pedidos para reparar os problemas ou substituir o produto. A corporação, então, decidiu suspender os contratos de compra que havia feito por licitação.
A PM informou que deixou de pagar o dinheiro do negócio. Só um dos contratos era de mais de R$ 21 milhões. De acordo com fontes do g1, os armazéns da corporação estão sem estoque de balas de borracha desde meados de julho do ano passado. Ainda segundo essas fontes, as tropas não usam mais esse tipo de munição para conter eventuais distúrbios urbanos.
Nos últimos protestos os quais o g1 cobriu, como em frente à Câmara dos Vereadores da cidade de São Paulo, em outubro, não presenciou o uso de bala de borracha pela PM.
Com ferida de uma bala de borracha no peito, homem conversa com policial em meio a confronto no Centro de São Paulo em 2014 — Foto: Dario Oliveira/Código19/Estadão Conteúdo
O artefato é disparado por uma escopeta calibre 12 e costuma ser utilizado por policiais militares contra pessoas suspeitas de ameaçar ou agredir outras, principalmente no contexto de protestos e manifestações populares.
Questionada recentemente pelo g1 sobre a possível falta das balas de borracha, a PM não respondeu. Em julho do ano passado, porém, a corporação havia informado que não usa munições de borracha desde julho de 2020, quando acabou o estoque e não houve reposição.
GCM usa balas da Condor
Entre as forças de segurança que continuam usando balas de borracha na cidade de São Paulo está a Guarda Civil Metropolitana (GCM). A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Segurança Urbana, informou por nota ao g1 que guardas civis metropolitanos utilizam as munições da Condor. O modelo usado pela guarda é o mesmo que a PM encontrou problemas em testes.
Em novembro, durante confronto com servidores municipais em protesto contra a Reforma da Previdência Municipal, a GCM informou que disparou ao menos uma "bala de borracha para dispersar manifestantes alterados que tentaram pular a grade e atiraram pedras contra o prédio da Câmara".
Segundo a administração municipal, a GCM firmou contrato público de mais de R$ 207 mil com a fabricante e recebeu 6.425 munições de elastômero. Ainda de acordo com a prefeitura, a qualidade do produto foi certificada pela própria Condor.
"A certificação de segurança da munição é realizada pela empresa fabricante, que deve ser autorizada para comercializar equipamentos com esta finalidade", informa nota da prefeitura.
A administração também informou que o protocolo do uso da bala de borracha prevê que o disparo em pessoas suspeitas seja feito do peito para baixo. "Os agentes da Guarda Civil Metropolitana são treinados para realizarem disparos seguros, visando uma linha que vai do peito aos membros inferiores, para interromper situações de risco."
Manifestante atingido por bala de borracha disparada por GCM durante protesto na Zona Norte de SP em novembro de 2021 — Foto: Arquivo pessoal
Diferenças: Balas de borracha x Bean bags — Foto: Arte g1
15 mil 'bean bags'
Sem poder contar com as balas de borracha da Condor, a Polícia Militar informou ao g1 que decidiu fazer uma licitação internacional para comprar, em caráter emergencial e de maneira inédita, 15 mil "bean bags", que são sacos com bolinhas de metal (sacos de feijão, numa tradução livre do inglês), um tipo de munição menos letal.
“Diante da necessidade de ter munições de impacto controlado para a Polícia Militar cumprir com segurança e qualidade suas missões constitucionais e pelo fato da empresa fornecedora das munições ser a única no país a produzir tal tipo de material, o Centro de Material Bélico adquiriu, em caráter emergencial, 15.000 bean bags no mercado internacional”, informa o comunicado da corporação.
O produto é fabricado pela Safariland, dos Estados Unidos, e a compra foi intermediada pela Police Survival LLC. A reportagem conversou com Paulo Alexandre Abel, diretor técnico da Police Survival, e, segundo ele, a compra emergencial foi de 20 mil "bean bags", por mais de R$ 635 mil, no final do ano passado.
"Das 20 mil [unidades de 'bean bags'], foram US$ 113.600 o valor total [da compra]", falou o diretor. "Eu sou o representante comercial da Safariland. Eu entreguei [a munição à PM] no começo de 2021."
De acordo com ele, a Police Survival ganhou, em abril deste ano, uma outra licitação internacional para vender mais 70 mil "bean bags" da Safariland à PM. "Foi em torno de US$ 380 mil [cerca de R$ 2,1 milhões]. Até hoje o contrato não foi assinado. Existe aí alguma questão política para a aplicação ou não desse produto."
"Bean bag" é um tipo de munição composto por pequenas esferas de metais, como chumbinho, dentro de saquinhos de kevlar acoplados a cartuchos. Cada um pesa cerca de 40 gramas e é disparado pelo mesmo tipo de arma dos elastômeros. Além da diferença de material em relação à bala de borracha, o "bean bag" é disparado a uma distância menor do alvo: 6 metros. Como a bala de borracha, ele também pode causar ferimentos em quem é atingido.
"O 12-Gauge Drag Stabilized™ Round mostra mais sucesso na incapacitação quando usado dentro de seu alcance efetivo de aproximadamente 6,1m a 15,24m. Quando utilizado dentro desse intervalo, oferece a energia e precisão necessária para atingir os grandes grupos musculares das nádegas, coxas e até mesmo os joelhos do sujeito. Essas áreas fornecem estímulo de dor suficiente e afetam a mobilidade do sujeito, ao mesmo tempo em que minimizam lesões graves ou risco à vida", informa a descrição do produto feita pela fabricante Safariland.
A Polícia Militar não respondeu ao g1 se a nova munição começou a ser usada. Também não informou se comprará mais "bean bags", e se eles serão utilizados futuramente em caráter definitivo para substituir a bala de borracha.
Segundo policiais, o "bean bag" está em fase de testes e ainda não foi usado oficialmente. De acordo com eles, a PM está elaborando um novo protocolo de uso para esse tipo de munição. A expectativa, dizem os agentes, é a de que seja usada até o final deste ano.
Quando isso ocorrer, será a primeira vez em sua história que a Polícia Militar usará "bean bag". O produto já é utilizado nos Estados Unidos e também chegou a ser usado na Colômbia, no México, no Canadá, na Hungria, em Hong Kong, entre outros países.
Cartucho de 'bean bag' — Foto: Reprodução/Safariland
Problemas em bombas
Ainda segundo policiais, a PM de São Paulo também suspendeu a compra de 70 mil bombas de efeito moral e de gás da Condor após detectar falhas e inconformidades em lotes.
Questionada, a Polícia Militar não comentou o caso envolvendo as bombas. De acordo com fontes consultadas pelo g1, foram recolhidas 24 mil bombas que emitem luz e som e 46 mil bombas de gás lacrimogêneo.
Entre os problemas verificados, segundo os agentes, está a explosão de bombas de efeito moral, que deveria ocorrer após 3,5 segundos de tolerância, mas ocorreu antes, com 1,5 segundo.
Como solução, os agentes disseram que a PM tem usado bombas de lotes da própria Condor que já estavam no seu estoque e não apresentaram falhas nos testes.
Ainda segundo policiais, a corporação também abriu licitação internacional para a aquisição de bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral devido ao problemas detectados.
O que dizem especialistas em segurança
PM usa bombas de gás em confronto com manifestantes na Avenida Paulista, em São Paulo, em maio de 2020 — Foto: Reprodução/TV Globo
O g1 ouviu dois especialistas em segurança sobre a decisão da PM de São Paulo de suspender a compra das 270 mil balas de borracha da Condor.
Segundo Bruno Langeani, diretor da área de Sistema de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz, que tem estudos sobre armas e munições usadas por policiais, as balas de borracha e as bombas são usados pela PM de maneira excessiva para impedir protestos.
"O instituto acredita que o elastômero e a munição química são excessivamente usados em manifestações públicas para restringir um direito constitucional a protestos", falou Bruno. "Seu uso traz alto risco de lesões graves. Podendo gerar cegueira, como já aconteceu em outras ações da PM."
Estudantes fazem vigília em Bogotá por Dilan Cruz, jovem que morreu após ser ferido por membro do Esquadrão Móvel de Combate a Distúrbios durante protesto contra o governo — Foto: Juan Barreto/AFP
"A suspensão das balas de borracha deveria ser utilizada pela PM para a revisão dos seus protocolos e não simplesmente troca de um fornecedor por outro, ou de uma tecnologia (elastômero) por outra ('bean bag')", comentou o diretor do Sou da Paz.
"Apesar de 'bean bag' ter menos chance de penetração no corpo, seu uso errôneo e em curtas distâncias também podem gerar graves lesões", disse Bruno. "Assim como no caso do elastômero [onde há registros de lesões graves e até morte], também o uso de 'bean bag' não é inofensivo e já gerou mortes, como no caso do manifestante colombiano Dilan Cruz em 2019."
Defensoria Pública do Estado de São Paulo — Foto: Reprodução
Davi Quintanilha, defensor público e coordenador do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, falou que o órgão também é contra o uso de balas de borracha pela PM em manifestações.
"Temos muitos casos de pessoas que ficaram cegas ou tiveram ferimentos graves depois de serem atingidas por esse tipo de munição", disse Davi. "A bala de borracha em tese tem isso de atingir uma pessoa determinada e por isso não deveria ser usada a torto e a direito para dispersar pessoas. Os danos colaterais possíveis e, muitas vezes, previsíveis, são muito graves para justificar seu uso contra uma multidão."
Segundo o defensor, a informação de policiais de que testes demonstravam desvio de trajetória no disparo de balas de borracha é preocupante. "Esse dado do desvio da trajetória da bala de borracha é muito grave e torna ainda mais questionável o uso dessa munição, principalmente em contexto de manifestações", disse Davi.
O que diz a PM
Por meio de nota, a Polícia Militar informou que “constatou problemas de performance” nas balas de borracha da Condor e recolheu 120 mil delas. Além disso, a corporação se recusou a receber 150 mil munições da empresa após novos testes detectarem irregularidades nos lotes.
“A equipe técnica do Centro de Material Bélico realizou testes de qualidade, em 2020, nas munições de impacto controlado adquiridas para o período de 2015 a 2019 (120.000 munições) e constatou problemas de performance que, não obstante exijam reparos, não inviabilizam o produto no mercado. O problema de performance está ligado à alta exigência da Polícia Militar”, informa trecho do comunicado da PM encaminhado à reportagem.
Como a PM também optou por não receber esses produtos, as balas de borracha que estavam no armazém do Centro de Material Bélico foram recolhidas. “Constatado o problema, as munições foram recolhidas a fim de preservar a segurança de emprego dentro do padrão de qualidade que a Polícia Militar pretende prestar a sociedade”, continua a nota da corporação.
PM usa bombas para dispersar protesto contra o aumento da tarifa na Avenida Paulista em 2016 — Foto: Cris Faga/Fox Press Photo/Estadão Conteúdo
De acordo com o comunicado, diante dos problemas nos testes, a Polícia Militar não efetuou o pagamento à Condor.
“Quando da constatação do problema de performance, havia uma nova licitação em andamento para aquisição de munições de impacto controlado (150.000 para 2020 a 2025), as quais foram submetidas ao mesmo teste e também apresentaram problemas de performance e, por esta razão, não foram recebidas, e o pagamento ficou retido.”
Pelo acordo firmado em junho de 2020, com validade de cinco anos, a PM pagaria aproximadamente R$ 21 milhões à fabricante para receber 150 mil elastômeros. A PM não respondeu à reportagem, no entanto, qual o valor do contrato para a aquisição de 120 mil elastômeros entre 2015 e 2019 com a empresa.
“Atualmente a empresa nacional está trabalhando para atender as exigências da Polícia Militar e normalizar a entrega de seus produtos”, informa a nota sobre possível tentativa da Condor em tentar adequar as balas de borracha às normas técnicas da corporação.
O que diz a Condor
A Condor alegou, em nota, que os testes com as balas de borracha não foram feitos de maneira adequada pela Polícia Militar. A empresa ainda negou as irregularidades apontadas pela corporação, informando que novos testes realizados pelo Exército certificaram a “excelência do produto”.
No texto, a fabricante informou que “os produtos contratados no ano de 2020 foram tempestivamente entregues e ainda não foram pagos em virtude de testes de recebimento, conduzidos pelo Centro de Material Bélico [CMB], terem apontado supostas não conformidades técnicas”.
“A Condor entende que os testes de recebimento dos produtos conduzidos nas instalações do Centro de Material Bélico não foram realizados com equipamentos de medição adequados, resultando em condições técnicas não ideais, influenciando no resultado obtido”, informa trecho do comunicado.
“Após avaliação acertada do Comando Geral da Polícia Militar, foi determinada a condução de testes nas dependências do Centro de Avaliações do Exército [CAEX], que conta com os mais avançados equipamentos, sendo um reconhecido centro de excelência", continua a Condor.
“Os testes foram realizados pelos integrantes do CMB nas instalações do CAEX , tendo os resultados aferidos comprovado eficácia e eficiência, atestando a excelência do produto", informa a Condor. "As tratativas obedecem ao rito legal de um processo administrativo e temos confiança que está próximo um desfecho que atende ao indisponível interesse público.”
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14 de dez de 2021 às 11:01
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