Audiência pública discutiu impactos de PEC que quer transferir posse dos terrenos de marinha para estados, municípios e entes privados
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado fez nesta segunda-feira (27) uma audiência pública para discutir a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que transfere terrenos sob gestão da Marinha para estados, municípios ou proprietários privados.
Ambientalistas ouvidos pelo Valor reprovam a proposta apontando que o texto dá margem à criação de praias privadas e que pode, além disso, causar danos à biodiversidade dessas áreas.
Atualmente, as praias pertencem à União e são geridas pela Marinha. Os "terrenos de marinha" são as áreas situadas na costa marítima em faixa de 33 metros a partir de uma linha média traçada em 1831.
A PEC 3/2022, que estava fora de discussão desde agosto passado, revoga o inciso VII do artigo 20 da Constituição Federal, que diz que os terrenos de marinha e seus acrescidos são bens da União, e inclui na Carta Magna que esses terrenos podem ter, dentre as circunstâncias estabelecidas, sua propriedade transferida para estados, municípios e entes privados.
O terrenos, ao longo de toda a costa brasileira, devem ser repartidos da seguinte maneira de acordo com a PEC:
- Municípios e Estados receberão a propriedade daqueles terrenos que já tiverem construções de prédios públicos;
- União fica com áreas utilizadas pelo serviço público federal, áreas não ocupadas e aquelas abrangidas por unidades ambientais federais;
- Ocupantes particulares podem receber a titularidade do terreno mediante pagamento.
O texto também acaba com a cobrança de laudêmio, taxa patrimonial da União que deve ser paga ao proprietário do terreno quando se vende ou transfere um imóvel em área de marinha
A proposta é de autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (PA) e tem parecer favorável do relator, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Flávio Bolsonaro defende que a mudança é necessária para regularizar as propriedades localizadas dentro dessas áreas, hoje da Marinha. "Há, no Brasil, inúmeras edificações realizadas sem a ciência de estarem localizadas em terrenos de propriedade da União", escreveu. Argumenta, ainda, que a origem do atual domínio sobre as praias foi estabelecido sob a justificativa de necessidade de defesa do território contra invasão estrangeira, "razões que não estão mais presentes".
Livre acesso às praias
A Lei Federal nº 7.661/1988, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, determina que "as praias são bens públicos de uso comum do povo, sendo assegurado, sempre, livre e franco acesso a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido", com exceção, apenas, de trechos considerados de interesse de segurança nacional.
Esse ponto é um dos que levantam polêmica na proposta, já que a transferência de posse dessas áreas da União pode favorecer uma especulação imobiliária nesses locais, facilitando a construção de empreendimentos próximos à faixa de areia da costa brasileira.
Porém, mesmo se a PEC for aprovada, privatizar praias continua não sendo permitido, de acordo com Jean Marc Sasson, que atua com ações relacionadas às Mudanças Climáticas e ESG no escritório Lima Feigelson Advogados.
"Hoje já existem condomínios [construídos nessas áreas], mas se bloqueiam o acesso, é ilegal. Como a praia é um bem de uso geral do povo, um condomínio que feche o acesso a ela deve, no mínimo, criar uma gestão que permita o acesso do público a essa área", diz Sasson.
Risco à biodiversidade
A especulação imobiliária pode causar danos ambientais na costa brasileira. É a posição defendida pelo Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente (MMA). A coordenadora-geral do departamento, Marinez Eymael Garcia Scherer, diz que a grande preocupação é com os efeitos das mudanças climáticas e com os eventos extremos, cada vez mais comuns.
"Nossa grande preocupação é sair das mãos da União a capacidade de trabalhar melhor e combater os efeitos da mudança no clima nessas áreas, que são tão vulneráveis. Nossa posição é que pode atualizar e modernizar [as leis], mas não faz nenhum sentido [promover a] ocupação dessas áreas", diz ao Valor.
Scherer, que foi ouvida na audiência pública desta segunda no Senado, defende que o debate deveria ser sobre a desocupação dessas áreas — que estão expostas à erosão, aumento do nível do mar e enchentes, por exemplo. "Precisamos repensar toda a ocupação da costa. Essa questão dos terrenos de marinha não ajuda em nada", diz.
"Precisamos falar no Brasil de 'não-urbanização', de áreas não ocupáveis. Essa previsão [de eventos extremos causados por mudanças climáticas] não é 'bola de cristal', é fato e já é algo visto. Essas áreas ocupadas hoje trará perdas financeiras, de infraestrutura e de vidas humanas", diz.
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