18 de fevereiro de 2024, 13h48
No serviço público, há atividades que necessitam rotineiramente da presença do servidor, por exemplo, para atender públicos específicos.
Nesses casos, justifica-se exigir a presença ininterrupta de servidores nos horários e dias de expediente da instituição, o que pode ser garantido por jornadas integralmente presenciais ou por jornadas mistas (rodízio entre os servidores, alternando-se nos regimes presencial e remoto, o chamado regime híbrido ou teletrabalho parcial).
Destaca-se que o atendimento ao público tem se dado amplamente de forma virtual e, nesse caso, deve-se cuidar para que, se o serviço de atendimento for prestado por servidores em teletrabalho para além dos recursos e formas automatizadas disponibilizadas, o trabalhador remoto observe rigorosamente os horários de atendimento ao público, caso em que a flexibilidade típica da jornada no teletrabalho é mitigada.
Quando não há a necessidade presencial, a exemplo de análises processuais, estudos e pesquisas, elaboração de relatórios e pareceres, acompanhamento de ações, programas e projetos etc. via sistemas e recursos computacionais, o serviço pode e deve ser realizado de forma remota.
Pode, quando não houver prejuízo à qualidade e ao prazo da entrega do serviço. Deve, quando houver ganhos diretos ou indiretos. Esses ganhos são óbvios, lógicos e naturalmente esperados, mormente por serem beneficamente múltiplos e alcançarem as partes envolvidas, a sociedade, o ente público e o servidor.
São exemplos: a maior produtividade associada à satisfação do servidor em trabalho remoto, a redução de custos para a instituição, a contribuição para redução do trânsito nas cidades, a otimização do tempo para o servidor, inclusive com redução do absenteísmo, o que traz novos reflexos à produtividade e à economia, entre outros ganhos, tudo em prol de um serviço público mais eficiente e eficaz para a sociedade.
Assim é que, caracterizado o proveito do teletrabalho em regime integral ao serviço público, tal regime merece ser prestigiado e consolidado como realidade laboral que melhor atende às referidas partes interessadas: servidor, instituição e sociedade.
Por que presencialidade quando possível o teletrabalho?
Quais seriam então as maiores desvantagens e/ou riscos advindos do teletrabalho integral que poderiam ser alegados, para que se busque afastá-lo, reduzi-lo ou transformá-lo em um regime misto, híbrido e rotativo, parte remoto e parte presencial, ora integral ora parcial?
A resposta parece ser a busca por controle e vigilância, em detrimento da produtividade, das entregas e da redução de custos, além do foco em uma pretensa igualdade, em detrimento da verificação das peculiaridades de cada unidade, serviço e órgão da administração pública.
Tais objetivos de controle e igualdade se mostram logo desarrazoados num enfrentamento principiológico entre as razões para a ratificação do teletrabalho no serviço público e o seu inverso, sua atenuação com aumento da presencialidade.
No limite, de um lado, prestigiando o teletrabalho, está a atenção aos princípios e diretrizes da motivação, eficiência, interesse público, satisfação das partes envolvidas, controle efetivo (das entregas), isonomia (proporcional às diferenças de trabalho); de outro, priorizando a presencialidade, estaria a diretriz da formalidade, na busca pelo controle formal (de ponto) e pela igualdade formal (regimes mais próximos e rodiziados para todos, sem considerar as particularidades dos órgãos/unidades/serviços).
Na prática, exemplificam-se dois casos em que as razões para a mitigação do teletrabalho no serviço público não foram suficientemente postas, particularmente quanto ao princípio da motivação e do objetivo de atendimento às partes interessadas requerido na boa governança.
Executivo Federal, um caso tentado de presencialidade forçada, maior do que a demandada
Recentemente, ao fim de 2022, por meio da Instrução Normativa (IN) 89/2022-SGP-Seges/SEDGG/ME [1], buscou-se alterar orientações sobre o Programa de Gestão de Desempenho (PGD) nos órgãos da administração federal, impondo limites restritivos ao teletrabalho integral (até 20%, com revezamento e máximo de três ciclos; percentual ampliável até 50%, atendidos alguns requisitos) e mesmo ao teletrabalho parcial (até 70%, com mínimo de 40% da jornada prestada presencialmente).
Diante de inúmeros questionamentos sobre o novo normativo, sobreveio logo a sua revogação por meio da IN SGP-Seges/ME 2/2023 [2]. Em nota oficial sobre a revogação da IN 89/2022 [3], concluiu-se que o novo normativo comprometia o modelo de gestão por resultados pela superposição com o controle de frequência; interferia na autonomia dos órgãos e entidades na implantação própria do PGD; carecia de consulta aos afetados e de avaliação de impactos; introduzia parâmetros restritivos sem base em evidências; e apresentava inconsistências conceituais.
A nota técnica conjunta para atos normativos SEI 1/2023/ME [4] subsidiou tal revogação. A despeito dos pontos críticos abordados extrapolarem os regimes de trabalho em si, que são componentes do PGD, foca-se nas alterações desses regimes com insuficiente motivação, situação que se assemelha ao caso do Tribunal de Contas da União (TCU) reportado adiante.
Nesse sentido, informa-se que a referida nota apresentou o processo de elaboração da citada IN 89/2022 dividido em dois períodos: os primeiros meses de 2022 foram marcados por amplo processo de consultas a órgãos/entidades, envolvendo coleta de subsídios, discussão e a revisão das versões iniciais minutadas; os meses seguintes de 2022, por profundas transformações estruturais, mas sem a recomendável consulta aos afetados e sem a necessária análise de impacto, pilares qualitativos da atuação regulatória no setor público. Assim, o produto advindo não refletiu estudo amplo e transparente e ignorou injustificadamente as manifestações colhidas inicialmente.
Os parâmetros limitadores do teletrabalho integral tentados foram bem mais flexíveis do que os do TCU, em comum se teve a fixação desses critérios restritivos sem base em robustos estudos e evidências e contrários aos pressupostos e resultados do teletrabalho.
Enfim, a presencialidade que se pretendia exigir não guardou manifesta ou comprovada correspondência com a demanda da sociedade, das instituições e dos trabalhadores envolvidos e contrariou os objetivos dos institutos em questão, o PGD e a sua ferramenta de teletrabalho. Em vista disso, logo foi retirada do arcabouço regulamentador do Programa.
TCU, um caso provável de presencialidade forçada, maior do que a demandada
Aventou-se, também no âmbito do Tribunal de Contas da União, a possibilidade de que a expansão do teletrabalho no serviço público federal poderia estar resultando prejuízos à sociedade e às instituições, inclusive no tocante ao atendimento ao público e à falta de integração dos servidores e das equipes de trabalho com possíveis reflexos no engajamento ou na sensação de pertencimento dos servidores à instituição.
Em diagnóstico preliminar sobre o teletrabalho no âmbito do serviço público civil do Poder Executivo Federal, no processo 020.822/2022-7 (vide acórdão, relatório e voto) [5], o principal problema detectado pelo TCU foi a inobservância das regras por parte de órgãos submetidos ao já citado PGD, do qual o teletrabalho é importante ferramenta. Tal ferramenta em si não foi questionada, mas a sua utilização sem observância dos pressupostos e regramento próprios.
Vantagens do modelo de teletrabalho são reconhecidas nos autos em tela e na supracitada Nota Técnica Conjunta 1/2023/ME.
Os riscos advindos da questionada inobservância (potencial falta de conexão dos servidores com a instituição, de acompanhamento, de transparência, de limites e de consequência para o descumprimento de metas) são inerentes àquele programa e não ao teletrabalho, especialmente se considerados o caráter recente do PGD, a diversidade dos órgãos envolvidos e a autonomia que lhes foi conferida.
Tais riscos são improváveis no âmbito da gestão de desempenho e operacionalização do teletrabalho no TCU, devido ao seu pioneirismo, sua experiência pretérita bem-sucedida e sua uniformidade orgânica e decisória a respeito da matéria.
No TCU, a tendência desde 2009, quando implantada experiência piloto de teletrabalho, foi a ampliação progressiva e comedida desse regime de trabalho, de forma que a Portaria 9/2022 (com alterações de dezembro de 2022) previa, na prática e essencialmente, os percentuais de até 40% dos servidores de cada unidade do tribunal em teletrabalho e de até 100% dos servidores nas unidades estaduais (quando suas unidades de vinculação técnica estivessem na sede, em Brasília).
Essa tendência foi rompida com a redução drástica do teletrabalho integral, consubstanciada na diminuição dos respectivos percentuais de 40% para 15% e de 100% para 20%, a partir das alterações promovidas em outubro de 2023 [6].
Não constam que os elementos do processo 044.545/2021-5 (citado nos “considerandos” do normativo) tenham requerido e subsidiado suficientemente tal mudança brusca, mesmo porque subsidiaram antes, desde 2021, quando autuado o processo, a expansão e consolidação do teletrabalho naquele tribunal.
Almeja-se a abertura desse processo ao público externo em busca de elementos mínimos que justifiquem a mudança.
Ainda que se considerem como razões explícitas ou implícitas no referido processo a busca da isonomia (formal, nivelada) entre os servidores, pela redução da diferença entre os afastados limites de 40% e 100% para os limites mais próximos de 15% e 20% de teletrabalho total, e a mitigação do risco de redução do pertencimento à instituição, tais razões seriam residuais ou mesmo infundadas diante das razões que se seguem.
De pronto, vê-se que efetiva isonomia (material, circunstanciada, motivada e democrática) se daria pela aproximação dos citados limites antes fixados (40% e 100%) a patamar intermediário entre eles e não a patamar bem inferior aos pré-existentes (ignorando as vantagens do teletrabalho, o provável interesse dos envolvidos e o potencial combinatório dos outros regimes).
Ademais, a norma vigente ratifica a dispensa de ponto para os comissionados FC 5 e 6 e exclui dos limites de 20% e 15% os comissionados FC 3 e 4, de forma a acentuar sobremaneira a diferença de tratamento entre esses e os não comissionados, contrariamente à isonomia que se deseja no órgão de controle.
Por sua vez, não se pode cogitar qualquer significativa redução de sensação de pertencimento ou de integração técnica no TCU que tenha sido provocada pelo teletrabalho, diante do notório fato de que o teletrabalho foi impulsionado no tribunal inclusive pela especialização e criação de unidades virtuais, que suscitaram, aí sim, mais efetiva integração técnica por meios remotos (sistemas informatizados próprios, grupos técnicos por aplicativos de comunicação — WhatsApp, Teams etc. — reuniões periódicas técnicas) e mesmo presenciais (encontros técnicos por unidade especializada).
De certo, a expectativa predominante dos servidores no TCU e em órgãos de controle, que possuem atividades tipicamente intelectuais (de cunho analítico, investigativo, fiscalizador e orientador/decisório), é a faculdade pela opção do teletrabalho, que tem se mostrado vantajoso para a sociedade, enquanto produtivo e econômico.
Tal inferência se robustece com os resultados da pesquisa, realizada pelo Instituto Rui Barbosa, sobre o amplo teletrabalho desenvolvido durante a pandemia de Covid-19 nos tribunais de contas de todo o país (97% deles, inclusive o TCU), abarcando 20.413 respondentes, ¼ dos quais ocupantes de cargos de chefia ou coordenadores de unidade de trabalho, denotando representatividade do corpo funcional [7].
Os dados da pesquisa (com nível de confiança de 99% e erro amostral de 5%) indicam patentemente majoritária satisfação dos servidores dessas cortes de contas com o teletrabalho, com reflexos positivos para a produtividade e criatividade, conforme ilustrado no Apêndice 1. Se foi assim sob imposição (na pandemia), quão proveitoso será sob adesão!
Conclusão
Enfim, deve-se responder à questão “o que justifica o trabalho remoto em determinada atividade ou unidade do serviço público” e buscar atender a demanda nos contornos da resposta obtida. Se a produtividade, a satisfação dos servidores e a ausência de demanda da sociedade pelo atendimento presencial são as justificativas, faculte-se aos interessados o teletrabalho integral.
Similarmente, se a justificativa do trabalho presencial é a patente necessidade de atendimento não-virtual ao público interno ou externo, requeira-se dos servidores sua presença no local de atendimento a esse público, de forma integral ou parcial, na medida que melhor atenda aos interesses das partes envolvidas, público demandante, instituição e servidores.
A regra deve ser atender aos stakeholders, as partes interessadas envolvidas devem ser consideradas e ouvidas, de forma que a presencialidade seja em regra facultada, sempre que possível e almejada pelo servidor público, e sua exigência somente ocorra quando estritamente necessária, requerida pelo usuário do serviço público.
Regra correlata é a motivação, que justifique melhoria do serviço público. A exigência de maior presencialidade de forma ampla e geral, talvez na busca de uma igualdade forçada, desatende princípios e ignora resultados passados e potenciais do trabalho remoto, não devendo resultar em maiores benefícios para a sociedade e para as demais partes interessadas do que a comedida ampliação do teletrabalho.
Este regime tem vantagens evidentes que otimizam a vida laboral e urbana, com ganhos relevantes para as instituições que não o releguem, como a redução de espaços, de custos prediais e de despesas operacionais e administrativas e o aumento de produção e da satisfação dos servidores, inclusive por maximizar o uso dos recursos computacionais e otimizar o tempo dos agentes envolvidos. Ambientes físicos ociosos necessariamente criados, longe de serem um problema, podem ser abordados em um futuro artigo.
Referências
[1] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-sgp-seges/sedgg/me-n-89-de-13-de-dezembro-de-2022-451152923
[7]https://www.cnptcbr.org/wp-content/uploads/2021/05/RELATORIO-FINAL-PESQUISA-TELETRABALHO-IRB.pdf
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