Declarações foram publicadas no caderno especial do Jornal A Tribuna deste domingo (2)
Atualizado em 04/10/21 - 15:52
Minha história: “É tipo um vício. Continuei até que acabei sendo preso”
“A minha vó é a minha mãe. Chamo ela de mãe. Quando eu fui preso, ela foi na delegacia e chorou bastante, falou que tava muito decepcionada. Mas eu prometi que saindo daqui, ia dar orgulho pra ela”.
Em tom de constrangimento, cabelo raspado e uniforme de interno, Fábio conta a reação da avó quando ele foi apreendido por tráfico de drogas. I
Tudo ia bem até o avô de Fábio morrer. “Minha vó teve que fazer a papelada pra receber a aposentadoria do meu vô e, com 15 anos, acabei me envolvendo no tráfico pra comprar umas coisas pra casa. É tipo um vício, continuei até que acabei sendo preso”.
Na unidade em que está, o estudante do nono ano do ensino fundamental descobriu o prazer de ler. “Não tinha o hábito da leitura, achava que era perca (sic) de tempo. Mas vindo pra cá, eu vi que tempo é tudo. Acabei gostando de ler e sempre que estou sem fazer uma atividade, eu tô lendo. Abriu uma porta pra mim. Vi que pessoas que não tinham de onde surgir, da favela, acabou (sic) surgindo, lançando livros, escrevendo poemas... Quem sabe lá pra frente eu também tenho essa chance”, sonha.
Antes de se arriscar no universo literário, Fábio só pensa em reconquistar a liberdade e acertar o passo na nova caminhada. “Eu poderia estar cuidando da minha vó, trabalhando de boa, dando um sustento pra ela, que tá sozinha. Mas prometi que saindo daqui vou atrás da minha melhora. Tenho uns tios no Sul e um deles vai me ajudar. Já fiz um curso de mecânico industrial, quero trabalhar com máquina de empresa. Não quero voltar mais pra cá”.
Minha história: “Falo pra eles se entregarem a Deus, orar bastante
Nivaldo é um dos perfis raros nas unidades da Fundação Casa da Baixada Santista. Com 20 anos, ele jamais imaginou que o passado fosse bater à sua porta três anos depois de cometer um ato infracional. Aos 17 anos, ele foi apreendido depois de participar de um roubo em São Vicente. À época foi encaminhado ao Centro de Internação Provisória (CIP), onde ficou o tempo máximo permitido por lei: 45 dias. Foi liberado achando que havia riscado aquele capítulo nebuloso de sua história.
“Eu pensava que quando completasse 18, aquilo ia morrer, é o que todo mundo fala. Depois dos 45 dias, eu vi que aquilo não era pra mim, que eu queria voltar a ter o apoio da família, que era meu irmão e minha tia. Pedi perdão pelo que eu fiz e arrumei trabalhos em quiosque, de garçom, em fábrica de gelo, só coisa de temporada. Conseguia um dinheiro e levei a minha família pra ver que eu tava trabalhando”, conta.
A vida tinha voltado ao eixo quando Nivaldo teve uma ingrata surpresa. “Os oficiais bateram na minha casa e disseram que eu tinha que pagar por um ato que cometi há três anos. Foi um choque, porque não tava mais envolvido com nada. Tinha largado meus vícios, feito cursos no Capacita Santos, me inscrevi no Encceja pra terminar o colegial. Mas minha família colocou advogado, estão comigo e estou tranquilo”, afirma, sereno, o jovem que perdeu a mãe aos 11 anos e não tem contato com o pai.
Ciente de sua irresponsabilidade no passado, Nivaldo relembra como perdeu o rumo. “Quem sempre cuidou de mim foi minha avó, que morreu quando eu tinha 15 anos. Com 16, 17 foi quando minha cabeça deu uma virada. Larguei os estudos e comecei a me envolver nas coisas erradas. Minha família disse ‘se é isso que você quer, vai seguir o seu caminho’. Fui morar em comunidades com outros adolescentes”.
O roteiro escolhido por Nivaldo o levou, tempos depois, ao episódio narrado no início do texto, quando ele foi pego após um roubo. Fato que, três anos depois, o transformou em um dos personagens deste caderno, enquanto cumpre medida socioeducativa e aguarda a deliberação do juiz sobre o seu caso.
“Um familiar disse que quando a gente faz coisa errada, esse negócio persegue a gente pro resto da vida. Independente se você se perdoou, se te perdoaram, se pagou ou não pagou. Eu tô pagando agora e tô tranquilo, porque hoje eu tô com outra cabeça, já sou um homem, tenho 20 anos. Tô pensando pra frente, sou muito crente em Deus e entrego tudo na mão dele. Sei que isso tem um propósito”, pondera.
Maduro, Nivaldo motiva outros garotos da unidade a repensar o futuro. “Dou conselho, falo que se eles demonstrarem que realmente querem sair dessa vida, vão ter o apoio da família. Porque eu achava que a minha família tinha me abandonado, mas quando a iniciativa veio de mim, eles me estenderam a mão. Falo pra eles se entregarem a Deus, orar bastante, pela família deles, por eles, pra sair daqui rápido e com propósito diferente, porque essa vida não leva a nada”.
Minha história: “Dessa vez eu não fiz nada. Só no tráfico”
“Até então só tô sendo acusado né, senhor. Não tirei nada de ninguém, dessa vez não fiz nada, só no tráfico”, defende-se Ismael. Aos 13 anos, o garoto de rosto angelical, cabelo escuro com mecha loira e tatuagem na mão, carrega um misto da ingenuidade de criança com a malandragem de meninos mais velhos, afeitos às ruas.
Encaminhado pela segunda vez ao Centro de Internação Provisória (CIP) de Praia Grande, onde os adolescentes não têm o cabelo raspado, como nas unidades de internação, Ismael jura que não fez nada de errado quando a polícia o levou, junto com um maior de idade. A acusação: roubo.
“Eu tava voltando da casa da namorada e meu vizinho tava sendo abordado e preso. Fui perguntar se ele queria que eu chamasse a mãe dele e os policiais acharam que eu tava junto com ele. Tô esperando a audiência, nenhuma vítima me reconheceu. O vizinho tava sem nada, ele tá no CDP (Centro de Detenção Provisória), ele já é de maior (sic)”, explica Ismael.
Incisivo ao falar de sua inocência neste caso, ele não esconde que no ano passado foi encaminhado ao mesmo local por tráfico de drogas. “Um amigo meu era do movimento, então eu pedi pra vender, ele deixou e a polícia me pegou. Fiquei oito dias na Casa 1. Agora estou 38 dias aqui”, conta ele, citando as duas unidades do CIP praia-grandense.
Morando com os pais, Ismael não é o único da família a ter problemas com a Justiça. O irmão mais velho já cumpriu duas medidas socioeducativas em unidades da Fundação Casa, por envolvimento com o tráfico e roubo. Ao falar da reação dos pais após a sua apreensão, Ismael confirma a decepção deles, mas alivia a própria barra. “Ficaram tristes, porque eles nunca fez (sic) nada de errado, nunca tiraram nada de ninguém. Ficaram achando que eu fiz algum mal à sociedade, que eu tirei alguma coisa de alguém, mas eu nunca tirei nada não”.
Usuário de maconha, o garoto que cursa o oitavo ano do ensino fundamental gosta de ler gibis, jogar futebol, pegar onda e andar de skate. No CIP de Praia Grande, ele começou a fazer um curso de barbeiro, mas se for escolher uma profissão, quer ser arquiteto. “Porque gosto muito de desenhar. E desenho bem”.E como vai ser a vida depois que você reconquistar
Minha história: “É uma ironia: pai advogado e filho preso
“É uma ironia: pai advogado e filho preso. Estranho”, reconhece Carlos, de 16 anos. “Foi desagradável”, relembra ele, num suspiro profundo, olhos marejados, ao falar sobre a reação do pai quando soube da sua apreensão após cometer roubos em São Paulo. Cumprindo medida socioeducativa há dez meses, o adolescente reflete sobre o caminho errado que tomou. E promete se redimir.
De classe média e filho de pais separados, Carlos começou a roubar iPhones aos 13 anos, seduzido pelo dinheiro que usaria para comprar bens materiais e pela vontade de sair de casa “pra ter mais liberdade”. Era assim que ele pretendia resolver as diferenças com o pai, com quem ficou após a separação.
Mas o plano ruiu quando ele tinha 15. Ao roubar um celular e agredir uma pessoa, foi apreendido. Intimado pelo juiz a duas audiências, não compareceu. “A polícia foi me buscar no hospital”, conta o garoto, que se recuperava, na unidade hospitalar paulistana, de machucados sofridos em uma tentativa de roubo. Hoje é o próprio pai quem faz a sua defesa.
Em meio ao drama familiar, Carlos pelo menos tem algo a celebrar. “Com o que aconteceu, arrumei a relação com o meu pai, consegui me aproximar mais dele. Foi difícil no começo, mas depois soube conversar com ele, pedir perdão. Tive apoio da psicóloga aqui (na Fundação Casa)”.
Ele também se considera privilegiado em contar com o apoio da mãe, que mora em São Paulo. “Depois que eu caí, ela não me abandonou, como eu já vi acontecendo com outros moleques. Só tenho que agradecer”.
Livros, os bons companheiros
Enquanto cumpre o último mês da medida socioeducativa, Carlos aproveita para aumentar a lista de livros lidos na unidade. “Eu li Eu Sou Malala, Divergente, Insurgente, Convergente, livros do Harry Potter e Jogos Vorazes”, enumera ele, que não tinha o hábito da leitura antes de ser internado.
Entre a literatura e outras atividades praticadas na unidade, Carlos diz que o passado não vai lhe assombrar de novo. “É uma lição de vida, né? Já entendi que a gente tem responsabilidades, existe a lei lá fora. Agora vou mudar o rumo da minha vida. Eu não via a importância do meu pai, dele ter uma faculdade, dele ser advogado. Vou ver se consigo trabalhar com ele. Direito ia ser bom, mas o ramo da música também me intere
Minha história: “Não leio, sei só um pouquinho de escrever”
Rosto abatido, Egídio, de 17 anos, relata a perda de um dos três irmãos. “Faz um mês. Morreu roubando, tinha 23 anos. Ele tinha passado pela Fundação e depois na cadeia. Foi preso por roubo, saiu e continuou. Não consegui ir no enterro do meu irmão, porque tava na provisória”, lamenta o jovem, que cumpre a segunda medida socioeducativa. A primeira foi aos 14.
Apreendido por tráfico, Egídio vem, como muitos adolescentes internados, de uma família desestruturada. O pai, segundo ele, também militava no mundo do crime, envolvido em roubos e sequestro, e foi assassinado a mando de sua madrasta “porque ficava com um monte de mulher”.
Solto no mundo, Egídio furta, trafica e usa drogas desde os 12 anos. “Roubei com arma de verdade e já tomei tiro, passou até na televisão. Acertou no meu pé”, conta. Na escola, mais problemas. “Fui expulso com 13 anos, porque ameacei a professora. Ela tipo não ensinava direito (sic), mandava eu calar a boca. Aí teve uma vez que eu fui pra escola com o canivete e fui expulso. Tava no quarto (ano), tô no quarto até hoje. Não leio, sei só um pouquinho de escrever, sei um pouquinho de ler (sic)”.
Com um universo tão limitado, Egídio reconhece que precisa mudar o seu comportamento. As más companhias, as baladas, as drogas e os atos infracionais terão que ficar para trás se quiser, como afirma, ajudar a mãe e ter a chance de transformar a dura realidade que vive desde criança.
“Vou ter vida nova, com certeza, vou tá (sic) com 18 anos (quando cumprir a medida), ajudar a minha mãe. Eu vou mudar começando com a minha postura, mudar o meu jeito de ser. Lá fora eu sou bem diferente que aqui, sou mais acelerado, não sei respeitar os outros. Aqui (na Fundação) tô aprendendo, então pra mim tá sendo tipo uma nova chance aqui dentro. Tô aprendendo a ler e escrever pra sair mudado daqui”.
Minha história: “Não quero mais ver minha mãe chorar”
“Não quero mais ver minha mãe chorar. Tenho medo de perder a minha mãe”, revela Tiago, de 18 anos. Ele poderia ter comemorado o primeiro dia de faculdade com os colegas de classe, mas fez a aula de forma virtual, de dentro de uma das unidades da Fundação Casa na região. É lá que ele viveu os últimos 11 meses, depois de ser preso em uma função que terminou em tiroteio com a polícia.
“Fui na Praia Grande roubar um carro pra pegar uma quantia em dinheiro. Trombamos a viatura, deu um desacerto e fui preso. Caí por roubo qualificado e tentativa de homicídio, porque um colega deu tiro no polícia (sic)”, explica Tiago, jurando que não foi ele quem disparou na direção do policial militar.
Contando os dias para a audiência com o juiz, para saber se continuará internado ou será solto, ele começou a fazer o curso de Gestão de Recursos Humanos em uma faculdade da Baixada Santista. “Não consegui atingir a pontuação pra pegar uma bolsa na Gastronomia”, diz.
Estudar é um dos caminhos que ele pretende seguir para não voltar ao mundo do crime, universo que passou a frequentar “pelo dinheiro fácil”. “Vi minha mãe trabalhando 16 horas por dia, todo dia. A única folga dela era no Natal e no Ano Novo. Tirei ela (sic) como exemplo e disse que não queria essa vida pra mim. Vi pelo outro lado: fácil, roubo, pum (sic), faço todo o dinheiro que ela faz no restaurante em um mês em questão de minutos”.
Se a vida dura da mãe, com quem morava antes de ser apreendido, foi a muleta para Tiago desandar na vida, a reação dela após o ocorrido é o motivo principal para ele entrar de novo na linha. “Ela sofreu muito. Tenho que levar como um aprendizado, fazer por onde, tenho que ajudar e trabalhar como ela, pra minha mãe ver que eu tô trilhando um caminho bom”, afirma o jovem, que nem se lembra quando viu o pai pela última vez.
Minha história: “Quando eu cheguei, ele já tava morto”
Com 14 anos e pouco mais de um metro e meio de altura, Douglas recorda o dia em que um amigo foi morto quando participava de um assalto. Reincidente, ele cumpre medida socioeducativa há sete meses, após ser apreendido por roubo de celular em Praia Grande. Mais novo, ele já havia passado pelo Centro de Internação Provisória praia-grandense.
“Quando eu cheguei, ele já tava morto. Só fui ver ele (sic) no velório. Fiquei tristão, comecei a chorar, convivia com ele no dia a dia. Pensei que podia ser eu (sic)”, lamenta Douglas, olhar perdido, ao se lembrar do companheiro de desventuras.
O garoto franzino começou a roubar aos 11 anos. “Culpa das amizade que eu andava (sic)”, indica. O tráfico, comum entre os atos infracionais cometidos pelos adolescentes, também fazia parte do cotidiano. “Ganhava uns R$ 700,00 por dia. Comprava umas roupa (sic) e dava dinheiro pra minha mãe”, relata o filho de pais separados, que tem seis irmãos e não foi o único a cometer delitos na família. O pai foi preso quando Douglas era pequeno e o irmão mais velho já teve passagem na Fundação Casa.
Aluno do sétimo ano do ensino fundamental, Douglas admite ter dificuldades na escola. Aprendendo a ler melhor na Fundação Casa, ele quer mudar o rumo de sua vida para não magoar a mãe de novo. “Quando eu fui preso, minha mãe ficou tristona, chorou. Falou pra eu não ficar nessas ideia (sic), porque eu ia acabar levando um tiro. Falei pra ela que ia ficar de boa, vou dar mais valor pra minha mãe, senhor. Vou arrumar um trampo, ficar firmão, senhor”.
Minha história: “Foi atrás das grades que eu parei pra refletir
Internado pela segunda vez na Fundação Casa, por roubo à mão armada, Silvio, de 17 anos, passa boa parte do tempo na unidade compondo letras de funk. Na rima e na batida do som que domina as periferias do Brasil, ele sonha em dar fim à vida transgressora, que teve início aos 15 anos, quando foi apreendido pela primeira vez. O deslize lhe custou 11 meses em uma unidade do Litoral Sul.
Com cinco músicas compostas, Silvio conta a sua trajetória de adolescente problema, fala sobre drogas, reflete sobre o cumprimento da medida socioeducativa e dá um recado para a rapaziada: “Essa vida só tem duas opção (sic): é cemitério ou se não é dentro da prisão”, canta, em uma das letras.
Tímido, Silvio nunca teve coragem para pegar o microfone em um baile e soltar a voz e os versos diante da multidão de adolescentes que costuma frequentar os pancadões de funk. Mas está determinado a romper essa barreira e dar vazão ao seu talento quando cumprir o período de internação. E, como futuro MC, mandar o papo reto para a molecada:
Estudante do segundo ano do ensino médio, Silvio já trabalhou em Peruíbe cuidando de cavalos, em uma mecânica e em um quiosque de praia. Mas, olho grande, via garotos com bens materiais que ele não possuía. E achou que a maneira mais fácil de conseguir dinheiro era roubando. Acabou apreendido, para decepção da mãe, com quem dividia a casa com mais quatro irmãos. O pai foi embora quando ele era pequeno.
Silvio destila o arrependimento em desapontar a mãe em outra música de sua autoria, que espera, em breve, possa estar embalando os bailes funk pelo Brasil afora:
Minha história: “Vou fazer 18, por isso que eu não vou mais roubar”
“Eu gostava de luxar, senhor. Eu não pensava, só gostava de gastar, porque dinheiro fácil vai fácil também, né? Quatro mil ia embora (sic) em seis dias, muito rápido. Eu ia pro baile e já gastava R$ 1.500,00. Ia pra casa e fazia churrasco. Mas ajudava minha mãe também”, fala José Mário, de 17 anos, cumprindo o segundo período de internação por roubo. Na primeira vez, ele ficou um ano em uma unidade da Fundação Casa da região.
Ostentar é um dos verbos mais exercitados pelos adolescentes que cometem atos infracionais. Em busca de bens materiais, autoafirmação e reconhecimento dentro da comunidade, especialmente com os mais velhos e com as adolescentes, os garotos não pensam duas vezes quando enxergam a possibilidade de “levantar uma grana fácil”. “Roubava corrente, celular... cada corrente que eu pegava era R$ 3 mil”.
José Mário começou a furtar aos 14 anos, depois que deixou a casa da mãe e foi morar com o pai em uma favela. Ele não sabe ao certo quantos irmãos tem. “Acho que são oito”. Mas sabe o porquê prefere morar com o pai. “Eu posso ir pra casa dele a hora que eu quiser, posso dormir na hora que eu quiser. Minha mãe já não, é tudo no tempo dela. Quando chega na hora certa, ela fecha o portão, tem que dormir na casa do meu pai. Ela é mais rígida”.
Se a disciplina imposta pela mãe não o agradava, na Fundação Casa ele tem aprendido a cumprir as regras de funcionamento da unidade e de convivência com os outros internos. E aproveita o tempo para aprender a ler e a escrever, já que pouco foi à escola. “Na outra passagem eu não sabia ler, escrever, não sabia fazer nada, aprendi tudo na Febem (Fundação Casa). Parei na quarta série. Hoje eu leio e escrevo, entendo as palavras, faço, respondo, porque antes eu via assim e parecia cego”.
Perto de completar 18 anos, José Mário tem mais um motivo para escolher outro caminho após o período de internação. Com um irmão maior de idade cumprindo pena em uma penitenciária, ele não quer ter o mesmo destino no futuro. “Se cair de novo, eu não venho mais pra cá, é cadeia memo (sic). Vou fazer 18, por isso que eu não vou mais roubar. Aí é dura né, difícil pra minha mãe visitar. Imagina ela lá me visitar, tudo nojento”.
Minha história: “Achei que não ia dar nada e voltei a vender”
“Achei que não ia dar nada e voltei a vender”. É assim que Artur, de 14 anos, resume o cumprimento da medida socioeducativa na unidade para onde foi encaminhado após ser apreendido pela segunda vez vendendo drogas. Quando foi pego pela primeira vez, ele ficou apenas oito dias no Centro de Internação Provisória, um ‘braço’ da Fundação Casa para onde seguem os meninos enquanto aguardam a decisão do juiz da Vara da Infância e Juventude.
Sem conhecer o pai e vivenciando o drama da mãe, viciada em crack, Artur viu no tráfico a opção mais fácil para “agilizar o lado”. Assim, ele poderia ajudar a avó a bancar as despesas da moradia, onde ele residia junto com as três irmãs. No início a atividade fluiu, mas quando a casa caiu de novo para Artur, ele foi internado em uma unidade da Fundação no Litoral Sul, onde está há seis meses.
Tímido, ele conta que passa os dias na Fundação Casa “lendo um pouquinho, jogando bola e distraindo a mente”, enquanto aguarda a sua liberação. “Mês que vem devo tá indo embora, vou largar tudo isso. Minha cabeça mudou muito”, garante o estudante do sexto ano do ensino fundamental.
Perguntado sobre o que almeja para o seu futuro, Artur o sintetiza de forma simples. “Já fiz bicos na bicicletaria de um amigo. Quero montar uma bicicletaria e ter uma vida melhor, uma casa, filhos”, diz o adolescente, que também embala o sonho de ver a mãe recuperada. “Ela já foi internada, mas fugiu. Pretendo ver se ela quer ajuda, pra ver se ela consegue parar com isso (vício)”
Minha história: “Oro todo dia a Deus pra mudar esse meu jeito de pensar”
Durante quase vinte minutos de entrevista, Eduardo desabafa sobre a revolta que o consome desde criança. Da miséria extrema em Guarujá, quando só tinha água na geladeira de casa, aos conflitos para descobrir quem era o seu pai e as ‘tretas’ com a polícia, o garoto de 15 anos transborda amargura. Movido pelo ódio e sob o efeito de drogas, que ele consome desde os 11, Eduardo começou a roubar aos 12.
“Saía roubando memo (sic). E aquele dinheiro todo mexia com a cabeça. Todo dia eu tava tirando R$ 2 mil, R$ 5 mil. Roubava comércio, farmácia, posto. De moto, bicicleta. Ia na praia, via uma correntona e já dava um salve nos parceiro (sic) no celular. Os parceiro colava (sic), trazia a réplica e só tomava e saía fora. Arma de fogo só pra situação pesada, que foi quando eu roubei uma firma. Batia na delegacia e voltava”, discorre, enquanto cumpre uma das seis medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Infância e Juventude: a internação.
Assim como a pobreza, que não permitia que a mãe lhe comprasse “roupas da hora” e “alimento do bom”, outro dilema que o incomodava era a identidade do pai. Entre idas e vindas, a mãe lhe contou, certo dia, que o verdadeiro pai, criminoso, havia morrido. O homem que ele achava ser seu pai era o namorado da mãe, que, tempos depois, seria preso por se envolver em crimes.
“Aí teve um terceiro. Pô, três pais! Mas é o que considero meu pai, é o único que tá me dando uma força aqui dentro. Quando vem me visitar, troca umas ideia no grau (sic), mas foi preso por não pagar pensão, tava nas dificuldade (sic)”, diz, resignado.
Fantasmas para exorcizar
Sem saber quanto tempo ficará internado, Eduardo admite que ainda não se adaptou às normas impostas na unidade após três meses de reclusão. “Isso aqui, senhor, tenta melhorar nóis (sic), mas nóis que tá preso (sic) se sente revoltado por tá aqui dentro. Também tem as ordem (sic) que tem que seguir. Um menor que não gosta de seguir ordem...”, fala, olhar contrariado, sem concluir a frase.
Rebeldia à flor da pele, o garoto também tenta exorcizar as más lembranças que acumulou durante as suas apreensões pela polícia. “Oro todo dia a Deus pra abrir minha mente e mudar esse meu jeito de pensar. Ando até lendo a Bíblia, mas é difícil se lembrar do que tu já passou na vida (sic), o bagulho é revoltante”.
Praticante de jiu-jitsu, capoeira e muai thay, Eduardo largou as modalidades quando desandou na vida. “Comecei a fumar maconha, tomar uísque, bala, MD (conhecida como a “droga do amor”) e isso me afastou do esporte. Só tava pensando em curtir, dinheiro, ostentação. Ia pros baile, as mina gosta (sic)”, descreve o adolescente, afirmando que quem andava na linha em sua comunidade era “comédia”. “Quem é honesto é tirado de bobalhão. Se for honesto, as mina só gosta se tiver dinheiro”.
Com tantos dissabores em tão pouco tempo de vida, Eduardo sabe que para curar as feridas e largar a vida de infrações, vai ter que fazer a sua parte. E o esporte, pensa ele, pode ser a sua redenção. “Vou usar minha revolta na luta, que é onde eu me desabafo, que é onde eu brigo, tiro minha raiva toda contra o oponente. Meu coroa disse que comprou uma roupa de luta pra mim e tá esperando eu sair”, projeta ele, se espelhando no guarujaense Charles do Bronx, campeão peso-leve do UFC, em maio passado. “Conheço ele, é meu camarada!”, diz, batendo no peito e se despedindo, enfim, com um sorriso no rosto. “Valeu pelo papo”.
Minha história: “Vendia crack, maconha, cocaína, qualquer coisa”
“Eu queria dinheiro fácil né, senhor. Pra ter as coisas né, senhor. Moto, essas coisas, gastava muito em balada. Vendia crack, maconha, cocaína, qualquer coisa”. A fala acelerada de João parece refletir o ritmo frenético com que o adolescente de 17 anos levava a vida quando estava livre. Apreendido por tráfico de drogas, ele cumpre medida socioeducativa há onze meses.
A correria de João no mundo do crime começou cedo. Ele diz que aprendeu a dirigir com 11, 12 anos, quando se aventurava com garotos mais velhos em pequenos roubos. “Já roubei à mão armada, roubava carros”, conta o adolescente que, com a separação dos pais, morava com a mãe, e viu no tráfico uma atividade mais rentável.
“Eu já trabalhei ajudando meu pai como montador de móveis e ganhava R$ 70,00 por dia. No tráfico, dependendo do dia, eu ganhava R$ 500,00. Às vezes eu roubava e traficava pra ter mais grana. É duro trabalhar todo mês pra conquistar uma coisa, sendo que ali (no crime) pode ser rápido. Querendo ou não, fui sem pensar e acabou dando nisso aqui (internação)”.
O tempo em que vive privado da liberdade o fez reavaliar o rumo de sua vida. Que, ele afirma, vai mudar. “Vou arrumar um trabalho, não quero mais essa vida, não quero voltar pra cá. Quero conquistar minhas coisas, passo a passo”.
Enquanto aguarda, ansioso, para deixar a unidade (“O relatório tá na mão do juiz, só tô esperando!”, exclama), João tenta demonstrar convicção de que não se deixará levar novamente pelos encantos da “vida loca”. “Já fiz um curso de informática aqui e quero fazer outro curso pelo Senac quando sair. Posso trabalhar com o meu pai, que me dá uma força”.
Minha história: “Quando eu segurar meu filho, vai ser a maior inspiração”
“Agora eu vou mudar ou mudar. Quando eu segurar o meu filho no colo, vai ser a maior inspiração, não vai ter coisa melhor”, diz Bernardo, sorriso no rosto. Aos 17 anos, ele ainda é jovem para ser pai, mas já acumula duas internações em unidades da Fundação Casa. Esperando, com a namorada de 14, a chegada do filho para dezembro, ele também aguardava, no Centro de Internação Provisória de Praia Grande, a audiência em que o juiz deliberaria sobre o seu caso. Como acontece desde quando ele tinha 14, Bernardo mais uma vez foi apreendido por roubo.
“Eu roubei uma farmácia, simulei que tava com a arma, eu e mais dois. Um tá aqui, o outro no Guarujá. Tudo menor, caiu os três (sic)”, conta ele sobre a frustrada ação, cujo desfecho conhece bem. “Na primeira (internação), eu era pedrinha, era pequeno, tinha menos de 16. Foi tudo roubo, no primeiro eu tinha arma de fogo, tinha feito 15 anos no mesmo dia e peguei dez meses”, relembra.
Quando deixou a unidade, Bernardo ficou apenas quatro meses livre. “Roubei de novo e fiquei internado de novo, mais dez meses. Mas essa última fez eu mudar (sic), antes disso eu nem estudava. Aí comecei a estudar, arrumei um trabalhinho de lava-rápido. Depois eu vi que ganhar R$ 50,00 por dia era pouco, mas pelo menos eu ia tá lá fora. Aí fui inventar de roubar de novo e caí aqui. Fiquei oito meses sem aprontar”, contabiliza.
A recaída no ato infracional, diz, tem ligação com o seu passado. “Tive uma infância normal, mas a partir dos 14 não aceitava minha mãe com o padrasto e comecei a fazer esses ato (sic). Na separação dos meus pais eu tinha uns quatro anos, mas lembro da cena, me afetou bastante. Meu pai arrumando as coisas dele, indo embora, minha mãe chorando. Depois disso, a gente teve que sair do apartamento e ir morar na casa dos meus avós. Tinha um tio que me agredia, eu ficava chorando. Minha mãe trabalhava e não sabia de nada. Não é desculpa, mas faz parte da revolta que eu tenho”.
“Adrenalina”
A rebeldia, no entanto, não justifica os anos de deslizes. Outros ingredientes levam muitos jovens a roubar ou optar pelo tráfico de drogas. Ou atuar nos dois ramos ao mesmo tempo. “Pensar nós pensa (sic), mas quando chega na hora, esquece de tudo. Só quer saber do dinheiro e da adrenalina. Tá lá dentro (durante o roubo), a adrenalina é o que toma conta. Era por dinheiro fácil mesmo. No tráfico, eu ganhava uns R$ 200,00. No roubo, uns R$ 2 mil, R$ 3 mil em cada assalto. Mas o custo não valeu a pena, nem se fosse um milhão de real (sic) não ia valer”,pondera.
Confrontado sobre como vai mudar o conhecido roteiro, já que logo terá um filho para criar e, perto dos 18 anos, corre o risco de, em caso de novo deslize, ir parar em uma penitenciária, Bernardo vê um estímulo para a redenção. “Eu vou me policiar mais, não vou mais pela cabeça dos outro (sic), vou tomar as atitudes lá fora de mudar. Lá (no presídio) é maciço né, lá é mais duro o regime. Eu pretendo deixar essa vida, é tudo questão de eu sair e segurar o meu filho no colo, que vai ser o maior amor que eu já senti”.
Minha história: “Na Fundação tão me ajudando a mudar as minhas ideia”
Internado na unidade da Fundação Casa de São Vicente por furto qualificado, Marcelino repensa a rota e calcula o custo de “agir pela emoção”. Aos 16 anos, ele já é pai de uma menina, que ainda não completou um ano. E vive um dilema com a ex-namorada e mãe da criança, uma adolescente de 15, desde que cumpriu o primeiro período de internação, em 2020.
“Quando saí, fiz meu papel, fui no cartório registrar minha filha, mas não tinha mais relacionamento (com a namorada). Ela queria voltar e começou a me jogar na cara, a me ofender. Quando eu tava na Fundação eu não podia ajudar, mas minha família ajudava a mãe da minha filha. Aí eu fui comprar uns material (sic) de lava rápido, que montei no quintal de casa. Tirava uns R$ 100,00, R$ 150,00, era pouco. Isso me subiu pra mente e tomei as atitude (sic)”, desabafa.
“As atitude” foi o retorno à rotina de roubos, que começou quando Marcelino tinha 14 anos. Com o dinheiro roubado (de R$ 1 mil a R$ 1,5 mil por função), ele ostentava correntes de ouro, relógios, moto. “Eu comprava, mas não parava pra analisar. Aqui na Fundação eles tão me ajudando a mudar as minhas ideia (sic), já mudei o meu pensamento”.
Marcelino tem em casa um exemplo para corrigir a trajetória infracional. O irmão mais velho também já passou pela Fundação Casa, mas, segundo ele, conseguiu virar o jogo. “Ele já tá de boa, é um exemplo. Ele já foi da vida errada, mas depois que saiu da Fundação, mudou de vida, tá tranquilo, tá trabalhando”.
Fazendo cursos oferecidos pelo Senac na Fundação Casa, Marcelino garante que o seu caminho será diferente quando cumprir essa segunda medida socioeducativa. “Quando sair daqui vou parar pra pensar mais, parar de agir pela emoção. Vou focar no trabalho e voltar no que é certo, nos estudo (sic) e no trabalho. E vou procurar ser um pai mais presente. É o caminho que eu vou seguir, fé em Deus”.
Minha história: “Foi um ato de emoção, não pensei no que eu ia fazer”
“Foi um ato de emoção, não pensei no que eu ia fazer”. A atitude intempestiva de Roberlei, de 17 anos, de roubar um carro de luxo em Bertioga, junto com um amigo, acabou mal. Depois de roubarem a picape, eles foram apreendidos pela polícia e agora, no Centro de Internação Provisória (CIP) de Praia Grande, ele aguardava, quando esta entrevista foi feita, a decisão do juiz para saber se seria internado em alguma unidade da Fundação Casa ou solto após completar o prazo máximo de 45 dias no CIP.
“O amigo me chamou, tava precisando de dinheiro pra arrumar a minha moto, uma cinquentinha. Roubamos e fomos em direção ao Guarujá, onde o colega falou que a gente ia vender o carro por R$ 20 mil. Mas na entrada da cidade deu um desacerto, os policial mandou (sic) parar, tentei dar fuga, mas bati num outro carro. Pulei pela janela, fui tentar correr e os policial (sic) mandaram parar. Aí eu parei pra não tomar tiro (sic)”, conta.
Roberlei garante que nunca havia cometido delito nem roubado antes do episódio, que classificou como um “aprendizado”. “Não pensei que eu ia atrasar o lado da pessoa que eu peguei o carro, que eu ia atrasar minha mãe, que eu ia me atrasar nesse lugar”, lamenta, cabeça baixa, em tom de arrependimento.
Estudante do primeiro ano do ensino médio, Roberlei mora em Bertioga com a família. O pai, que ele pouco tem contato, mora no Paraná. Disse que estava tendo aulas on-line “por causa da crise” (pandemia do coronavírus), mas que espera terminar os estudos e trabalhar. “O que aconteceu vai mudar a minha vida”, diz, timidamente.
Fã de surfe, Roberlei assistiu, no CIP de Praia Grande, ao potiguar Ítalo Ferreira ganhar a medalha de ouro nas Olimpíadas de Tóquio. E com o triunfo do brasileiro no Japão, chega a sonhar com um futuro no esporte favorito. “Surfo bem, já ganhei campeonatos bertioguense (sic). Queria ter umas oportunidade (sic), mas não tinha como, não é fácil. Mas igual dizem na vida: tem que persistir, na fé, que consegue”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário