O sistema carcerário brasileiro atravessa uma crise sem precedentes, caracterizada pela superlotação crônica, violação sistemática de direitos fundamentais e descumprimento de normas processuais básicas. Reconhecendo a gravidade desta situação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desenvolveu o plano “Pena Justa”, uma ambiciosa iniciativa nacional que visa a enfrentar o estado de coisas inconstitucional das prisões brasileiras, e segue determinação do Supremo Tribunal Federal com base no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (ADPF 347) em outubro de 2023.

A decisão da ADPF 347 reconheceu formalmente que há violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões brasileiras, que oferecem condições precárias de infraestrutura, higiene e alimentação, atendimento insuficiente em saúde, superlotação, insuficiência na gestão processual das pessoas apenadas e relatos de tortura e maus tratos. Esse cenário foi caracterizado pelo STF como um estado de coisas inconstitucional (ECI), conferindo legitimidade institucional máxima ao diagnóstico da crise carcerária.
Quatro Eixos Estratégicos
O plano estrutura-se em quatro eixos principais, cada um focado em aspectos críticos do sistema prisional:
Eixo 1 — Controle da entrada e das vagas do sistema prisional: este eixo aborda problemas fundamentais como a superlotação carcerária, a sobrerrepresentação da população negra e o uso excessivo da privação de liberdade. Seu foco é reduzir o hiperencarceramento através do controle dos fluxos de entrada no sistema prisional e fortalecimento de alternativas penais.
Eixo 2 — Qualidade da ambiência, dos serviços prestados e da estrutura prisional: identificando problemas como inadequação da arquitetura prisional, baixa oferta e má qualidade dos serviços prestados nas prisões, tortura e tratamentos degradantes, falta de transparência e desvalorização dos servidores penais, este eixo foca na melhoria das condições materiais e humanas dentro das unidades prisionais, garantindo dignidade e direitos fundamentais.
Eixo 3 — Processos de saída da prisão e da reintegração social: este eixo aborda processos de saída da prisão sem estratégias de reintegração social e irregularidades na gestão dos processos de execução penal. Seu objetivo é estruturar políticas efetivas de reintegração social e aprimorar a gestão da execução penal para garantir progressões e saídas adequadas.
Eixo 4 — Políticas para não repetição do Estado de Coisas Inconstitucional: o mais abrangente dos eixos, identifica problemas como baixa institucionalização do enfrentamento ao racismo no ciclo penal, fragilidade das políticas penais, desrespeito aos precedentes dos Tribunais Superiores e normativas do CNJ, insuficiência de medidas de reparação pública e afastamento dos servidores do Sistema de Justiça Criminal das estratégias de reintegração social. Foca na criação de políticas sustentáveis de longo prazo que impeçam a recorrência da situação de inconstitucionalidade, com ênfase em governança, transparência e justiça racial.
Implementação e governança
O plano prevê uma governança interinstitucional envolvendo CNJ, Senappen/MJSP, AGU e MDHC, com monitoramento através de indicadores específicos para cada eixo e participação da sociedade civil. Cada unidade da federação deve elaborar planos estaduais e distrital alinhados ao plano nacional, que devem ser validados pelo STF. O CNJ ficará responsável por apresentar relatórios semestrais ao STF sobre o andamento do plano, criando um sistema de monitoramento e accountability direto com a mais alta corte do país.
Spacca

Desafios da implementação: caso paradigmático
A determinação oriunda da ADPF 347 confere ao plano “Pena Justa” não apenas legitimidade, mas também urgência constitucional. O reconhecimento formal do estado de coisas inconstitucional pelo STF significa que o cumprimento das metas do plano não é apenas uma questão de política pública, mas de obrigação constitucional. O desafio central é superar a resistência institucional que impede a aplicação de direitos consolidados.
O Centro de Detenção Provisória de Aracruz exemplifica essa crise: capacidade para 246 detentos, população de 511 pessoas (superlotação de 207,7%), com celas sem espaço para colchões. Em mutirão preparatório do plano, no mês de outubro de 2025, a Defensoria Pública atendeu 250 presos, que manifestaram interesse, e identificou o detento mais antigo — primário, preso há mais de seis anos por tráfico, condenado a 8 anos, 2 meses e 4 dias, já cumprindo 75,5% da pena.
O caso demonstra violações do Eixo 1 (não aplicação da detração penal contribui para manter pessoas presas além do tempo necessário), Eixo 2 (superlotação com celas sem espaço para colchões), Eixo 3 (falhas nos processos de progressão de regime) e, principalmente, Eixo 4 (desrespeito sistemático às Súmulas 716, e Súmula Vinculante 56 do STF), com violações a entendimentos consolidados:
1. Descumprimento da detração penal (artigo 42, CP e artigo 387, §2º, CPP) O instituto da detração, que determina o cômputo do tempo de prisão provisória para fins de cumprimento da pena, não estava sendo aplicado, mantendo o réu em situação mais gravosa do que a legalmente devida.
2. Violação à Súmula 716 do STF A possibilidade de progressão de regime antes do trânsito em julgado, matéria pacificada pelo Supremo Tribunal Federal, era ignorada pela autoridade de primeiro grau.
3. Desrespeito à Súmula Vinculante 56 do STF A manutenção do paciente em regime fechado, mesmo tendo direito ao regime aberto pela detração penal, configura violação direta ao enunciado que estabelece: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS“.
Mesmo após pedido fundamentado e contato direto como juízo de primeira instância informando a urgência, a autoridade manteve-se inerte, motivando habeas corpus (HC 5017975-77.2025.8.08.0000 — 1ª Câmara Criminal do TJ/ES). O desembargador deferiu liminar em 22/10/2025, determinando expedição da guia de execução provisória e apreciação da detração penal em cinco dias.
Contudo, o juízo descumpriu a liminar, exigindo nova intervenção da Defensoria em 4 de novembro. Somente após a segunda intervenção, em 6 de novembro de 2025, a decisão foi cumprida. O caso evidencia as violações sistemáticas identificadas pela ADPF 347, revelando que o sucesso do plano depende da efetiva aplicação de direitos já consolidados.
Plano ‘Pena Justa’: entre a promessa e a realidade
O caso do habeas corpus analisado serve como alerta crucial para os objetivos do plano “Pena Justa” e para o cumprimento da determinação do STF na ADPF 347. Não obstante a existência de mais de 300 metas estabelecidas pelo CNJ e a obrigação constitucional decorrente do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional, o sucesso da iniciativa depende fundamentalmente da superação da resistência institucional demonstrada no caso concreto.
A efetiva transformação do sistema, mais do que a criação de novos institutos, depende essencialmente da aplicação consistente e rigorosa daquilo que já é consolidado e fundamental em nosso ordenamento jurídico, especialmente os precedentes dos Tribunais Superiores, constantes do Eixo 4.
Defensoria Pública como guardiã dos direitos de defesa
Neste cenário de violações sistemáticas reconhecidas pela ADPF 347, a Defensoria Pública assume papel fundamental que transcende a mera representação processual individual, assumindo dimensão institucional de guardiã sistêmica dos direitos de defesa.
A essência de sua função institucional é proteger os direitos defensivos dos cidadãos, especialmente aqueles em situação de vulnerabilidade no sistema de justiça criminal, com fundamento constitucional no artigo 134 da CF/88, que define a Defensoria Pública como instituição essencial incumbida da defesa integral dos direitos individuais e coletivos. A EC 80/2014, ao acrescentar “a promoção dos direitos humanos”, ampliou sua missão para além da defesa individual, conferindo-lhe atribuição de tutela coletiva e estrutural. No contexto da ADPF 347, essa dimensão ganha concretude: a Defensoria atua sistemicamente na identificação e combate a padrões de violações que afetam coletivamente as pessoas privadas de liberdade.
A atuação da Defensoria Pública distingue-se da mera defesa técnica individual por sua dimensão institucional e sistêmica, já que atua também na identificação de padrões estruturais de violações, na fiscalização da aplicação de precedentes vinculantes e na provocação de mudanças sistêmicas no funcionamento do sistema de justiça criminal.
Diferencia-se, ainda, do Custos Legis — expressão consagrada para designar o Ministério Público como fiscal da ordem jurídica — por sua perspectiva e função específicas. Enquanto o Custos Legis fiscaliza a correta aplicação da lei na perspectiva da acusação e da preservação da ordem jurídica como um todo, a Defensoria Pública tutela especificamente os direitos defensivos e as garantias fundamentais dos acusados e condenados, atuando como contrapeso institucional necessário ao equilíbrio do sistema acusatório.
A função de guardiã dos direitos da defesa manifesta-se concretamente em diversas frentes de atuação institucional. Nos mutirões carcerários realizados periodicamente em unidades prisionais superlotadas, a instituição identifica sistematicamente violações como a falta de aplicação da detração penal, irregularidades na progressão de regime e manutenção de pessoas em condições degradantes, promovendo correções em massa que beneficiam centenas de pessoas simultaneamente.
Merece destaque especial a utilização do habeas corpus coletivo como instrumento de tutela estrutural dos direitos de defesa. A Defensoria Pública tem sido protagonista na consolidação deste instituto, com casos paradigmáticos:
HC nº 568.693/STJ (2020) — Prisão por fiança: A Defensoria Pública do Espírito Santo impetrou habeas corpus coletivo que resultou na soltura de todos os presos do país que tiveram liberdade condicionada à fiança. Inicialmente deferido para o Espírito Santo, a decisão foi estendida para todo o território nacional.
HC nº 143.988/STF (2020) — Superlotação socioeducativa: A atuação resultou na determinação de que unidades de execução de medida socioeducativa não ultrapassem sua capacidade projetada, estabelecendo critérios como transferência, internação domiciliar e reavaliação de casos sem violência. A decisão da Segunda Turma fixou parâmetros para evitar superlotação em todo o país.
HC nº 143.641/SP (2018) — Substituição por prisão domiciliar para mães e gestantes: A Defensoria protagonizou a extensão da proteção de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional.
Esses casos evidenciam a concretização de sua função de guardiã dos direitos de defesa, permitindo à Defensoria Pública atuar não apenas na defesa individual, mas na correção de disfunções estruturais do sistema de justiça criminal, sendo verdadeira guardiã da legalidade em face da resistência institucional ao cumprimento de direitos consolidados, especialmente no contexto do estado de coisas inconstitucional reconhecido na ADPF 347.
Conclusão
A análise demonstra como múltiplas violações de direitos — humanos, processuais e de decisões das cortes superiores — perpetuam a superlotação carcerária e o estado de coisas inconstitucional reconhecido na ADPF 347. A não observância de institutos consolidados (detração penal, precedentes vinculantes, direitos processuais básicos) contribui diretamente para a manutenção desse cenário.
É necessário estabelecer um verdadeiro senso de dever jurídico e responsabilidade entre os atores do sistema de justiça. Propõe-se, nesse contexto, a adoção consciente de um Princípio do Respeito Jurídico aos precedentes e direitos, que traga ampla eficácia ao que é inconteste no ordenamento jurídico.
Para que o plano “Pena Justa” alcance seus objetivos, é fundamental concentrar-se na efetiva aplicação daquilo que já está consolidado. É preciso criar um verdadeiro senso de responsabilidade institucional pelo cumprimento desses direitos, sob pena de perpetuarmos indefinidamente o estado de coisas inconstitucional que caracteriza nosso sistema carcerário.
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