Foi em novembro de 2003 que o governo federal, já sob o comando do PT e de Lula, tomou uma decisão que vinha sendo postergada há anos: privatizar um banco.
Historicamente deficitário, o Banco do Estado do Maranhão foi a primeira privatização petista. Dali em diante outras se seguiriam, cumprindo o Plano Nacional de Desestatização.
Em 2004, porém, uma mudança significativa foi causada pela lei das PPP’s, as “Parcerias Público Privadas”. A lei determinava que serviços públicos, como estradas, portos, ferrovias, aeroportos e assim por diante, pudessem ser repassados ao setor privado, com uma diferença: a propriedade se manteria com a União.
Trata-se de um modelo perfeito, para os investidores privados é claro. Com ele as empresas e investidores não precisavam mais comprar os ativos, desembolsando uma grana, mas pagar uma garantia para usar o bem público, bem menor do que o valor dos ativos e baseada no total de receita que estes geram.
O modelo previa ainda financiamento público, via bancos estatais, e um seguro. O risco do setor privado era calculado e baixo.
Ao longo da história tivemos diversos modelos de privatização, além de uma extensa discussão em torno do próprio significado da palavra. Há quem diga que privatização é uma transferência da posse dos bens públicos e outros que defendem que privatização é transferir o controle dos ativos e não a posse.
O problema, é claro, é que nada disso altera os fatos sobre o ocorrido. As privatizações de ativos de telefonia foram feitas em modelo de concessão. Da mesma maneira que as empresas de energia que tiveram sua concessão encurtada com a MP do setor elétrico em 2013 foram chamadas de privatização na época.
A confusão do termo porém é o fato mais ideológico e menos relevante na discussão. O que importa para o usuário e pagador de impostos é a qualidade do serviço – ou o quanto a empresa privatizada consegue gerar de retorno.
A qualidade do serviço, entretanto, costuma ficar em segundo plano. Basta observar os argumentos principais das privatizações que você entenderá.
“Vendidas a preço de banana”, “sucateadas para privatizar”, “estão vendendo o patrimônio do povo” e assim por diante são expressões comuns e não foram inventadas por Jair Bolsonaro em seu discurso na Ceagesp em São Paulo.
De fato, nem o próprio Bolsonaro tornou-se um defensor de estatais ontem. Em 1997, por exemplo, o então deputado federal comentou que Fernando Henrique Cardoso deveria ser fuzilado em função da privatização da Vale do Rio Doce.
Maior caso de privatização da história do país, a Vale uniu espectros políticos. Ainda hoje você verá cálculos estapafúrdios dizendo que a empresa possui trilhões em minério e foi privatizada por uma ninharia.
Ao contrário da narrativa porém, a Vale foi vendida cerca de 19,6% acima do seu valor de mercado. Como podemos confiar neste valor? Simples. As ações das empresa são cotadas em bolsa desde 1947.
Quem de fato acreditasse que a Vale foi vendida por menos do que valia poderia comprar ações em bolsa ainda mais barato do que o governo vendeu.
A confusão, porém, se dá nos meandros da avaliação. A Vale não foi 100% privatizada, como também não foram as telefônicas. O governo detinha apenas uma parcela das ações da empresa, e vendeu por US$ 3 bilhões, cerca de ¼ da companhia, mantendo ainda um bom número de ações.
Na prática, a empresa foi avaliada em US$ 12 bilhões pelos compradores, quando na bolsa as ações eram negociadas por US$ 8,6 bilhões.
No caso das telefônicas, a confusão ocorre pelo modelo de investimentos. Para expandir sua rede, as estatais de telefonia vendiam ações da empresa para o público.
Em suma, caso você quisesse ter uma linha telefônica, precisaria comprar uma quantidade X de ações. Daí a enormidade do valor das “linhas”, que eram declaradas até mesmo no imposto de renda.
Essa confusão, que perdura até hoje, fez com que 86% da Telebras fosse de fato privada já naquela época, com o público sendo dono da maioria das ações (não por coincidência, as declarações patrimoniais do Tribunal Superior Eleitoral distinguem as “ações provenientes de linhas telefônicas” daquelas compradas em bolsa).
As empresas vencedoras compraram os ativos e então mudaram a lógica, passando a financiar elas mesmas a expansão e vendendo o serviço, não a linha telefônica, para o público.
De volta a década atual porém, estas discussões mais técnicas foram amenizadas graças a mudança no discurso.
Em 11 de agosto de 2012, por exemplo, a revista Veja estampava em sua capa o que chamou de “Choque de capitalismo”. Um plano do governo Dilma de entregar ao setor privado cerca de 10 mil Kms de rodovias e outros 5 mil em ferrovias.
Com investimentos de R$ 133 bilhões, custeados por bancos públicos em sua maioria, o programa possuía em valores corrigidos um montante similar ao total de privatizações do governo Fernando Henrique.
A meta era ousada, não fosse um fato simples: faltou confiança.
O governo investiu em modelos surreais. A estatal Valec contrataria toda a capacidade das ferrovias, com bancos públicos como o BNDES financiando a obra. Na prática, o governo estava garantindo um lucro fixo aos investidores que, para espanto do governo, não toparam.
Como nos outros casos, a entrega de setores para serem geridos pelo setor privado ou público é um detalhe. O que importa de fato são os contratos.
Contratos que definam com clareza a segurança do investimento são o pilar de qualquer obra de infraestrutura de longo prazo.
No país dos aditivos (aqueles remendos aos contratos que garantem mais verba e tornam as obras inúmeras vezes mais caras do que o previsto), a coisa não foi pra frente.
Veja bem, o governo até que tentou. Leiloou aeroportos como Confins e Galeão (ambos para a Odebrecht) por R$20,8 bilhões, mas os termos irreais só foram aceitos pelo fato da Odebrecht ser justamente uma empresa irreal.
As privatizações não pararam de pé. O governo vendia por um mínimo de R$ 5 bilhões, a empresa pagava R$ 20 bilhões e depois batia na porta pedindo ajuda pra pagar o valor extra.
Em suma, a roda continuava envolvendo dinheiro público, independente de quem ganhava.
Outros modelos, como as privatizações por menor preço de pedágio do governo Lula, também falharam.
Crítico dos altos preços cobrados em São Paulo, Lula se aproveitou do momento favorável de caixa do governo e promoveu leilões pautados em preço de pedágio, não dá concessão (o governo paulista por sua vez adotava um modelo em que o consórcio que pagasse mais pela rodovia levava, o que encare o pedágio).
As empresas que ganharam ofereceram preços tão baixos que não conseguiram cumprir o cronograma de investimentos.
Em 2017, o programa de parcerias voltou. A privatização da Eletrobras e outras empresas entrou novamente em pauta. Neste caso, porém, sequer foram pra frente. Empresas como a Eletrobras são um ninho político que une interesses diversos.
Senadores e deputados que bradam por responsabilidade fiscal e apoiam medidas nesta linha mudam o disco quando o que está em jogo são estatais que de certa maneira beneficiam seus Estados de origem, ou ainda, empresas que beneficiam determinados grupos políticos.
Apenas nas estatais federais, são cerca de 1190 cargos em conselhos, muitos dos quais pagando valores acima de R$ 20 mil, que não entram no fictício teto salarial do setor público.
Distribuir cargos portanto é parte importante do jogo político e se sobressai a questões técnicas.
Do ponto de vista técnico, que é o que importa para o consumidor, descobrimos que a forma de privatização e a cobrança importam, e muito.
Décadas de modelos ruins e contratos incertos criaram uma confusão sobre o termo que perdura até hoje.
Quando falamos, por exemplo, na privatização dos Correios, a principal crítica vem do fato de que “municípios do interior ficariam desassistidos”. Na prática, porém, isso já foi resolvido em outras áreas.
Criamos subsídios explícitos nas contas de luz que financiam programas de energia em áreas rurais e atendem a população carente. Em saneamento, o mesmo modelo já é adotado.
Não há nada de especial com logística que a torne uma obrigação do setor público para que este atue diretamente.
Nos rendermos aos argumentos infantis de sucateamento proposital ou “preço de banana”, em um momento no qual aprovamos marcos regulatórios que podem dar sustentação a metas e qualidade de serviço, seria um retrocesso.
Temos quase três décadas de privatizações e modelos distintos. Cabe ao Congresso e ao governo encontrar o melhor caminho
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