segunda-feira, 12 de agosto de 2024

“O rei não morreu”: a gênese aristocrática das Polícias Militares no Brasil na contramão dos Direitos Humanos

 

Múltiplas Vozes

Se os Direitos Humanos no Ocidente ganham força com a Revolução Francesa e seus valores liberais e antiaristocráticos, por que as PMs criadas no Brasil reforçaram os valores absolutistas como a hierarquia, a honra e a autocoerção dos modos de pensar e de se portar em público?

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Fábio Gomes de França

Pós-Doutor em Direitos Humanos, doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba. Capitão da PMPB e professor de sociologia e criminologia do PPG do Centro de Educação da PMPB

Enquanto instrutor/professor dos cursos tanto para soldados como para alunos-oficiais da Polícia Militar, sempre recomendei a meus alunos policiais que, se quisessem conhecer bem o funcionamento das PMs, digamos que, como exercício comparativo, era preciso ler a obra A sociedade de corte, de Norbert Elias. O livro desse autor tinha me impressionado bastante quando comparamos os principais aspectos da sociedade de corte com as características culturais presentes nas PMs. Se a corte funcionava com base na etiqueta corporal, as PMs são regidas pela disciplina e seus condicionamentos. Ambos os mecanismos exigem autocontrole profícuo dos gestos, atitudes, modos de ser e de se expressar, cujo corpo se torna o elemento central de certa “docilidade” e “utilidade”, como nos ensina a perspectiva foucaultiana.

Como nas PMs, a hierarquia das posições sociais na corte era imprescindível para demarcar os lugares ocupados pelos indivíduos, tendo o rei como soberano maior e absoluto. No caso das PMs, esse personagem pode ser entendido como o comandante-geral. Além disso, o dia a dia ritualizado da corte era revestido de cerimônias simbolicamente demarcadas, cujas indumentárias e objetos criavam um conjunto de elementos fundamentais para fortalecer a honra individual e coletiva juntamente com o senso de pertencimento à nobreza, verdadeiro espírito de corpo, o que em nada difere dos inúmeros rituais que fazem parte da realidade das casernas da PM, que também exigem seus uniformes específicos e seus apetrechos simbólicos como as espadas, luvas e platinas, por exemplo. A leitura do livro sobre a sociedade de corte me fez perceber como traços do modus vivendi da corte aristocrática de origem europeia ainda estavam presentes nas PMs porque essas instituições teriam sido criadas de acordo com essa lógica social, no período imperial brasileiro.

Na verdade, Absolutismo e militarismo são parentes próximos. São sistemas nos quais o mando e a obediência irrestrita funcionam como o motor da sociedade e suas instituições, assim como exemplarmente descrito também por Norbert Elias na análise dele sobre o período guilhermino alemão (1871-1918) em sua obra Os alemães. Naqueles anos, as relações sociais eram pautadas por condições hierárquicas entre os indivíduos, o que formatou um modelo conservador e violento de comportamento coletivo em detrimento de valores humanistas, por influência do estilo militar prussiano e seu domínio político e cultural naquele momento.

Logo, a questão a ser problematizada é que, se a concepção moderna de Direitos Humanos surgiu com mais ênfase durante a Revolução Francesa com a queda da Bastilha e do regime absolutista de Luís XVI, como pensarmos em uma polícia defensora de Direitos Humanos se em suas raízes históricas ela foi concebida, perpetuou-se e permanece reproduzindo uma lógica aristocrática em seu modelo organizativo, especialmente nos seus expedientes simbólicos calcados na tradição e na dissimetria dos papeis funcionais baseados no ideal de mandar e obedecer?

A relação entre as PMs e a concepção de Direitos Humanos como a conhecemos no Brasil sempre se mostrou e ainda se mostra problemática. Mesmo que vários acontecimentos historicamente marcantes como a Revolução Francesa e a Segunda Guerra Mundial tenham suscitado a criação de documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, respectivamente em 1789 e 1948, falar de Direitos Humanos no Brasil parece ter sido um assunto tardio, que ocorreu apenas no período de exceção.

Em síntese, é preciso termos um olhar diacrônico que posicione as PMs a partir de sua origem nobiliárquica, a qual está relacionada à força do conservadorismo que as delimita devido à herança aristocrática do modelo policial militar brasileiro. Parece-nos ser um outro olhar ao se observar essas instituições, já que a violência exercida por seus profissionais de forma ilegítima em muitas ocasiões, assim como divulgado especialmente pela imprensa, tem sido o foco preferido dos estudos socioantropológicos, havendo poucos trabalhos que tenham dado relevância para essa polícia dos tempos imperiais, no contexto de uma origem de corte. Foi essa polícia de configuração aristocrática que fez com que a força da continência chegasse até os PMs do século XXI, como um ato de extrema importância no cumprimento e saudação entre superiores e subordinados, como símbolo de punição caso não seja executada enfaticamente por estes.

É óbvio que alguns importantes estudos apontam a origem, a organização e a atuação das PMs no Brasil no século XIX, período imperial. Mas o que destacamos é que aspectos das configurações sociais das cortes principescas do Absolutismo europeu permanecem nas PMs, o que contradiz um ideal de polícia moderna que surge exatamente pela dissolução do regime aristocrático, ao menos na Europa. No caso do Brasil, ao contrário, o Absolutismo tupiniquim coincidiu com a criação dessa polícia moderna, que pode ser vista como um “modelo de polícia moderna e tradicional”, que une a aplicação das leis com a burocracia militar. O que nos parece é que o adjetivo tradicional em consonância com a burocracia militar criou um modelo à brasileira fruto de um período político afeito a um liberalismo autoritário e moderado, bem diferente do princípio de segurança elencado na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão que ensejou a visão moderna dos homens de armas tutelados pelo Estado para o exercício do monopólio legítimo da força física.

Assim, no Brasil, as PMs, desde sua criação como Guardas Municipais Permanentes em 1831, adotam as formas de organização do Exército, o que se consolidou, levando-se em consideração um processo histórico-político específico, com a Constituição republicana de 1988, na qual encontra-se que as PMs são forças auxiliares e reserva do Exército. Tal subordinação e herança organizacional significam que as PMs imitam da Força terrestre o modelo regulamentar, a justiça castrense e a instrução das tropas, ou melhor dizendo, os treinamentos socializadores de profissionalização dos homens e mulheres que ingressam na carreira policial militar.

No plano simbólico, olhando-se especificamente para o período de formação dos oficiais enquanto alunos, temos a presença de uma série de elementos de origem aristocrática em uma força policial que muitos dizem ter surgido (segundo o modelo de referência de criação da polícia inglesa, do que discordo) para assegurar a paz pública e garantir segurança à sociedade pelos princípios dos Direitos Humanos, digamos assim. Os cadetes, por exemplo, são chamados de príncipes ou reis da Academia (local de funcionamento do Curso de Formação de Oficiais), inclusive sendo convidados a participar de bailes de festas de 15 anos com uniformes de gala que nos lembram os bailes aristocráticos das cortes principescas do Ancien Régime.

Isso é indicativo da herança do estilo cortesão ainda presente nas PMs em pleno século XXI. Impõe-se a questão: a presença de valores aristocráticos nas PMs brasileiras reflete a dificuldade de compreensão por parte de seus profissionais em relação aos Direitos Humanos? Se os Direitos Humanos no Ocidente ganham força com a Revolução Francesa e seus valores liberais e antiaristocráticos, por que inversamente as PMs criadas no Brasil reforçaram os valores absolutistas como a hierarquia, a honra, a autocoerção dos modos de pensar e de se portar em público? Se o Absolutismo foi marcado pela violência pública, ritualizada nas punições supliciais naturalizadas pela ideia de obediência irrestrita ao rei, como tal violência pode estar relacionada às práticas cotidianas dos PMs no exercício da autoridade nas ruas

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