quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Graves violações no socioeducativo capixaba podem ter investigação federalizada


Pedido da ex-procuradora geral, Raquel Dodge, alega que omissões e violência vem ocorrendo desde 2009
As violações sistemáticas aos direitos humanos dos adolescentes internos do sistema socioeducativo capixaba alcançaram repercussão nacional. A ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ajuizou, nessa terça-feira (17), incidente de deslocamento de competência (IDC) para apurar graves violações de direitos humanos na área de socioeducação no Espírito Santo, que, de acordo com o documento, vem ocorrendo sistematicamente desde o ano de 2009 até os dias atuais, passando pelos governos de Paulo Hartung (sem partido) e Renato Casagrande (PSB). 
O pedido de federalização foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e busca assegurar o cumprimento das determinações do Estatuto da Criança do Adolescente (ECA) e do Sistema Nacional de Atenção ao Atendimento Socieoducativo (Sinase), além de responsabilizar os acusados por violações de direitos humanos praticados contra adolescentes. Segundo as representações, as violações consistem na manutenção de adolescentes e jovens custodiados em instalações inadequadas, insalubres e inseguras, sem condições mínimas de higiene e sem respeito aos direitos fundamentais à saúde, à educação e ao lazer, dentre outros, e sujeitos a toda sorte de arbitrariedades, omissões e violência.
No pedido, Raquel Dodge narra que chegaram à Procuradoria-Geral da República, em 2012 e 2014, duas representações formuladas pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) e pela Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (DPES), noticiando graves violações aos direitos humanos praticadas contra adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no Estado do Espírito Santo. 
De acordo com o documento enviado ao STJ, o Conanda apontou omissões dos órgãos do sistema de justiça na investigação dos fatos e descumprimento de decisões judiciais pelo secretário de estado de Justiça. A DPES, por sua vez, destacou a ausência de resposta efetiva do Poder Judiciário estadual às gravíssimas violações aos direitos humanos praticadas nas unidades do sistema socioeducativo do estado. O pedido registra que em ambas as representações foi noticiada e demonstrada a custódia irregular de adolescentes em unidades superlotadas, desprovidas do aparato necessário para assegurar o cumprimento dos direitos previstos no ECA, sujeitando os jovens a todo tipo de maus tratos e violência, o que teria ocasionando, inclusive, três suicídios e diversos casos de automutilações entre os internos.
A ex-procuradora-geral da República sustenta que durante a instrução das representações, constatou-se a situação de absoluta inaptidão do Estado do Espírito Santo na administração das unidades que compõem o sistema socioeducativo estadual durante todo o período analisado (anos de 2009 a 2016), tendo sido confirmada, em 2019, a manutenção da situação. 
“Conforme relatado pelas representantes, a omissão continuada no decorrer dos anos, por parte dos governos estaduais, deu azo a uma situação caótica, não apenas no que tange à inadequação da estruturação física e do pessoal técnico, mas à ausência de planejamento, quantidade insuficiente de vagas, omissão na garantia de direitos mínimos, além da inexistência de fiscalização e responsabilização dos atos abusivos por parte dos agentes estatais, onde se repetem, diariamente, toda sorte de violações de direitos”, aponta um dos trechos do pedido.
Dodge destaca que verifica-se inexistirem, no âmbito estadual, ações visando à responsabilização efetiva das autoridades estaduais, dos gestores do sistema socioeducativo e dos funcionários que, por ação ou omissão, contribuíram para a situação de caos e violações aos direitos da infância e juventude, seja no âmbito criminal, seja no tocante à responsabilização por eventuais atos de improbidade administrativa.
Decisão do STF
O Estado também foi alvo de decisão inédita do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2018, que determinou uma taxa de ocupação máxima de 119%, fixada em todas as unidades do sistema socioeducativo capixaba, tendo como principal referência a superlotação verificada na Unidade de Internação do Norte do Estado (Unis Norte), em Linhares. Posteriormente, houve extensão da medida para os estados do Ceará, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.
Em abril deste ano, no entanto, o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Espírito Santo (Criad-ES) divulgou uma carta aberta à sociedade capixaba em que denuncia o descumprimento das determinações do STF.  A decisão do ministro Fachin determinou que os adolescentes deveriam ser remanejados para o meio aberto (regime de liberdade assistida ou prestação de serviço à comunidade) até que a superlotação das unidades capixabas, que variavam na ocasião entre 270% a 300%, caíssem para 119%. 
Responsabilização internacional
Em outro ponto, a ex-procuradora-geral cita a representação do Estado Brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 2009, a respeito dos fatos narrados e os diversos descumprimentos do Estado de ordens internacionais para sanar os problemas. Em 2017, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu situação de violência carcerária e superpopulação que “não apenas tornariam impraticáveis os padrões mínimos indicados pela comunidade internacional para o tratamento de pessoas privadas de liberdade, mas configurariam possíveis penas cruéis, desumanas e degradantes, violatórias da Convenção Americana de Direitos Humanos”.
De acordo com a PGR, uma vez mantida a situação descrita, causada e agravada pela inércia dos agentes públicos competentes, haverá o agravamento dessa responsabilização internacional do Brasil nos termos dos artigos 50 e 51 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com a propositura de mais uma ação internacional contra o Brasil perante a Corte IDH.
O deslocamento de competência é possível considerando-se três requisitos: grave violação de direitos humanos; evidência de conduta das autoridades estaduais reveladora de falha proposital ou por negligência, imperícia, imprudência na condução de seus atos, que vulnerem o direito a ser protegido, ou ainda que revele demora injustificada na investigação ou prestação jurisdicional; e a possibilidade de responsabilização internacional pelo descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais. No pedido de IDC, Raquel Dodge demonstra a existência dos três requisitos no caso em análise.
 
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