RECUPERAÇÃO Crianças e adolescentes colocados em unidades socioeducativas têm agora mais acesso à escolarização (Crédito: GABRIEL REIS)
02/09/2022 - 9:30
O cenário de superlotação que num passado recente servia de estopim para sangrentas rebeliões em unidades de internação de jovens infratores já não existe mais. Levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mostra que o número de jovens reclusos em todo o Brasil nessas unidades caiu 66% nos últimos cinco anos. Atualmente, são 10.249. Eram 23.284 em 2017. É o fim, portanto, dos outrora “depósitos de gente” violentos e tomados pela sarna dos tempos da extinta Febem que, em vez de garantir a ressocialização dos infratores, funcionavam como escola de crimes. O Estado, agora, pode oferecer melhores condições para que esses jovens tenham mais chance de recuperação.
A taxa de ocupação dessas unidades socioeducativas, que era de 118,66% em 2017, hoje é de 59,97%. Os dados estão no documento “Panorama Socioeducativo — Internação e semiliberdade”, atualizado anualmente pelo CNMP. “O atendimento aos internos melhorou bastante nos últimos anos, principalmente no acesso à escolarização”, atesta o advogado Ariel de Castro Alves, especialista em Direitos Humanos e membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. “Claro que, sem a superlotação, o atendimento pode melhorar e gerar uma atenção mais individualizada aos internos, com mais oportunidades e mais qualidade também nas atividades culturais, esportivas e de lazer”, diz.
Os números falam por si, mas ainda não é possível cravar as razões da redução no número de internos. Professora do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), a cientista política Bruna Gisi coordena uma pesquisa financiada pelo CNPQ que tem como objetivo contribuir com a compreensão desse cenário de redução no número de internos. “Existem muitas hipóteses que circulam entre os atores do sistema, mas não temos dados que nos permitam ter mais clareza sobre o que vem ocorrendo”, diz. “O objetivo da pesquisa é justamente reunir essas informações”.
Castro Alves chama atenção para um ponto em especial: a adesão dos tribunais do País, por meio das varas da infância e juventude, a um entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) segundo o qual em casos de ato infracional análogo ao tráfico de drogas não é obrigatório impor a internação como medida socioeducativa para o jovem infrator. “Passaram a internar por tráfico apenas os adolescentes reincidentes, pegos armados, com maiores quantidades de droga ou envolvidos com quadrilhas ou organizações criminosas”, explica. Continua sendo aplicada a internação para os processados por roubos consumados, sequestros, homicídios e latrocínios. O advogado destaca que apreensões e internações de adolescentes diminuíram durante a pandemia, razão pela qual acredita que o número possa subir, com a volta do policiamento ao normal após o fim do distanciamento social. “Temos também o aumento da miséria, da fome, do desemprego e da evasão escolar, que influenciam no aumento da criminalidade juvenil”, pontua.
Fim das rebeliões
O secretário de Justiça e Cidadania do estado de São Paulo, Fernando José da Costa, comemora a qualidade do atendimento prestado atualmente pela Fundação Casa, autarquia presidida por ele. “Temos trabalhado com um número menor de jovens e podemos oferecer um atendimento personalizado, o que melhora muito a execução das medidas socioeducativas”, diz. “Acabaram as rebeliões”. O governo paulista também optou por centros menores de internação — unidades da antiga Febem, antecessora da Fundação Casa extinta no início dos anos 2000, abrigavam até mil detentos. “Fizemos investimentos na capacitação dos servidores, reformamos as unidades, instalamos circuito fechado de câmeras com central de monitoramento, entre outras melhorias”, diz. “Os internados são matriculados regulamente na rede pública de ensino, frequentam as aulas nas unidades da Fundação Casa e também têm acesso a cursos profissionalizantes; além de atendimento médico, odontológico e psicológico.” Como o número de internos caiu, foram fechadas até agora 30 das 146 unidades socioeducativas no estado — o que preocupa o advogado Castro Alves: “Alguns adolescentes foram transferidos para locais distantes, o que dificulta o contato com familiares”, diz. “O apoio da família é fundamental para a efetividade do processo socioeducativo.”
Na terça, 30, a reportagem de ISTOÉ visitou duas unidades da Fundação Casa em Santo André, no ABC. As condições do local são dignas: as celas para quatro internos, são amplos e contam com roupa de cama limpa, banheiro e mesa com banco para estudo ou recreação. Há salas de aula, biblioteca, sala de informática, acesso a tablets e à internet — com uso controlado, claro. Mas o frio quase doía. Lá dentro tudo é cimento — as camas, as mesas. No início daquela manhã, os termômetros marcavam 120 C, mas a sensação térmica era de temperaturas ainda mais baixas, o que persistia mesmo com o surgimento do sol. O jovem L, 19 anos, apreendido e internado por homicídio, terminou o ensino médio dentro da unidade e agora faz cursos profissionalizantes e estuda para tentar uma vaga no ensino superior. “Só consegui continuar os estudos porque estou aqui. É caindo que se aprende, e quero me reerguer”, diz. O jovem C., 18 anos, internado por roubo a mão armada, também diz que não estaria estudando. “Lá fora eu não teria essa oportunidade, não teria corrido atrás. Aqui pude ter a certeza de que não quero viver no crime”, afirma. “Voltei a ter esperança”.
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